PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 30 de junho de 2020

PLANET CARAVAN

Nas voltas da vida, a dar o galope com meu cavalo negro, entre as estradas que se abrem em meu sonho e minha canção visionária. A caravana avança sobre os castelos de mármore, sobre as pedras jogadas na beira do rio castanho, na flor ametista eu tenho meu recanto e meu refúgio, as letras se formam no caudal das vinhas e de todo este ópio que delira calmamente sobre as finesses da papoula. O poema, este ser estelar que gira com fúria, no entanto, sempre pousa delicadamente depois que se esgota em sua coda, como na saciedade depois do orgasmo, uma calma búdica de quem está completo.
O poema tem um certo rigor nas astúcias, uma manha honesta que nada sabe e tudo faz, como aconselha toda boa sabedoria prática de ação direta, e todo ser que realiza todas as suas possibilidades, sem regatear seu destino e sua vontade que deve ser soberana de sua vida. O poeta é este tradutor de enigmas, este faz-tudo que em poema escrito condensa um mundo inteiro de noções, sua cavalgada vai a seu termo, em seu fim glorioso de vitória, sua caravana luminosa de sol, nas voltas da vida, no poema que circula seu espaço de ação vitoriosa, um lema e seu ás na manga, sua filosofia de vida, vencer com o seu dom de máquina e de tear firme e resoluto, com a certeza do amor vigoroso que não enfraquece.
A força de sua vontade soberana, seu tear de máquina que não cede ao holocausto da loucura, que não morre exangue na batalha, o poema em seu poeta, o poeta em seu poema, a vida em uma dose de sonho que avança implacável sobre as horas dos dias de luta, a cavalgada que este poema dá sem hesitar diante de um grande caminho que se abre em sua fortuna, sua Terra e sua cidade, seu campo e sua tarde, sua manhã e o descanso em sua noite estrelada, não se esqueça, o poeta tem todo este poder de fogo como um grande épico das batalhas campais pela vitória, a caravana avança contra os dentes da morte, o poema não cede, não regateia, vence, e sua filosofia é a glória de seu caminho livre, a liberdade em seu poema, a poesia em sua liberdade.
O poema se abre em flor com um dom mesmerizante que decifra sete céus na nota de febre de versos que se derramam na música que corre como vinho, na praia de seu flagelo ele vive e entende o sorriso na arma derrotada, ele, o poeta, entende de enigmas, de linguagens cifradas, de brumas subliminares, de hieróglifos infensos à razão, entende da linguagem dos loucos, dos bêbados, das putas, dos insensatos, dos mendigos, dos frenéticos, dos furiosos, entende dos fracassados, entende sua vitória ao ver a desdita dos românticos exaltados, ele lê todos os códigos, já experimentou todos estes venenos, ele retira as quintessências depois de muitas doses de veneno e de antídotos, ele estuda os meandros da loucura e da sabedoria, por conhecer os venenos, lhe depreende os descaminhos, por agora conhecer as quintessências, sabe do bem viver e abraça o universo com toda a sapiência de quem mergulhou nos bas-fonds e saiu vivo, o poema avança, em sua cavalgada ao destino de sua vitória.
A caravana avança, rumo ao seu ato de artista, na hora deste dia imenso, que o poema tem por estar livre em sua vontade soberana, o poeta monta em seu cavalo negro, avança pela estrada sem fim, anda e corre pelo vasto campo florido, realiza seu graal e decifra seu próprio enigma, estuda a sua própria alma, desce ao inferno, sobe ao céu, e anda sobre a Terra com seus pés firmes e uma fortaleza de quem plantou a sua sorte na seta certeira de um coração nobre, seu poema é seu escudo, seu poema é sua sabedoria, a caravana avança, o destino do poeta é escrever.

Gustavo Bastos, 30/06/2020

MAGMA

Em países distantes estava o lume lisérgico e sua taenia saginata que esculpia o verme na pintura. Eu revisei meus tédios na pátria amada que ardia. Logo, entre os ventos da vinha, num terror azul escuro da noite, sofri sob a espada que cortava meu sabre e minha adaga, um partido peito nas braçadas do mar. Nadei por várias paragens, entre as nereidas fui rei, depois de uma embriaguez em que acendi meu cigarro na véspera do caos, olhei em volta, imaginei Londres sob um pub de uísque escocês, fumaça de charuto, brotos de salada, carne no fogo, eu vi o Vesúvio, na semana seguinte, regurgitando poetas de Pompeia, alucinações de Creta, guerra dos hilotas, dos espartanos, uma derrota em Maratona, um assassinato no Senado romano, duas facadas no presidente que foi deposto com notas frias de holocausto.
Rimei minhas pedrarias, diamante e ametista, o rubi cantava suas notas doces como harpa angelical, eu prendia minhas dores numa teia de resistência, a fortaleza urdia seu calor pétreo e decidido, um azougue me tomava o peito, eu corria rumo à minha própria vitória, independente, vigoroso, com a certeza de ser um bom e belo poeta, com todas as histórias e fraturas de um bom e belo poeta, com todas as misérias dos vícios e as glórias da virtude em meu dorso biográfico, um ser moldado, feito na fervura e ganhando seu soldo depois da guerra total contra os abismos da hipocrisia, eu era o guerreiro, e tinha em meu escudo a primeira ponte para o ataque de minha adaga contra o coração da derrota.
O Vesúvio, este Deus caudaloso de lava, regurgitava os poetas de Pompeia, poetas de fogo banhados em lava, fruto do magma, o mistério do fogo em sua fervura, do manto da Terra para a camada atmosférica em fumaça negra petrificando sonhos no mármore, invocando os espíritos infernais que despertavam sob a febre do oráculo e das danças ditirâmbicas antes do primeiro ato de Téspis. Eu fundei, estudando Aristófanes, as nuvens, Eurípides, Ésquilo e Sófocles, a unidade de tempo de um dia para consumar o ato, as parcas cegas do destino, tecendo contra os muros a Moira, e na loucura do suicídio as Eumênides que atacavam os ouvidos do guerreiro em seu delírio de queda.
O magma descia entre as ruas e as casas de Pompeia, os poetas dançavam seus últimos dias na Terra, iriam ao rio sombrio, navegar com Caronte, guiando seu barco rumo a Cérbero, os poetas na lava seriam devorados pelo fogo, o magma em Pompeia daria o destino final a estes ditirambos que nasciam da lira de uma pantomima, de um gesto vulcânico mesmerizado, de um tear fulvo que semeava em seu fogo a grande vida deste magma que preenche o manto da Terra, a doce Terra Gaia, que junto com Cronos regurgitava, e seu magma era o poema final desta astúcia de poeta, deste mimo de artista que nos dá seus amuletos e talismãs, seus poemas feitos do fogo da paixão e da firmeza da vontade, os poetas de Pompeia morriam tocando a lira, se afogando na lava do magma do Vesúvio que entrava em erupção.
Marca desta terra em seu vulcão, o magma deste poema todo que é fogo e que é a loucura da Terra em sua essência, eu me vesti com meu manto diante da grandiosidade do Vesúvio, meu sonho de Pompeia em que ouvia Echoes de Pink Floyd na viagem de meu ácido poético, o magma tocando música, e os poetas de Pompeia, que agora eram estátuas de cinzas paralisadas por uma Medusa de lava, o magma e seu poder sobre o tempo destes corpos, um instante, o momento em que o Vesúvio tomou Pompeia e seus poetas e deu ao fogo seu poder e sua razão.

Gustavo Bastos – 30/06/2020

VIOLÃO DA VIDA

Plangente o violão
das noites estreladas,
na abóbada que
regia em vinho
seu canto rústico,

sete notas do cálice,
e a visão em céu
no êxtase final
do brilho,

o canto, entre os eflúvios
silvestres, o doce campo
que vinha de um ar suave
sobre as nuvens da cor
de meu estro,

longe na lívida canção,
o violão ponteia
na flor da idade.

30/06/2020 Gustavo Bastos

CANTO MUSICAL

Se eu toco C/E/F/G
e repito em minha
escala maior
os meus dons
maiores,
trago em meu bojo
um F# para depois
tentar uma diminuta
em dissonância
com os meus talentos,

repito no refrão
C/E/F/G
e caio numa
escala cromática
sem acidentes,

e o canto que ecoa
repete o refrão
e fecha numa coda
em B que
faz de mim
um anjo
depois do trítono.

30/06/2020 Gustavo Bastos

UMA HISTÓRIA DE ASSASSINATO

Com um certo desregramento
de minhas sensações
eu pude ver o caubói
ser  morto por um
índio apache
quando este lhe
tomou a
espingarda,

roubei o seu chapéu
e sua fivela,
peguei o seu
cigarro e fumei,

olhei o horizonte,
o índio apache
me deu uma machadinha,
com ela cortei
a cabeça do caubói,

enquanto isto,
o índio apache
dava tiros ao alto
com a espingarda
do caubói que
perdeu a cabeça,

nós fomos ao vale,
e jogamos o corpo
do caubói no precipício.

30/06/2020 Gustavo Bastos

DESEJO DE CÉU

Bem que nasci
de um certo esgar
em que descia
a estrela matutina,

caí no meio de uma rua
boêmia, sobre o voo cego
que buscava uma luz
de antanho,

mergulhado em meu
caos existencial,
eu olhei as nuvens
sobre mim
e desejei
o céu como
um pássaro.

30/06/2020 Gustavo Bastos

POEMA DA PLÊIADE

Na Plêiade brilhava
o poema com a face lunar
e a face solar,

noite e dia nos vinhos
que lhe corriam,

eu entendi destas emulsões
e eflúvios ainda no
raiar da manhã,

anotei os hemistíquios
e as notas da febre espiritual,

uma flor de êxtase
me nasceu do peito,
como um escudo
na virada do sol.

30/06/2020 Gustavo Bastos

UM DIA NO HOTEL

No Hotel, sob a luz mortiça
de meu plano de luminária,
eu sequei uma garrafa de vinho
no silêncio de meu quarto exíguo,

concisa foi a poesia
desta noite, apenas
uma estrela pacificada
sobre as visões
das paredes,
uma noite tranquila,
em que vi a minha face
iluminada,

dentre os ardores que
lancinavam o peito,
corri entre as sensações
com as palavras
saindo sob o jugo
da pena,

nas notas tiradas
do acorde final,
o relógio bateu
em seu ponteiro
e deixei o Hotel
com os cantos
da manhã.

30/06/2020 Gustavo Bastos

O ENSAIO

Datei estes poemas
quando vigiava
as sombras bêbadas
de meu estro,

lavei as mãos sobre
os versos,

quando eu olhei a praia
na vinha fulva do verão,
anotei como setas ao peito
os ensaios da coda
sob o farol
do mar,

ensaios sobre a poesia,
e um certo verso
que desata
a fervura
do coração.

30/06/2020 Gustavo Bastos

O SOL DO CREPÚSCULO

Havia no estro em que dormia
a rua, num dia chuvoso,
o início do mundo de arte.

Pelo Brooklyn, pelo rio Tâmisa,
nos jograis do teatro nô,
nas barafundas de bangladesh,
nos cemitérios de bangcoc,
nos vitrais do Vaticano,
um poeta via certas sensações
da cor do paraíso,

em Manchester a flor da indústria,
uma fábrica têxtil no tear
e os luditas que acordavam
sob o sino da manhã,

lancetei as cabeças dos operários,
andei com a minha adaga
para furar anarquistas
na comunidade de Malatesta,
golpeei com meu martelo
os falcões de Wall Street,
e roubei o corpo embalsamado
de Lênin e o joguei numa
pira com o livro vermelho de Mao,

fundei uma nova comunidade,
aonde se lia e bebia
no sol sábio do crepúsculo.

30/06/2020 Gustavo Bastos

AS PORTAS DA PERCEPÇÃO

Que sonhos têm os poetas
na noite de sono?
Oras, nas horas em que tardo
eu erro como um flâneur,
errático no campo vasto
de boêmia,

sim, por entre as portas que
vejo, as vejo abertas
ao abismo ou ao voo,
portas estranhas ao nada
e portas certas ao futuro,

sim, eu entendo também
de janelas e elas me
fazem perceber a
minha própria
visão,

sim, claro, quando sonham
os poetas, estes não deliram,
o poema é vasto como o
infinito, um universo
em que janelas e portas
se abrem em flor.

30/06/2020 Gustavo Bastos

POEMA DA VISÃO

O peixe age em sua nadadeira,
os pássaros em suas asas,
os animais em suas patas.

O homem, em seu caminho,
age por liberdade.

Neste poema você não verá
o crime contra a vida,
não há nada além do
ser livre neste poema.

Você não verá neste poema
a horda dos fracassados
e o vivo desespero
dos enfeitiçados.

Você não verá neste poema
o suicídio de um poeta,
não, você não verá
neste poema o sangue jovem
derramado no chão,
não.

Eu vejo meus peixes,
nado com eles,
vejo meus pássaros,
voo com eles,
vejo meus animais,
ando com eles.

Eu vejo os homens e as mulheres,
sou livre com eles,
os que escolheram a verdade,
não, neste poema você
não verá a mentira,
neste poema você
me verá, a luz deste
poema você verá,

você verá neste poema
a minha liberdade,

você verá neste poema
a minha verdade.

30/06/2020 Gustavo Bastos

segunda-feira, 29 de junho de 2020

FLORAÇÃO DA ALMA

Bom mesmo é ter
retratos sobre
a mesa das viagens
que foram ao fundo
da questão,

registros da alma
e suas insígnias,
fotogramas que
edificam este
filme fundante
da alma viajante
em seu próprio
eixo de mundo
e seu enigma
indecifrável,

o poema, qual explorador,
lhe reforça o dom,
a alma em sua floração
suprema e dançante.

29/06/2020 Gustavo Bastos

HORA DO PRAZER

Na refeição que preparei,
levei uns doces
depois para
ficar mais feliz
em minha senda,

oras, vejo que da receita
que anotei, tive que
inventar novos temperos
e um molho que tirei
de combinações alquímicas
que me despertaram
o ouro do saber
como um novo tipo
de sabedoria e razão
que me nascia das
mãos que aprenderam
a manusear materiais
e sonhos, minhas mãos
que ganharam novas habilidades,
e este poema risonho
que traduz a experiência
de minha refeição
e meus doces,
meu sonho de sabor
na hora do prazer.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O ABSURDO

Pensei em uma peça
de comédia em três
atos sem muitos
artifícios,
um ator em seu
monólogo
fazendo
galimatias,

um coro farsesco
fazendo sons
guturais num
proscênio pobre
e sem mobília,

o ator, depois de
tomar um ácido,
recitando ao final
seu número
qual um clown
do teatro
do absurdo.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O CANTO DA MONTANHA

Eu arrumei a minha
mala e fui rumo
ao alto da montanha,
senti a neblina
em meu peito frio,
acendi uma lareira,
descansei sob
a abóbada estrelada,
um páramo que
despertava a
minha própria noite
em notas de vinho
e fumo, este que
veio em poema
com versos delirantes
de um universo novo,
a arte da floração
pela noite e seus
sonhos boêmios,
eu, que do alto do frio
da montanha, me
senti um ser da noite
encrustado entre as alturas
dos montes e das estrelas.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O SOL QUE BRILHA

Sete pontas de sol
nos vinhos que
se desenham
nesta pintura,

os olhos lacrimejam
sob a esfera do dia claro,
quais olhos que lacrimejam
sob a emoção da tarde,
olhos que veem
o fundo da noite
e despertam no
primeiro sinal
da aurora,

sete pontas de sol,
seu brilho laranja,
seu brilho que
ilumina o poema
brumoso.

29/06/2020 Gustavo Bastos

A MÚSICA DO POEMA

Sei que tenho certos
versos que são derramados
como um rio, outros
são golpeados como
pedra, outros dançam
como música,
e uns, atônitos,
pulam e dão cambalhotas.

Não sei se os tenho
ou se eles me têm,
sim, estes poemas
tão diversos e de campos
vastos e praias loucas,
poemas que falam do mar,
do amor e da morte,
poemas que cantam
seus mistérios
em palavras.

29/06/2020 Gustavo Bastos

DEVIR

Por saber depois o que
teve antes, e não antes
o que terá depois,
o tempo dita seu ritmo próprio,
indômito e sábio,
rumo ao seu devir.

29/06/2020 Gustavo Bastos 

THE LANDSCAPE

In this landscape my
shoulders can`t stand
the heavy weight
of these shadows
turned into chaos

I have lost my memories
in this landscape
of sorrow and loneliness,

I can`t stand anymore
this poema like a photo
on the wet floor
where I see
a beast struggling
against his own
sin,

but, in the end of the travel,
I hope to see a new future
drawn by dreams of
beauty and happiness.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O SONHO DA MIRRA

Diante da mirra
que me explodia
o coração, eu te
vejo como este
incenso na noite
furiosa,

deu-se então o poema,
como um canto enfumaçado
que o ambiente absorve
nas lutas de versos
de coração e murro,

os gritos e o estudo dos
gestos e da mecânica
deste poema lhe revelam
a face mais frontal :
um poema que se acende
na noite até ao brilho
d`aurora na manhã
da fortuna.

29/06/2020 Gustavo Bastos

POEMA BAUDELAIRIANO

Peguei um trem na estação
última deste trilho,
Paris estava
em um episódio
livre na senda
da Bastilha,

eu lia novamente Baudelaire
em que me perdia no spleen
da noite tétrica,

eu vi meu vinho tinto
saborear este sonho
como um poema violeta
que voa qual águia,

diante das pinturas impressionistas
do D´Orsay, logo após
uma noite ébria, eu vi
os salões e a censura
dos que não viam
em Monet um artista,

eu reli então Baudelaire,
e na noite chuvosa
acendi meu ópio
como um refúgio
metafísico de sono.

29/06/2020 Gustavo Bastos 

DEPOIS DO FIM

As gerações se sucedem
no dom do tempo
com a precisão
que a sabedoria
nos exige,

cada gesto se enuncia
nesta sucessão
de dons,

os caminhos, bifurcados
entre dilemas, se corrompem
ou se dão em auspícios
de boa senda,

contudo, no fim de todo
caminho os mistérios
deste mar se chama
desconhecido.

29/06/2020 Gustavo Bastos

OS SONHOS DA MANDRÁGORA

Na mandrágora que rutila
em meu poema de vontade livre,
sei que o vício me corrói
as visões,

vejo em meu sonho idílico
um tanto do frescor destas
nuvens metafísicas,

tanto o ardor como a azáfama
em que o verso se mete
no bolso, lhe tenho uns
trocados a vendê-lo
com um poema roto
e risonho,

bruma que se perde
nesta fumaça do fumo,
este poema vicia
como um acorde
dissonante
na aurora
do cais.

29/06/2020 Gustavo Bastos

FOGO VIVO

Beirada do precipício,
os dons da fúria
e seus segredos
de morte,

lhe dê seu farol
e seu mar,

o poeta quer o mar
como um oceano,
e o farol que lhe dá
o brilho cerúleo
que pousa em seu
delírio de mártir,

o poeta se esforça
em seu esmero,
e produz de seu dom
a luz infinita
que lhe vê
em seu sonho
febril,

no precipício, vendo a morte
em sua face de sombra,
ele renasce em novo sol
e novo mar, como um poema
que lhe ocorre na chama
de um fogo vivo.

29/06/2020 Gustavo Bastos

DOM E DELÍRIO

Cavaleiro que percorre
o sonho violáceo
que rutila, flor
que me embriaga,
vinho das horas
do vigor que sonha,

lhe tenho à mão da escrita
as notas do fardo metafísico
que desata em verso,
e seu sonho de poesia
é o delírio que ganhou
um corpo e um espírito,
seu dom e seu farol.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O POEMA QUE DANÇA

Qual livro foi escrito
por poetas que não
sucumbiu?

A matéria do poema
soçobra naturalmente
ao seu próprio canto ébrio,

desta matéria sutil e rarefeita
está toda a sombra em que
o poeta se embebeda e cai,

eflúvios de ópio lhe tomam
o dom à máquina,
seus comandos infernais
lhe dão a mão à pena,
e o poema dança
em seus olhos
como um pássaro.

29/06/2020 Gustavo Bastos

OS DONS DO POEMA

Frente ao átrio que
enuncia sua música,
lhe elenco os setores
em que a poesia
se antevê,

seu dom se enuncia
como um ardor fundante
da alma, qual átimo
que revela a coluna vertebral
do sonho,

o poema, seu produto ardente,
revela dentro de seu sol
um tipo de luminosidade
espiritual que plana
entre os montes,
e voa ao silêncio
de uma nuvem
onisciente
que sorri
em plenitude,

defronte aos dons das artes,
o poema apenas traduz
o viver com seus
pendores e vontades,
o poema vê tudo
e dita ao poeta
seus arcanos sutis.

29/06/2020 Gustavo Bastos

ESTE POEMA

Brota na vida este senso
de dever contra os males
do mundo, este poema
não diz o que fazer,
ele apenas faz.

Este poema não
deixa dúvida,
é um poema
certo e que
se ajeita na hora
da inteligência
viva,

este poema não silencia,
ele grita e se pronuncia,

este poema não se esconde,
este poema semeia
e dá voltas no mundo,
este poema é louco
e sábio,

um poema louco e sábio,
um poema que enuncia
e revela seu estro
como uma estrela
da noite que delira.

29/06/2020 Gustavo Bastos

AS MANHAS DO JOGRAL

Jogral que se insinua
na face da morte,
faça seu número
entre os dentes
da noite infernal,
e durma seu sono
de ópio metafísico
depois de montada
a farsa dos costumes,

jogral, faça seu número
no umbral da noite
destes déspotas
e ditadores
da sombra,
faça a visão
do inferno
em seus guizos,

faça rir o rei quase morto
antes de sua queda
na guilhotina,

faça rir o mestre impostor
que simula seu ardil
com os meneios de uma
sabedoria porosa,

faça rir o poeta
como um idiota feliz.

29/06/2020 Gustavo Bastos

O INFINITO

Leve-me ao dia mais breve
que espero na ruína,
me leve ao mestre que
me dirá :
"pega teu poema
e jogue no mar".

Dias breves como a vida
perdida nas noites
breves, dias rápidos
mergulhados na velocidade
da noite,

vem, e me leve embora daqui,
para um destino que
não sei o termo,
para um fim
que me dará
talvez
o infinito.

29/06/2020 Gustavo Bastos

POEMA VIAJANTE

Pelo nosso fiel pássaro
ardi a manhã,

eu lia outros poetas
de tempos mortos,
lia filósofos como
quem consulta um
tipo de oráculo,

não sei de nada, estes sonhos
de viajante são muito delirantes,
corroboram apenas um dia infantil
na noite do mundo,

este mundo que dói,
este mundo doído
que corrompe,

a fuga, dentre os dias
sonhados, tece este poema
sob uma chuva de vinho tinto
nas noites bêbadas
de uma adega de navio,

o poema e seu tombo
com a carranca e
o casco que se espatifa
em minha última viagem.

29/06/2020 Gustavo Bastos

SOL DE POEMA

Um eremita descansava de
seu silêncio milenar,
lá no outro dia,
à outra margem,
delirava o faquir
sua meditação,

opúsculos sobre mandalas
e seus pontos de chakras,
circunlóquios de acupuntura
na faca amolada que
corta a minha carne,

por aí está os ditos do
caminho óctuplo,
um ópio de sabedoria
entre as flores tibetanas,
o bardo em lhasa
por um punhado de
sândalo em visões
delirantes de sol,

ele emerge de seu sono,
e vê o faquir desperto
ao meio-dia, enquanto
o eremita dormia
sua paz de fuga
na beira do rio
castanho que brilhava
qual auspício de poesia,

vem aqui, disse o poeta
à borboleta, os sulcos
do rio se expandindo
no delta, as veias
do rio como aberturas
ao destino do poeta,

a borboleta voou para longe,
o poeta olhou seu tempo de vida,
lhe brilhava a face
seu sol de poema.

29/06/2020 Gustavo Bastos

AS VERDADES DO SABER

Eu também disse que
a escuridão tem
segredos,

eu também sei de segredos
da sombra,

como um poeta,
eu sei de penumbras
e um sol postiço
que é verso,

sim, eu sei cantar lorotas
e declamar o mármore
de meu canto estulto
de esteta,

eu também sei dar galimatias
com meus hemistíquios,
como um bardo ébrio
que faz das girândolas
a afetação livresca
de versos escandidos
na goiva,

sim, eu sei cantar, dançar,
dar um murro na mesa,
e sei gritar no escuro
da noite o meu próprio dia.

29/06/2020 Gustavo Bastos

BILHETE DAS HORAS VINDAS

Escreve teu bilhete no caudal
das horas de bruma.

Eis o silente campo do que sou,
o mistério em seu universo abscôndito
e meu átomo que rutila
na selva da tarde,

rente à flor botânica o sal
que resiste ao golpe da morte,
leve seu manto alvo que floresce,
tinindo em sua prata que
brilha como aço em êxtase,

já, no mais alto da floração,
o cais e o mar e seus temores,
longe, lá no livro final da obra,
o elenco dos palhaços e dementes
virava a procissão do caos,
na penumbra da chuva torrencial,

o bilhete, depois eu li,
e vi que era tudo verdade,
o amor, a peste e a vida.

29/06/2020 Gustavo Bastos

AS ASAS ABERTAS

Para o começo de hoje
eu sinto as asas,
sob os escombros
eu as bato e rebato,
o renascimento que
é a obra pensa
neste voo.

Voar :
verbo que está no ar,
ao pouso seu substantivo,
e seu adjetivo é
ousado.

Jamais eu pensei
que minha queda
pudesse me cortar
o voo e as asas,

As asas, deste poema
sucinto, eu as tenho
em pleno voo,
no pouso da coda
ela é silêncio.

29/06/2020 Gustavo Bastos

domingo, 28 de junho de 2020

LIVE INSTAGRAM – PARTE III


DATA : 28/06/2020
CONTRATUALISMO EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU
1 - O HOMEM NATURAL
Rousseau busca o homem natural para tentar responder à questão da origem da desigualdade entre os homens, e se esta desigualdade era permitida pela lei natural. Esta busca de Rousseau vai em direção de algo anterior à razão, de princípios como o da conservação ou amor de si e o da piedade ou comiseração. Destes dois princípios que Rousseau localiza a origem do direito natural, regras estas que a razão restabelece posteriormente com outros fundamentos, e nos desenvolvimentos sucessivos desta razão a natureza acaba sendo sufocada.
É neste estudo do homem original que Rousseau analisa as verdadeiras necessidades e os princípios que fundamentam seus deveres, e neste sentido tenta afastar as dificuldades que se referem à origem das desigualdades, é neste estudo das bases e fundamentos do homem original que se poderá distinguir o estado de natureza e o estado social. E tal estudo de Rousseau só poderá se fazer por uma “História Hipotética”, uma vez que o conhecimento antropológico das origens do homem é insuficiente.
O homem, neste estado de natureza, se encontra numa situação semelhante a do animal selvagem, ele tem força, habilidade e saúde, e tem como vicissitudes as enfermidades naturais, as doenças, a infância e a velhice. E Rousseau coloca os males de seu tempo como obras do próprio homem, que poderiam ter sido evitadas se o homem tivesse mantido a simplicidade, pois, para Rousseau, o homem natural não precisa de remédios e nem de médicos. O homem natural vive numa relação de equilíbrio com o meio.
Para explicar do que se trata o homem natural, Rousseau primeiro o distingue do animal, e coloca a liberdade como a primeira distinção essencial deste homem natural. Rousseau vai buscar as características metafísicas e morais do homem natural. O animal age por instinto, não pode se desviar das regras que lhe são prescritas, enquanto o homem realiza as suas ações como agente livre. A consciência de sua liberdade, na escolha entre concordar ou resistir às influências da natureza, que dá ao homem natural a revelação de uma certa espiritualidade da alma, pois, enquanto a Física explica os mecanismos dos sentidos e das ideias, ela não pode explicar o poder de querer e de escolha. E outra característica que Rousseau também coloca para distinguir o homem dos animais, por sua vez, é a perfectibilidade, isto é, a capacidade de o homem reagir às circunstâncias, tal capacidade que está presente tanto no indivíduo como na espécie.
Enquanto o animal nunca muda, sempre seguindo e repetindo o seu instinto, Rousseau observa que esta capacidade de reação do homem o coloca, em suas palavras, na seguinte situação : “... com o tempo o tira desta condição original na qual passara dias tranquilos e inocentes, que seja, ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo tirano de si mesmo e da natureza”.
O homem natural vive em seu momento imediato, satisfazendo paixões instantâneas, seus projetos não vão além do dia de hoje, ele sai deste seu isolamento com a criação da linguagem, e outro fator foi o cultivo da terra, com a divisão das terras, o homem natural, que vivia de seu instinto, passa a ter uma razão cultivada, esta que é o meio necessário que o faz sair de seu estado de natureza e viver em sociedade. Rousseau via neste estado de natureza uma condição aquém do bem e do mal.
Ao final da primeira parte do Segundo Discurso, Rousseau conclui que a desigualdade não existe no estado natural. Estudar o homem natural é, para Rousseau, essencial para conhecer a civilização, as causas das mudanças e o caráter da sociedade, a dependência mútua entre os homens em sociedade, por sua vez, leva a relações de subjugação e de exploração, e Rousseau diz que esta lei do mais forte não existiria no estado de natureza.
O conceito de homem natural tem uma importância decisiva nas teorias contratualistas. Temos o indivíduo como fonte e fundamento do poder político, são pelas características deste indivíduo que irá se determinar o conteúdo das teorias construídas segundo este modelo de interpretação da sociedade, uma vez que o conceito de lei, de gênese da sociedade civil, e a noção de corpo político, todos eles serão devedores desta concepção de homem natural.
É nesta perspectiva que poderemos perceber a diferença entre os conceitos de natureza humana de Hobbes e Locke com a concepção de Rousseau. A agressividade imanente em Hobbes e a sociabilidade em Locke, contrastam com a radicalidade da ideia de Rousseau sobre o homem natural, que aparece como um ser isolado, que difere do animal somente pela perfectibilidade, numa relativização do conceito de natureza humana, uma vez que a descoberta do caráter social e histórico do indivíduo, colocando a natureza humana relativa a estas duas dimensões, tal potencialidade que só será possível de ser realizada com o indivíduo integrado a uma sociedade e a uma cultura, é quando este indivíduo está integrado a uma sociedade que ele se torna humano.
2 - DO ESTADO DE NATUREZA AO ESTADO DE GUERRA
“O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno lembrou de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente ingênuas para acreditá-lo” (Segundo Discurso, V.164).
Assim inicia Rousseau, na segunda parte do Discurso da Desigualdade, a análise do surgimento da sociedade civil. Como se chegou até este ponto é o que o autor tentará demonstrar através do desenvolvimento da ideia de propriedade ao longo do tempo, localizando aí a origem da sociedade civil. Este processo coincide com a evolução histórica das causas da desigualdade.
Apesar de possíveis rivalidades neste início, a nova situação de convivência no seio das famílias, através da reunião numa habitação comum dos maridos, das mulheres, dos pais e filhos, desenvolveram os hábitos de viver juntos, e cada família, como observa Rousseau, tornou-se uma pequena sociedade ligada for afeição recíproca, donde surge a primeira divisão do trabalho, esta baseada na diferença de atividades pelo sexo masculino e feminino. Os indivíduos agora passam a necessitar de seus semelhantes e emerge em cada região nações particulares ligadas por costumes e regras próprias.
Com o desenvolvimento da sociedade, começa a surgir a moralidade, nas palavras de Rousseau : “... desde o instante em que um homem sentiu a necessidade do socorro do outro, desde de que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs a regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas” (D.I.III, 171)
Com o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura houve a civilização do homem e se produziu a divisão do trabalho, marcando toda a história de sua subsistência e sociabilidade, e com a diversificação de atividades, estas perderam a sua integridade e foram sendo parcializadas, foi daí que surgiram diferenças e desequilíbrios, com os mais fortes e habilidosos se dando melhor, enquanto os outros tiveram mais dificuldades, foi então que começaram as desigualdades entre os homens.
A competição despertou o desejo do lucro, e isto tornou os homens falsos e artificiosos, a exploração entre os indivíduos começou a se aprofundar, e foi uma das consequências que a propriedade trouxe, foi rompida a igualdade natural entre os homens, e o poder passou a ser imposto pela força, e com os pobres reagindo e fazendo pilhagens, se produziu um estado de guerra.
Os ricos foram os mais prejudicados pelo estado de guerra, e estes então concebem o projeto em que seus inimigos viram seus defensores, fazendo inspirar-lhe outras máximas, dando a eles outras instituições, favoráveis o suficiente quanto lhes era contrário o direito natural, se institui, a partir daí, a sociedade civil, sob um pacto dos ricos. Rousseau considera esta a origem da sociedade política e das leis, que favoreceu os ricos e prejudicou os pobres, produziu a propriedade, acabando com a liberdade natural, e com a propriedade, veio a desigualdade.
Rousseau coloca como último momento deste processo, por sua vez, a instituição do governo quando se estabelecem os magistrados, ou seja, quando se entrega a particulares “a perigosa custódia da autoridade pública”, e aos magistrados a função de fazer-se respeitar as deliberações da comunidade. Tal sociedade e tal governo, surgido nestas circunstâncias e, sob este pacto iníquo, produziram a miséria e a opressão, daí surge o despotismo político. Rousseau, ao final do Discurso sobre a desigualdade, faz alusão aos legítimos princípios que deveriam conter o verdadeiro pacto social que fundaria uma sociedade baseada na igualdade e liberdade e que deverá ser o primordial objetivo de sua mais conhecida obra : Do Contrato Social.
Link da live : Live Instagram de 28/06/2020 – domingo :
Tema : Rousseau : O homem natural e do estado de natureza ao estado de guerra.: https://www.instagram.com/p/CCAJQryJdN6/
Link youtube : Rousseau e o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens : https://www.youtube.com/watch?v=TffG7qwsxkI
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.





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ROUSSEAU : BIOGRAFIA E PENSAMENTO

Rousseau nasceu em Genebra, na Suíça, em 1712, numa família de refugiados franceses protestantes. Rousseau assinava as suas obras como “Cidadão de Genebra”. Ficou órfão ainda muito cedo, e levou uma vida errática, trabalhando como balconista, entalhador e professor particular. Rousseau saiu da obscuridade em 1749, ganhando um concurso de ensaios, e em 1755 publicou seu primeiro trabalho político importante, o Discurso sobre a desigualdade.
Em 1756, Rousseau passou um período no campo, até 1762, aonde produziu suas obras mais importantes, em que produziu Do Contrato Social, Emílio e o romance A Nova Heloísa, que despertaram a ira de monarquistas e religiosos, e as duas obras foram desprezadas por autoridades e intelectuais, sendo queimadas publicamente em Paris e Genebra. Foi perseguido e morreu em 1778.
Rousseau produziu um pensamento que contribuiu muito para a teoria política moderna e também para a prática da política concreta moderna, refletindo como o homem poderia viver com liberdade dentro da sociedade, numa concepção otimista da natureza humana, a qual teria, para ele, uma bondade inata. Rousseau dizia que os homens eram iguais socialmente, mas que os sistemas sociais que se fundavam na propriedade privada produziram a exploração e a desigualdade.
Rousseau defendia uma democracia direta, inspirado na cidade-Estado em que nasceu, Genebra, aonde esta poderia ser aplicada, e sua defesa da liberdade do homem em seu estado natural levou Rousseau a ter um importante papel para abrir caminho para os direitos humanos. Diante dos filósofos que o precederam, temos o jurista e filósofo holandês Hugo Grotius até o inglês Hobbes, que conceberam noções sobre direitos em termos de posse, poder ou de construções societárias legais. A noção de liberdade defendida por Rousseau se reflete muito nos documentos do século XX, como a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E seu nome foi uma inspiração para a Revolução Francesa de 1789, tendo um de seus líderes, Robespierre, grande admiração por ele.
Rousseau dizia que o homem era bom por natureza, mas que sofria influência da sociedade e se corrompia, e um dos sintomas que demonstrava a falha da civilização era a desigualdade, que seriam de dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser humano e aquela causada por circunstâncias sociais. A desigualdade social, muito ligada à propriedade privada, suprimiu a liberdade dos indivíduos, sendo substituída por convencionalismos sociais baseado nas aparências e na polidez. E o caminho, para Rousseau, que faria o homem recuperar a sua liberdade, seria o autoconhecimento. Mas isso não se dá por meio da razão, e sim da emoção, e traduz-se numa entrega sensorial à natureza.
A ideia do bom selvagem de Rousseau, por sua vez, era uma idealização teórica, que era a ideia do ser humano em seu estado natural, sem ter sofrido as convenções e constrangimentos sociais, era um modo de Rousseau apontar o caminho para a felicidade humana, portanto, não era uma ideia para decretar a falência da civilização, mas para propor um caminho melhor e mais autêntico. E a garantia para a liberdade de cada um em sociedade, por sua vez, seria feita pela democracia, num regime em que todos se submetem à lei, esta que foi elaborada de acordo com a vontade geral.
Rousseau, com a sua ideia de que havia uma bondade inata no homem natural e que a sociedade corrompia este seu estado de natureza, coloca que o surgimento do Estado na História representava um contrato social que os homens fazem para obter segurança e a defesa dos direitos, mas que acaba por se tornar um meio de concentração de poder.
Rousseau é um crítico de dois filósofos contratualistas, que são John Locke, com seu parlamentarismo, como solução para a organização social, e Thomas Hobbes, que defendia a monarquia. Rousseau entendia que os homens deveriam participar da criação das leis para ser verdadeiramente livre, numa proposta de democracia direta, dizendo que Hobbes e Locke tinham propostas em que as leis eram elaboradas por uma elite, que as faziam para defender seus interesses particulares e gerando a desigualdade.
Rousseau publica simultaneamente, em 1762, suas duas obras principais, Do Contrato Social, em que expõe sua concepção de ordem política, e Emílio, um tratado sobre educação, no qual prescreve o passo-a-passo da formação de um jovem fictício, do nascimento aos 25 anos. Rousseau queria formar tanto o homem como o cidadão, tendo a dimensão política como crucial em seus princípios de educação.
Rousseau, entre seus pares do Iluminismo, destoava em sua reflexão filosófica e ideias em relação com eles, pois, por exemplo, Voltaire e Denis Diderot, e todos os iluministas, elevavam a razão à primeira categoria do conhecimento e de entendimento da existência, valorizavam a cultura acumulada ao longo da história da humanidade, enquanto Rousseau defendia a primazia da emoção e afirmava que a civilização havia afastado o ser humano da felicidade.
Enquanto Diderot organizava a Enciclopédia, que pretendia sistematizar todo o saber do mundo segundo uma perspectiva iluminista, Rousseau pregava a experiência direta, a simplicidade e a intuição em lugar da erudição, e Rousseau também rejeitava o racionalismo ateu e recomendava a religião natural, pela qual cada um deve buscar Deus em si mesmo e na natureza. 
Sugestões de filmes e documentários :
Jean Jacques Rousseau - documentário Filósofos e a Educação : https://www.youtube.com/watch?v=aU-j6Y5-Sfw&t=6s

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.




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TEMA : ILUMINISMO

O Iluminismo foi um movimento intelectual e filosófico que se expandiu pela Europa durante o século XVIII, no chamado século das luzes, em que a ilustração (a busca de conhecimento) se tornou uma das metas e lemas do movimento. Colocando a razão como o centro da autoridade intelectual e para a legitimidade das ideias, o Iluminismo propagou ideais de liberdade, fraternidade, a ideia de progresso e a separação da Igreja e do Estado, numa concepção de Estado laico e de um governo constitucional.
O Iluminismo também era caracterizado pela crença no conhecimento científico. Por sua vez, o movimento, na França, se colocou como defensor da liberdade individual e de uma ideia de tolerância religiosa contra a monarquia absolutista e os dogmas fixos da Igreja Católica, e o lema que se expandiu pelo Iluminismo, nesta sua valorização do conhecimento e da razão, foi a atitude que era traduzida pela frase : Sapere Aude (Atreva-se a conhecer).
O Iluminismo propagou ideias que foram desestruturando a autoridade monárquica do Antigo Regime (a monarquia absolutista) e também foram destituindo os dogmas da Igreja de sua legitimidade inquestionável, preparando o caminho para as revoluções que ocorreram durante os séculos XVIII e XIX. O movimento do Liberalismo político e econômico, por exemplo, e também do neoclassicismo, são ambos tributários e herdeiros do movimento do Iluminismo.
A era que precedeu o século das luzes do Iluminismo, o século XVIII, foi a era da Revolução Científica do século XVII. E dentre os filósofos que precederam e influenciaram os iluministas estão Francis Bacon, René Descartes, John Locke e Baruch Spinoza. As figuras proeminentes do movimento iluminista, por sua vez, foram Cesare Beccaria, Voltaire, Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, David Hume, Adam Smith e Immanuel Kant.
A influência iluminista no terreno político, por sua vez, fez com que surgissem os chamados déspotas esclarecidos, que foram monarcas que tentaram aplicar alguns dos ideais iluministas na política e na disseminação da tolerância religiosa, governantes estes que foram Catarina II da Rússia, José II da Áustria e Frederico II da Prússia. E tivemos também Benjamin Franklin visitando a Europa várias vezes, contribundo para os debates científicos e políticos e trazendo estas novas ideias para a Filadélfia, o que resultou no fato de Thomas Jefferson seguir estas ideias e incorporar isto à Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776, e que fez James Madison incorporar, também, estas ideias na concepção da Constituição dos Estados Unidos em 1787.
Dentre as publicações de destaque do movimento iluminista estão a Enciclopédia, um projeto ambicioso de compilação universal do conhecimento humano, o qual foi publicado entre 1751 e 1772, em 35 volumes, compilado por Denis Diderot, D´Alembert, este até 1759, e por um grupo de 150 cientistas e filósofos. Outras publicações importantes e emblemáticas do Iluminismo estão : o Dicionário filosófico, Cartas Filosóficas, ambas obras de Voltaire, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Do Contrato Social, ambas obras de Jean-Jacques Rosseau, A Riqueza das Nações, de Adam Smith, O Espírito das Leis, de Montesquieu. Por sua vez, o Iluminismo, com seus ideais, foi importante para inspirar a Revolução Francesa, que eclodiu em 1789. E depois da Revolução na França, o Iluminismo foi seguido pelo movimento intelectual que seria chamado de Romantismo.
O filósofo Immanuel Kant, como resposta à questão "O que é o iluminismo?", descreveu, de maneira lapidar, a atitude iluminista : O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento, mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do iluminismo.
Na esfera econômica, por sua vez, o iluminismo vai influenciar um pensamento que vai contra o mercantilismo, fruto do absolutismo, tendo como primeiros críticos e contestadores, o grupo dos fisiocratas, estes que pensavam que a riqueza viria da agricultura, da mineração e da pecuária, deixando de lado o comércio, que, para os fisiocratas, não passava de troca de riquezas, e eram os fisiocratas, também, contra a intervenção estatal na economia, indo mais uma vez contra a doutrina mercantilista. A economia deveria ser regida por leis naturais, e a frase que define melhor o pensamento fisiocrata é: Laissez faire, laissez passer (Deixai fazer, deixai passar).
A fisiocracia influenciou pensadores como Adam Smith, pai da economia clássica. A economia política como ciência autônoma não existia naquela época. O pensamento econômico era fruto do trabalho assistemático de intelectuais que, ocasionalmente, se interessavam pelo problema: um dos principais teóricos da escola fisiocrata era um médico, François Quesnay.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na França em 1789, foi um dos muitos documentos políticos produzidos no século XVIII sob a inspiração do Iluminismo. A época do Iluminismo foi marcada por transformações políticas que consolidaram a formação dos estados-nação, a expansão de direitos civis e a redução da influência de instituições hierárquicas como a nobreza e a Igreja. O iluminismo forneceu o influxo necessário para a formação do mundo moderno, tais como a Revolução Francesa, a Constituição polaca de 1791, a Revolução Dezembrista na Rússia em 1825, o movimento de independência na Grécia e nos Balcãs, bem como, naturalmente, os diversos movimentos de emancipação nacional ocorridos no continente americano a partir de 1776, e também está o Iluminismo associado ao surgimento das principais correntes de pensamento que se expandiram durante o século XIX, como o liberalismo, o socialismo, e a social-democracia.

Sugestão de filme ou de documentário :
Vídeo Aula-05-#,Jean Jaques Rousseau, Vida e Obra e Contribuição para a Educação : https://www.youtube.com/watch?v=t9IBkOu-oh4

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.





MATILDE CAMPILHO E A POESIA COSMOPOLITA

“A variedade de imagens, lugares e referências torna Jóquei um excelente caleidoscópio poético”

Matilde Campilho segue uma rota poética que une em sua linguagem as diferenças entre o português falado de Portugal e o do Brasil, esta duplicidade na verdade é muito mais uma complementaridade, uma ampliação da voz poética de Matilde num campo próprio, uma caso raro de cosmopolitismo lusófono, se utilizando de sua vivência pessoal, de sua biografia nômade, e refletindo isto em sua escrita que produz uma poesia que abrange este espectro amplo da língua portuguesa, de Portugal e do Brasil, e também dos países africanos, uma vez que Matilde também esteve em Moçambique.
Neste amplo espectro da língua portuguesa que a poesia de Matilde se produz e se multiplica, temos ainda o flerte com a língua inglesa, eventualmente, e suas imagens cosmopolitas são um trânsito poético entre lugares reais e imaginários, o Maracanã, New Jersey, o arrozal de Vang Vieng, Itaparica, Tavizkam, Sevilha. Matilde tem sua biografia feita de viagens e sua poesia é um espelho deste modo de vida.
Matilde estudou em Milão, trabalhou em Madri e Moçambique, veio ao Rio de Janeiro para ficar apenas quinze dias e acabou ficando três anos, e sua poesia opera na desconstrução dos modelos tradicionais e em uma cadência musical que dá a característica de sua poesia como algo de leitura agradável. A vivacidade de seus escritos justifica o título de seu livro, Jóquei, que evocam movimento, como a cavalgada de um jóquei.
Entre Rio e Lisboa, que são cidades diferentes e com algumas semelhanças, dependendo do que se vê, Jóquei é um livro que mistura as estações portuguesas e brasileiras, e como escreve Pedro Mexia, os poemas deste livro são sobre tudo o que se é capaz de imaginar: «botecos e viagens, Eliot e o Financial Times, a vibração de um corpo humano e um emblema da Federação Uruguaia de Esgrima». Na leitura do livro esta mistura não define onde está o começo da versão brasileira ou de uma versão portuguesa destes poemas, Jóquei opera muito mais como um híbrido cultural e poético, com uma amálgama sonora e musical.
Os lugares são variados, vai desde o Brasil até o Brooklyn. A variedade de imagens, lugares e referências torna Jóquei um excelente caleidoscópio poético e um produto final polifônico e rico de amplitude temática, num escopo que aqui toma como principal referência este diálogo vivo entre Brasil e Portugal numa poeta que une sua biografia e escrita nestes dois mundos.
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POEMAS :

VERMELHO VIVO : O poema ostenta a cor vermelha em seu trajeto, ela se mescla ao negro, e o poema é todo vivo, rascante, certeiro, no que temos : “Fiquei longe de mim/entenda/sou um raging bull/quando você aparece/ostentando/sua aorta transparente/sua válvula semilunar/seus septo latejante/Quando você aparece/fazendo soar os guizos/vermelhos de sua clavícula/enquanto caminha/sobre o pavimento/de Terrorland”. A musicalidade se junta aqui a uma estranheza temática, um conjunto que flui com liberdade num traço e dicção próprios, com a assinatura de Matilde, no que temos : “Retire seu timbre/feito de B/F/Am/C#/da sala de cinema/onde por acaso/passou galopando/John Wayne/galopando e gritando” (...) “Retire sua mão/do rosto do dervixe argentino/que há quatro anos decidiu/dizer os 1.500 nomes/de Alá todas as manhãs”. A ordem de saída do poema para seu interlocutor, um poema tenso, e logo evocatório de uma esperança, própria da poesia, no que temos : “e quem sabe/nalgum momento/a canção do deserto/soará mais aguda/mais prolongada/e quem sabe/nalgum momento/chegará aos ouvidos/do traficante de joias/de New Jersey” (...) “Sim as pessoas mudam/Tente retirar-se/nem que seja temporariamente/da figuração dos comerciais/que passam no break/da novela das oito/faz muito tempo que/ninguém assiste/mas vai que acontece/uma tragédia qualquer/o presidente interrompe/todas as emissões/e as antenas de 36 MHz/mantêm de qualquer forma/a publicidade/isso pode acontecer/tudo pode acontecer”. A importância do inaudito como leitmotiv deste poema aqui fica evidenciada, no que vem : “Fique longe da padaria/Fique longe do ringue de curling/Fique longe da cabina de controle/do aeroporto de Queensland” (...) “Fique longe/porque entenda/Você é vermelho e negro/seu tórax tem maior diâmetro/que a concentração/da torcida do Flamengo/toda metida no Maracanã/você é tudo vermelho e negro/Fique longe/não se  chegue/Porque ninguém gosta/ninguém está a fim/de ver um touro enlouquecido/dando marradas cegas/nos caixotes da mercearia/nas tabuletas de trânsito/nas motocicletas estacionadas/Fique longe/ninguém gosta/de saber desperto/e à solta na cidade/um touro bravo/a quem um dia enterraram/a espada de ouro/na linha dorsal.”. Este último trecho deste poema é grandioso, na imagem indesejável da violência cega de um touro indômito, que a poeta Matilde diz e avisa que ninguém quer.

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR : Este poema tem uma escritura política, uma dicção que se move no mundo duro de uma guerra e de uma luta revolucionária, no que vem : “Lembro-me muito bem do tal cantor basco/que costumava celebrar a chuva no verão/Não ligava quase nada para as conspirações/que recorrentemente se faziam ouvir/debaixo das arcadas noturnas da cidade” (...) “Foi já depois do fascismo, um pouco antes/da democracia enfaixada em magnólias/O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos/me ensinaram que se deve aproveitar a época/de transição para destrinçar o brilho/As revoluções sempre foram o lugar certo/para a descoberta do sossego :/talvez porque nenhuma casa é segura” (...) “ou talvez porque depois de encarar uma arma/finalmente seja possível entender/as múltiplas possibilidades de uma arma.”. O tema da coragem, da luta, de se conhecer a face extrema da morte no estudo de campo diante de uma arma e seus significados impressos quando seu próprio corpo está exposto. O poeta aqui encara a arma, lhe depreende a face sinistra, suas possibilidades.

PRINCIPADO EXTINTO : O poema aqui se desdobra, fala de si mesmo, num ensaio de meta-poesia, e que nesta referência que coloca o poema tal qual, em si mesmo, abre seu referencial múltiplo, se reafirmando como poema que é, neste trajeto todo, no que temos : “Isto é um poema/fala de amor/ou do medo do amor/Fala da morte/ou do fim da amálgama/rosto voz alma e cheiro/que é a morte/Isto é um poema/tenha medo/Fala dos peregrinos/que atravessam avenidas”. Temas universais do amor e da morte, fala também da devastação : “Isto aqui é um poema/fala da permanência inútil/de um coração devastado/de uma floresta devastada/de uma corrida devastada”. O poema segue, e faz novas digressões, no que temos : “Isto é um poema/fala da aparição do inverno/fala da fuga dos albatrozes/fala do punhal sobre a mesa”. O poema se reafirma, e tece novas imagens de um cotidiano : “Fala do desaparecimento/Claro que é um poema/fala do toque de saída/no colégio de Île de France/e das 39 saias das meninas/esvoaçando sem vontade/na direção do cais de ferro”. Agora o poema vai do cotidiano e se volta novamente para temas universais, flertando com a metafísica, na palavra saudade, por exemplo, e o poema vem : “Fala da palavra saudade/ou da palavra terremoto/fala do olho que tudo via”. O poema aqui está se estendendo, e chega a seu extremo, que terá seu clímax e sua coda, um golpe seco que se encerra com a palavra loucura : “Nada mais no mundo importa/Isto é que é poema/Fala do cheiro das flores/e da injustiça da existência/das flores na cidade/Fala da dor excruciante/meu bem excruciante/que faz até desejar/o fim do poema/o fim da palavra amor/que após o disparo/se espelha apenas/na palavra loucura.”.

A VOLTA NO CADILLAC DE BILLY J. : O poema em prosa de Matilde, com dicção própria, aqui aparece mais uma vez, e com sua fluidez usual, no que temos : “O que acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas. Enterro-me noutras clareiras para que assim possa escapar-me da minha própria ideia de amor. É que eu tenho, como alguém disse, um amor descrito a garatujas sobre folhas de amendoeira.”. Matilde reflete sobre poemas mais organizados, longe de seu caos, no que temos : “Acontece que os poemas dos outros são tão direitinhos, tão justamente metidos no interior das linhas de separação, canções tão perfeitas, que em nada remetem para o nível real do acontecimento. Não sei se alguém terá reparado que numa tarde de dezembro eu pisquei o olho a J. Alfred Prufrock.”. A referência aqui em T.S.Eliot, e a prática de guardar poemas, no que temos : “É, um homem guarda poemas porque sabe que em qualquer momento vai ter que fazer-se à corrida : subitamente tudo arde e então a única possibilidade é o desvio.”. Matilde aqui se debruça, e a imagem familiar ganha uma riqueza inaudita : “Fico empoleirado no parapeito da janela nortenha, atirando os dados de uma mão para outra, pedindo por favor o número seis. As criancinhas passam jogando no corredor, folhos de camisa esvoaçando muito mais depressa que seus cabelos, e eu ali de testa encostada no vitral. Quando me sair o número seis eu sei que Lázaro nunca mais morrerá. Sim, o amor veio e fez sua saudação.”. Matilde guarda alguns poemas, e tece em metáfora rica sua vida e seu cotidiano, no que temos : “O que acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas, resmas de papel de arroz empilhadas na sala nortenha. A casa está sossegada porque tem que estar. Pergunto-me se alguém possui uma pedra. Se alguém acredita verdadeiramente no verão.”. Referência musical, e a reflexão sobre um novo tempo, uma nova realidade, no que temos : “Penso na canção que diz que a saudade é o revés de um parto, ó metade amputada de mim. Haverá tempo, haverá tempo. O fumo amarelo de janeiro fica esfregando suas costas nas janelas desta casa. Haverá tempo para cometer um crime, haverá tempo para a procriação. Tempo para lembrar a rede onde descansou o índio apaixonado, aquele que fica arrancando o pó das entranhas das unhas do leopardo. Tempo para encher a taça do filho de Deus e tempo para discernir o amor do que já é costume. Da janela eu vejo as ondas rebentando no olho do Vesúvio. Peço a meus filhos que se preparem para a estalada na cara, para o fechar brutíssimo da porta do automóvel, para o vômito que vem do fígado, para o rosto escancarado na decepção. O que importa é ouvir a voz que vem do coração – seja o que vier, venha o que vier.”. O preparo para a vida, aos que já enfrentam esta e a vão enfrentar, o preparo necessário do poeta e dos seus, o enfrentamento necessário da verdade da vida, a intempérie, e a esperança, aqui condensada na palavra verão, no que temos : “Sim, alguém acredita verdadeiramente no verão. Se vires tua mãe diz-lhe que ainda sou o rapaz de calças arregaçadas, e que a traição foi apenas o destino da fuga. Daqui desta janela nortenha eu vejo o reflexo da água que se alojou em minhas rugas, e nem por isso eu sigo chorando. Venha o que vier, fico guardando alguns poemas. Certas formas nos pertencem muito para além da memória.”. Matilde guarda alguns poemas, se prepara para o inverno e para o verão, o que importa é reconhecer o inaudito e o esperado, sentir os gostos opostos da desdita e do sucesso, venha o que vier, e crer verdadeiramente no verão e a esperança que é um tipo de sol ou verão que teima em brilhar.

POEMAS :

VERMELHO VIVO

Fiquei longe de mim
entenda
sou um raging bull
quando você aparece
ostentando
sua aorta transparente
sua válvula semilunar
seus septo latejante
Quando você aparece
fazendo soar os guizos
vermelhos de sua clavícula
enquanto caminha
sobre o pavimento
de Terrorland
Veja se desocupa
as linhas telefônicas
que desde há 20 anos
vão de Girona a Sant Jaum
eu quero fazer a ligação
Retire seu timbre
feito de B/F/Am/C#
da sala de cinema
onde por acaso
passou galopando
John Wayne
galopando e gritando
suado como o javali
que foi oferecido
a sua família
em vésperas de
ressurreição
do menino crucificado
de cabeça para baixo
Retire sua mão
do rosto do dervixe argentino
que há quatro anos decidiu
dizer os 1.500 nomes
de Alá todas as manhãs
se você o deixar em paz
daqui a poucos meses
teremos 5.000 invocações
da palavra santa
no Boulevard Las Heras
isso pode muito bem ser
a salvação
do glaciar Perito Moreno
pode muito bem ser
um empurrão às partículas
arenosas do Sahara
e quem sabe
nalgum momento
a canção do deserto
soará mais aguda
mais prolongada
e quem sabe
nalgum momento
chegará aos ouvidos
do traficante de joias
de New Jersey
que at last assumirá
sua vocação de profeta
Sim as pessoas mudam
Tente retirar-se
nem que seja temporariamente
da figuração dos comerciais
que passam no break
da novela das oito
faz muito tempo que
ninguém assiste
mas vai que acontece
uma tragédia qualquer
o presidente interrompe
todas as emissões
e as antenas de 36 MHz
mantêm de qualquer forma
a publicidade
isso pode acontecer
tudo pode acontecer
então evite
Evite enterrar
seus pés
no arrozal de Vang Vieng
claro que é muito gostoso
o ondular líquido
das plantações
se roçando nos tornozelos
o corpo tem memória
e água é igual a corpo
então é gostoso
mas convém ter em mente
que um objeto estranho
se entrosando com outro
sempre vai perturbar
o contínuo curso da natureza
Fique longe da padaria
Fique longe do ringue de curling
Fique longe da cabina de controle
do aeroporto de Queensland
Fique longe das lonas
dos painéis que anunciam
a nova marca de tabaco de seda
Fique longe da prancha
da piscina de sete metros
por oito no último dia de maio
Fique longe
porque entenda
Você é vermelho e negro
seu tórax tem maior diâmetro
que a concentração
da torcida do Flamengo
toda metida no Maracanã
você é tudo vermelho e negro
Fique longe
não se  chegue
Porque ninguém gosta
ninguém está a fim
de ver um touro enlouquecido
dando marradas cegas
nos caixotes da mercearia
nas tabuletas de trânsito
nas motocicletas estacionadas
Fique longe
ninguém gosta
de saber desperto
e à solta na cidade
um touro bravo
a quem um dia enterraram
a espada de ouro
na linha dorsal.

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR

Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego :
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente seja possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.

PRINCIPADO EXTINTO

Isto é um poema
fala de amor
ou do medo do amor
Fala da morte
ou do fim da amálgama
rosto voz alma e cheiro
que é a morte
Isto é um poema
tenha medo
Fala dos peregrinos
que atravessam avenidas
de sobretudo e óculos
carregando flores invisíveis
e chorando mudos
Isto aqui é um poema
fala da permanência inútil
de um coração devastado
de uma floresta devastada
de uma corrida devastada
logo depois do disparo
da arma de 40 peças
que soltou a bandeirinha
e assim mesmo se desfez
Isto é um poema
fala da aparição do inverno
fala da fuga dos albatrozes
fala do punhal sobre a mesa
e do absurdo do punhal
feito de madeira e pedra
sobre a mesa do jantar
Fala do poder da erosão
que afinal incide sobre
pele e nervo e osso e olho
Fala do desaparecimento
Fala do desaparecimento
Claro que é um poema
fala do toque de saída
no colégio de Île de France
e das 39 saias das meninas
esvoaçando sem vontade
na direção do cais de ferro
Fala do pânico do corpo
que esbarra em si mesmo
no espelho pela manhã
e do urro silencioso
que nenhum vizinho
escuta mas que ainda
assim reverbera sem dó
até a hora final
fala do vômito que advém
dos gestos repetidos
prolongados assim ad astra
até que o sono apague tudo
Fala da palavra saudade
ou da palavra terremoto
fala do olho que tudo via
deixando lentamente de ver
até mesmo a cara de Jack Steam
o porteiro da loja de discos
onde toca a canção de Chavela
Nada mais no mundo importa
Isto é que é poema
Fala do cheiro das flores
e da injustiça da existência
das flores na cidade
Fala da dor excruciante
meu bem excruciante
que faz até desejar
o fim do poema
o fim da palavra amor
que após o disparo
se espelha apenas
na palavra loucura.

A VOLTA NO CADILLAC DE BILLY J.

O que acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas. Enterro-me noutras clareiras para que assim possa escapar-me da minha própria ideia de amor. É que eu tenho, como alguém disse, um amor descrito a garatujas sobre folhas de amendoeira. Um amor estremunhado que não sabe nem fritar seus próprios ovos no começo da manhã. Acontece que os poemas dos outros são tão direitinhos, tão justamente metidos no interior das linhas de separação, canções tão perfeitas, que em nada remetem para o nível real do acontecimento. Não sei se alguém terá reparado que numa tarde de dezembro eu pisquei o olho a J. Alfred Prufrock. Aquele restaurante todo coberto de serradura, suspenso numa escarpa, está comigo até hoje. Thomas Stearns pediu ostras e depois descreveu as ostras e eu ainda estou brincando com os pedacinhos de conchas. Quando veio o lacaio eterno, todo vestido de negro e branco, sugeri-lhe que por favor me atasse os cordões dos sapatos. É, um homem guarda poemas porque sabe que em qualquer momento vai ter que fazer-se à corrida : subitamente tudo arde e então a única possibilidade é o desvio. Para além das ostras, dos hotéis baratos, do universo todo espremido dentro de uma bola de boliche, para além das xícaras de chá e da cabeça de Lázaro sobre a bandeja de ouro, veio ainda aquele alsaciano esfomeado, uivando como uma parada militar. Nesse dia alguém tocou Mahler num serrote e acho que estou chorando até hoje. Fico empoleirado no parapeito da janela nortenha, atirando os dados de uma mão para outra, pedindo por favor o número seis. As criancinhas passam jogando no corredor, folhos de camisa esvoaçando muito mais depressa que seus cabelos, e eu ali de testa encostada no vitral. Quando me sair o número seis eu sei que Lázaro nunca mais morrerá. Sim, o amor veio e fez sua saudação. Não foi cortês nem bruto, não se apresentou como uma mudança de estação. Foi qualquer coisa como a entrada do fantasma de Platão no esqueleto de Aristóteles. O q          ue acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas, resmas de papel de arroz empilhadas na sala nortenha. A casa está sossegada porque tem que estar. Pergunto-me se alguém possui uma pedra. Se alguém acredita verdadeiramente no verão. Pergunto-me sobre o estado do tigre bengalês ali perto da região de Hyderabad e repito o nome Rikki-Tikki-Tavi até a exaustão. Sei que todo peregrino é poupado, principalmente se for daqueles que fritam um ovo pela manhã. Desta janela eu vejo a esposa do mouro indeciso e vejo como ela fica bordando os nomes dos profetas no manto encardido – tudo para esquecer o caminho das possibilidades na cabeça de seu amor. Vejo as notas crípticas deixadas à sorte nas margens do Corão, recados de paixão há muito tempo abandonados. Vejo grafias escritas a vapor no muro que um dia dividiu Berlim, e nalgumas horas me pergunto sobre o cachorro que foi deixado do lado de lá. Penso na canção que diz que a saudade é o revés de um parto, ó metade amputada de mim. Haverá tempo, haverá tempo. O fumo amarelo de janeiro fica esfregando suas costas nas janelas desta casa. Haverá tempo para cometer um crime, haverá tempo para a procriação. Tempo para lembrar a rede onde descansou o índio apaixonado, aquele que fica arrancando o pó das entranhas das unhas do leopardo. Tempo para encher a taça do filho de Deus e tempo para discernir o amor do que já é costume. Da janela eu vejo as ondas rebentando no olho do Vesúvio. Peço a meus filhos que se preparem para a estalada na cara, para o fechar brutíssimo da porta do automóvel, para o vômito que vem do fígado, para o rosto escancarado na decepção. O que importa é ouvir a voz que vem do coração – seja o que vier, venha o que vier. Meus queridos filhos com cara de curumins, essa cicatriz que se enterrou em vossas testas é um fogo que não para de brotar. Que ninguém vos diga que um pai sabe de tudo – vosso pai andou pelo sertão da monotonia e depois achou a mulher de carvão e fez a tempestade nascer do peito do anjo mais brigão da aldeia. Foi a tarefa mais árdua que um escavador vestido de suspensórios poderia ter atravessado – e ele ainda faz perguntas. Alguém possui um vaso? Alguém enterra o arroz na praia de São Teotónio para ver depois de nascer o carvalho? Alguém distingue o ocre do surgimento do vermelho? Mova-se com calma, Tomé. Segure-se, Benjamin. Veja se ama seu homem, veja se nunca trai a família de seu homem. Reze a novena das irmãzinhas que vão em fila até Sevilha. Sim, alguém acredita verdadeiramente no verão. Se vires tua mãe diz-lhe que ainda sou o rapaz de calças arregaçadas, e que a traição foi apenas o destino da fuga. Daqui desta janela nortenha eu vejo o reflexo da água que se alojou em minhas rugas, e nem por isso eu sigo chorando. Venha o que vier, fico guardando alguns poemas. Certas formas nos pertencem muito para além da memória.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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