PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

MINHA LUTA COM O SOL-PENTAGRAMA

(CONTO-POEMA) – INSPIRADO EM 2 SONHOS QUE TIVE

1° SONHO

Estava viajando de ônibus de madrugada e no meu MP4 tocava “Pharao`s Dance” de Miles Davis do seu álbum de Jazz Fusion “Bitches Brew”, já estava dormindo e no meio da música me vi nas areias de uma praia ou duna lutando com um ser invisível, eu lutava contra esse ente maligno rolando nas areias enquanto o trompete de Miles dava seus gritos agudos entre os graves do baixo, parecia tão real, não me lembro qual foi o fim do sonho, lembro desse trecho, talvez pela música visceral de fundo, com certeza pela combinação de luta espiritual com fundo musical, certamente pelo trompete, certamente por Miles, e sem dúvida pelo meu amor pelo Fusion como abertura espiritual, e não existe tal abertura sem luta espiritual, os nossos demônios estão sempre despertos, a luta pode ser de vida e morte, lutei na areia pela minha vida, e o trompete de Miles Davis estava lá, o terceiro olho do meu espírito se abriu com Pharao`s Dance, linguagem cifrada, hieróglifo do ser eterno, eu lutei com o assassino, eu venci o suicídio, eu despertei depois da música e me senti vivo, era duna ou praia, não me lembro, mas era areia, era eu e o inimigo lutando ferozmente, era o trompete cercando todo o enredo de que não lembro o fim e nem sei o porquê.

2° SONHO

Mais uma vez estava viajando de ônibus de madrugada e no meu MP4 tocava, desta vez, “Not To Touch The Earth” do The Doors. Parecia que eu via um sol naquele formato inca, não tenho certeza, o que marcou o sonho foi que estava na praia, conseguia ver o mar, e do nada, com o Doors entrando em meus tímpanos, e a introdução do baixo forrando a cena, vi o sol inca ficar vermelho, e dentro do círculo de fogo formar-se um pentagrama de cabeça para cima (não era o invertido do Satanismo) ... o baixo orgânico tocando, not to see the sun ... e, de súbito, o sol-pentagrama vermelho começa a descer em linha reta, uma vertical psicodélica no horizonte, este sol inca desce ao chão, o mar, sei lá,  a descida é em velocidade uniforme, como se fosse o movimento de um ser consciente, e depois tem um lapso e novamente acordo, e a memória viva me lembrando da imagem que tinha presenciado, o sonho “run, run, run, run with me ....”, que coisa doida, este foi o segundo sonho.

ESCLARECIMENTO:

Por um tempo a minha memória me enganou e achei que estes dois sonhos eram um só, donde tirei a minha ideia de luta com um sol-pentagrama, mas pela música lembrei que eram duas estórias diferentes, as músicas eram diferentes, isso me fez lembrar que foram duas ocasiões diferentes, mas vou seguir aqui um relato ficcional inspirado nestes dois sonhos, usando a imagem de minha memória traída como se se tratasse de um único sonho, vou romantizá-lo, mas o sonho bruto já está acima relatado, agora vou juntar ao signo psicodélico uma estrutura narrativa em forma de um conto-poema. É só seguir o curso da pena, a seguir ...



CONTO-POEMA:

   Fui seguindo viagem rumo às dunas, saí de minha cidade no início da semana, queria ver o mar aberto e a abóbada celeste brilhosa das vilas do interior, as dunas eram o caminho mais poético para o mar. Levava a minha mochila com livros e uma mala com roupas, acordei cedo pela manhã e fui à rodoviária, cheguei bem cedo em busca do meu sonho que queria ver, em busca do segredo das areias quando se anda numa duna com o pé queimando, com os olhos buscando o horizonte depois de um certo trecho da caminhada, o momento mágico em que a montanha de areia e vento deixa entrever um risco de mar, é ali aqui o horizonte, é acolá logo lá o horizonte, o dia de verão perfeito, o mar azul cristalino, os olhos serenos ao beijarem o risco no fim da visão, o horizonte e sua fuga. Que vastidão! Era assim que esperava que fosse a chegada ao meu destino, um poeta mambembe em busca de um sonho de areia, e depois deste sonho de areia, um rasgo da visão que olha o sem fim, o horizonte que se vê e não se vê, o paradoxo do estar vendo algo que sempre aponta para um estar-além que nunca ninguém vê.
  
Notas ao sol, a fuga do horizonte
Está muito além da visão,
Noite que escurece o olho,
Dia que vive pela areia,
Dia vivo que costumo lembrar,
Eu vi o sol e a música
Como signo de um segredo,
A carta do navegante não sabe apontar,
A bússola se perde ao navegar,
Quando se perde a visão e seus olhos
Lacrimejam de tanto sal.

Tocava Jazz ou Blues nos meus tímpanos,
Eu veria o infinito como som,
E imaginaria no meu ouvir como visão,
A estrela vai e volta com brilho de fogo,
A estrada até a praia é cheia de segredos,
Quantas ondas eu peguei e outras que deixei passar ...
Quantas horas em caminhar e se perder?
Por se achar quantas horas mais?

Eu disse ao enigma:
Seu signo eu torno palavra,
Não me leve a mal,
Caiu em cima de mim
Esta porra como um alarme.
Vejo e não sei ao certo,
Uma onda pegou a sua esmeralda.
Um baixo bem robusto forrou o seu topázio.

Como andei a anunciar, me escondi e fui buscar ...
Como voltei já qual borboleta no ar ...
Fui ao meu autoconhecimento, na tábua da lei
Estava grafado com pontas de fogo:
“Conhece-te a ti mesmo, penumbra não vê,
sombra não sente, a luz vê e sente, mexa com
seus cadáveres e deixe eles dançarem,
depois leia sem parar, leia até a sua face cair no
livro, não descanse, não seja fraco,
olhe em volta e esqueça tudo,
olhe mais para dentro, cada vez mais,
não se perca, dance com os outros cadáveres,
lhes diga que são cadáveres, dá a lembrar
sempre da morte, a deusa que ninguém gosta,
faça profecias publicadas em jornais,
faça orgias em praias pela madrugada,
alimente a sua mente, veja as serpentes vãs,
mate quem quer te matar,
ouça o grito da multidão pelo seu socorro,
mate todos em um gesto da cruz,
mate a moral com seu cadáver fundamentalista,
contradiga tudo, por você ser a contradição radical,
confunda o jogo, eles gostam de confusão,
não permita que te confundam, este é o primeiro
mandamento do guerreiro,
olhe em volta e esqueça, olhe cada vez mais para dentro.
Enlouqueça algumas vezes por pura diversão,
Volte à razão depois mais forte que um leão,
Não olhe mais em volta, eles perderam a razão.

Veja seu próprio horizonte, veja o sol ficar vermelho,
Faça dos ossos e carnes um espírito total,
Veja o todo em tudo como se fosse vazio,
Faça uns diários de meditações,
Duvide de sua crença,
Não há razão sem dúvida,
Não caia em ceticismos,
Não ande pela verdade absoluta,
Só você sabe o que você sabe ...
Conhece-te a ti mesmo!”

   Peguei o meu ônibus de viagem, sempre tenho prazer em viajar, e estou acostumado ao clima de rodoviária, eu me sinto bem nesses caminhos de ida e volta, e me parece que minha terceira visão (que, de vez em quando, é favorecida pela música, sobretudo nessas viagens) se abre no estado de transe do sono, o inconsciente individual adormece, o sonho entra, na verdade a imagem que vem no sonho já não mais pertence ao meu inconsciente individual, tais imagens têm outra origem, é do inconsciente coletivo junguiano, o qual foi colhido da filosofia oriental e sobretudo do Budismo, a condição de transe do satori seria este estado fundamental do ser em si mesmo, um paradoxo, pois o encontrar-se no vazio parece com o perder-se, mas neste paradoxo se abre a terceira visão, já como ente ontológico mesmo, não mais eu ou ego, as individualizações não fazem mais parte deste estado, a visualização que parte deste estado búdico de vazio (aí entram os arquétipos do que é símbolo que unem culturas das mais diversas, o que pode ser percebido com mais força na mitologia, todas aparentadas em seus simbolismos), aqui entra o meu sonho, eu vejo ele entrar com suas imagens que sei que não me pertencem, eu não as produzi, o sonho é o estado que nos diz com todas as letras que nós não estamos no comando coisa alguma, só temos esta autonomia ilusória e individualista na vida do ego e do cotidiano, o sonho nos desnuda em símbolo, e como não há mais alguém ali, restam as imagens, e elas falam outra língua, da qual não temos autonomia, Freud contradisse a razão neste transtorno da loucura, e a loucura só é entendida em seus arcanos naqueles que a vivenciaram, e o sonho é um estado de loucura comum a todos, não somente aos psicóticos. O sonho diz: eu navego em você, este que lhe mostra isso é o próprio isso, não tem mais seu lugar, você não está aqui, só a imagem e não há decifração, eu te proponho um jogo, de alguns você lembrará, parecerá que você esteve lá, mas se esteve, não foi o seu pequeno ego, mas algo maior e mais fundamental, um estado fundante animal-símbolo, sua ontologia do sonho é mais que psíquico, é sobretudo espiritual, antes do vazio absoluto do satori, passam-se tais quimeras, leia O Livro Tibetano dos Mortos que verá com os seus próprios olhos.
   A viagem foi longa, duas noites sonhei e veria em um único lance esses dois sonhos se juntarem como uma coisa só, os dois sonhos destas duas noites foram “explicados” acima, agora tudo tornaria-se real, eu não esperava que os sonhos que tive nesta viagem aconteceriam realmente, pensei em se tratar de pura inspiração musical, não notei que era profetismo, as notas que derramarei agora não me pertencem, toda esta viagem de que não há eu no transe é muito real, “é oráculo o que eu digo, e não sabendo explicar-me sem palavras pagãs, queria calar-me” (Arthur Rimbaud, Uma Temporada no Inferno, do poema “Sangue Ruim”), pois fui neste não mais eu em termo de símbolo em estado puro, quantas noites seriam como aquelas? Onde mais senão no susto eu as veria? As visões, eu disse, tenho o vinho e a minha pena, e o sol na minha vista, tenho medo de ficar cego, mas o sol no sonho fica vermelho, mas você o vê sem se cegar, ainda lembro, talvez, quando a poesia maturou o suficiente, eu lembro, a memória é certa, e meus passos são certos também, eu vejo, e calo alguma coisa, no entanto, tenho desta miséria demais, o de ter estado louco, acúmulo de visões, sabatina de visões, o espírito como corrosão da percepção, eu estava lá ... na loucura “Eu é um Outro” (Arthur Rimbaud, Carta Dita do Vidente), cisão, corrosão, todos os venenos, todas as magias, magos brancos e magos negros, a festa como possessão, eu não fui anjo, eu não fui demônio, eles moram em mim, este é o mistério, a estória de um louco vive no mistério radicalmente, mas aí vem o sonho, eu veria estes tais dois sonhos de verdade no fim da estrada, nas dunas eu os poderia ver dançando em minhas visões, não vou enumerá-las todas, vou relatar apenas esta: “A minha luta com o sol-pentagrama.”

O sol virá, cada instante será eterno, o sol quando
Cai em nossas mãos como sonho vermelho,
A luz de sua origem é fim de noite em aurora.
Corremos na vida com o livro aberto adiante,
Redemoinhos se formam no pesadelo de criança,
Notas do apocalipse eram tomadas naquele momento,
Um desenho é registrado com o sangue jovem,
Perde-se no tempo, depois do desastre a célebre canção,
A tempestade encontra o sol e se torna o céu com todas as vidas,
Virá o sol maior com todos os elementos da fúria,
Pintará de estrela firme de firmamento com voz de sepulcro,
Todos os lados do enigma ascendem ao espírito da manhã.

Eu sinto, com o ardor da noite, que o sol virá,
Os signos sentidos em dor pungente semearão
Nova colheita, a vida enamorada de vinha e macieira,
Toda flor do campo com montes sinuosos de harmonia,
Toca-se o corpo do sol que virá, o pentagrama
Se forma, a batalha espiritual começa,
Os lares esquecidos são destruídos pelo vento do drama,
O dharma é pronunciado com a substância primordial : o fogo.
Prometeu nos deu, o roubo de todas as eras das esferas,
Vingou-se Zeus, com trovão de grito supremo.
Voz do subterrâneo ecoou como na caverna de Platão,
Visões deste mundo ideal são realidades ocultas,
O signo do poder é uma espada dentro do coração,
Corta o silêncio com seu som de estilhaços,
A realidade partida vai de sombra a luz
Num claro-escuro renascentista,
Num volume de vestes nababescas
Como o reino do sol na paz mundial,
Surge Cristo em vida diamantada de amor,
O amor que ressuscita, a morte fere,
E o pecado esmaga!
Estou vivo, viverei eternamente!

Estou na palavra primordial, a sensação é de
Êxtase, eu vi essas coisas, eu as vi
Em minha alma, e dentro dela estava um sol,
Não sei explicar, era o sol no coração, nos olhos,
A compaixão se tornara irresistível,
Poderia ser um demônio produzindo o satori,
Ou a graça dentro dos simulacros de nossa História.
Não viverei para ver tudo que quero ver, as visões
São múltiplas, mas não são da totalidade do universo,
Nem seu sentido, nem a sua falta de sentido,
É o êxtase, é uma onda de sol com o espírito a flutuar,
Não há lógica, é só o brilho celeste de uma paixão.
Tenho o tempo em minha mão, não sofro mais as trevas
Da loucura, vejo o sol que virá,
Vermelho fogo em que luto na eternidade
Desta visão.

   Enfim cheguei ao fim da estrada, logo viria a luta espiritual pela qual passara, eu vou então, desço do meu ônibus, com aqueles dois sonhos dançando em minha cabeça, olho para a vila, fico pela manhã nela, bebo água, tomo um banho de rio, e corro em direção das dunas para ver o mar, a praia é vasta, tão vasta como pode ver a visão, e a visão alucinada logo seria revelada, o livro da morte que um dia vou publicar tem destas armadilhas, um grimório dos 77 demônios que me possuíram quando era bem jovem, eu tive a salvação depois deste tormento, busquei a luz espiritual, e hoje sou um ser celeste com carne e palavra, sou o senhor da palavra, dela faço os conceitos, ideias, da palavra tenho o sentido fundante. Mas, ao chegar às dunas a casa dos meus sonhos ruiu, tudo o que tinha visto naquelas duas noites ao dormir me seria revelado naquele mundo infinito de areia e sol, a visão do horizonte me dá o sentido mais profundo de tudo que contém um espírito livre, a liberdade nos dá a chave da filosofia, a liberdade nos dá a voz da poesia, a vida interior se torna um palácio suntuoso do espírito livre, e eu teria a minha visão definitiva naquele dia, mal sabia que as visões dos meus dois sonhos eram o mais bruto e puro profetismo, tempo que se abre como borboleta que sai do casulo, esse é o sentido ontológico do profetismo, tenho decerto a sensação de fúria ao ver a morte, e a fúria de estar vivo quando a morte tentou lhe tocar, a salvação da alma é a cruzada do abismo, o abismo do sol se revelaria agora, meu corpo perdido na areia. A luta começaria, enfim.
   Eu caminhei pelas dunas, estava no meio da tarde, uma tarde de sol gigante, calor escaldante, vi os montes de areia, subi num deles, e, de súbito, olhei o horizonte, o sol se transmutando num desenho de um sol inca, de um segundo ao outro o sol foi ficando laranja, depois vermelho, e aí um espírito oculto desenhou um pentagrama dentro do círculo de fogo, este sol inca e vermelho começou a virar o gigante vermelho, uma grande bola de fogo inca e vermelha que, então, com o calor de um inferno de Dante, desceu em vertical do céu em velocidade uniforme até a areia, seus movimentos eram de um ser consciente, dava para perceber que havia um princípio inteligente dentro daquela bola de fogo vermelha de inspiração inca, eu vi, eu vi com os meus olhos de carne, não era mais um simples sonho numa madrugada em um ônibus de viagem, eu via e não acreditava, talvez pudesse estar sonhando de novo, mas não, eu sentia a minha carne e o meu corpo, eu sabia que, desta vez, era uma visão plenamente consciente, não era mais um jogo simbólico-junguiano de sonhos imagéticos, eu via, não saberia descrever quão viva foi esta visão, as palavras são insuficientes, eu via, e custava acreditar, pensei que poderia ser o apocalipse, e lembrei do sonho do sol-pentagrama, logo percebi a centelha do profetismo, e então esperei a descida daquele sol furioso para a grande luta.
   Depois do céu ecoar “Not To Touch The Earth” do The Doors quando aquele sol (um grande animal vermelho) descia, o sol-pentagrama foi em minha direção, se completaria a visão das visões, eu teria uma luta contra aquele bicho esférico e feroz, começa a luta, Miles Davis desce de uma nuvem azul e começa a tocar o seu trompete flutuando sobre aquela cena dantesca, eu via, e já não só via, eu lutava, meu corpo entrava em ebulição de guerra, eu teria que vencer aquele demônio em veste de sol, meu sol tão adorado, agora querendo me devorar, rolamos na areia, parecia uma dança macabra e pagã, um Vodu em transe, dancei o Sabá, a bruxa ria, os duendes riam, os 77 demônios de meu passado se reuniam para ver aquela batalha sangrenta, não saberia explicar suas fisionomias, eram tétricos, uns vermelhos, outros negros como corvos, uns azuis escuros, flutuavam em volta da duna em que se dava a luta, Miles parecia estar em outro plano, parecia estar me vendo, mas na verdade não sei, eu queria o fim daquela agonia, “Pharao’s Dance” entra no jogo, surge uma pirâmide de diamante no cume da duna em que eu rolava ferozmente com o sol-pentagrama, consigo enfim pegar a pirâmide e volto ela em direção ao sol furioso, sua própria luz vermelha reflete no diamante da pirâmide, esta luz vai em direção do próprio sol-pentagrama e este derrete e vira sangue, do sangue nasce uma pomba branca anunciando que não haveria apocalipse, que era o tempo da santidade na Terra, e de que eu era um homem livre.

EPÍLOGO: CANÇÃO DA SALVAÇÃO

Não virei anjo, eu vi o anjo.
Olhei o mistério com a alma
Em floração.
Eu refiz a canção da salvação,
Uma pomba branca
No meu peito,
Um dia vivido
Como se fosse perfeito.
O sol-pentagrama morreu,
Sua fúria vermelha derreteu.
Eu vejo o eterno
Como o sol verdadeiro,
Eu ouço a liberdade
Em cada vida bondosa,
Sou a alma que canta no céu
Como campo aberto ao coração,
Tenho a visão do espírito em cada ato,
Não surjo do inferno, venho do paraíso,
A Terra é cantada em sua santidade,
Santo virá, o sol virá,
O vinho vence o sepulcro,
A dor exauriu com a fúria infernal,
Estou salvo de minha maldição,
Tenho tempo para ver todas as coisas novas,
As coisas que compõem a natureza
Em seu espetáculo de vida infinita,
Pode-se ouvir os hinos angelicais
Nesta morada do prazer,
Vejo Deus como o sol que tudo vê,
Tenho a alma como reino do céu,
Longe do abismo do inferno
Que me possuiu,
Vou ao segredo, vou ao cerne,
E a vida se torna sagrada,
A vida no fim da estrada.

02/11/2012 Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)


 
  


  
  






quarta-feira, 31 de outubro de 2012

AMOR DIVINO

Concentrei-me no vitral
da santa virgem
como o sol místico
do coração.

Ave-maria em alma de flor,
rosas do meu amor,
cantando doce
no sabor
que a canção
edulcorou
com fardo poético
que transmutou-se
em redenção,
glória e graça divina.

A vida viva na cruz
vive! Eu sou novo,
minh`alma renovada
é chuva de sol
na praia
eterna
em que salvei
o fogo que a pena
canta em tornados
de verso e felicidade,
libertei-me!
Livre na canção!

31/10/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)

TRAJETO DO POETA

Eu deixei meus cigarros
na rua de uma estrada
longa,
certo impostor delongou
toda a cantilena,
verso por verso derrotei
a crença no grito atávico,
o relógio parou
na esquina,
olhei Kerouac correndo,
Sade gemendo,
Ginsberg moribundo,
bati um papo cabeça
com a minha mulher,
de cabeça para o nada
e a arte dos vagabundos
da cracolândia,
as artes recitadas
de testemunhos nas igrejas,
as asas cortadas
das visões
falando em línguas
mortas,
e a flor do meu amor
intacta na água da vida.

31/10/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)

A CARNE DO BEIJO

Classes de sóis despencam
sob azuis que compõem
a tela,
a pena vira pincelada
na dor do magma,
eu estouro a nuvem
com ar de rugidos,
estampido do grito
pelas feras
que dormitam
indefesas
em minh`alma.

Eu desço ao romance
depois da contemplação
de um satori psicótico,
lembro da carne maturada
como casal perfeito,
um dando verso
e o coração do outro,
pleno universo.

Vou ao espírito da música,
com cálice sagrado
de que o corpo padece
com vinho tinto
de tanto sangue
e volúpia
como nos finais
de beijos hollywoodianos.

31/10/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)

Sketche n°2 – O homem morto.

Um homem entra no cartório para fazer um reconhecimento de firma de que receberá uma herança, o atendente se dirige a ele:
__ Olá, como vai o senhor, o que deseja?
__ Quero fazer o reconhecimento de firma de que receberei uma herança do meu irmão mais velho que faleceu recentemente.
__ OK, me passe o seu CPF e a sua identidade, preciso checar a sua situação aqui no cartório, só um minuto.
(O homem espera, logo o atendente se dirige a ele novamente)
__ Ora, aqui no cadastro consta que o senhor está morto, deixa eu ver isso direito.
(Foi nos arquivos do cartório e encontrou uma certidão de óbito do homem que estava vivo)
__ Ora, aqui está a sua certidão de óbito, o mais estranho disso tudo que vejo sua identidade e me parece que pela foto se trata mesmo do senhor, como isso foi ocorrer ... bom, não importa, o senhor terá que provar que está vivo, se não, não poderei reconhecer a sua firma, pois a certidão de óbito é mesmo autêntica, onde o senhor esteve esse tempo todo? Não ficou sabendo que a sua família fez essa sua declaração de óbito? Não entendo, mas, agora o senhor terá que provar que essa certidão de óbito está errada, e vai ver que o senhor é um impostor, está se passando por alguém que morreu por quê? Essa herança não poderá ser sua enquanto não provar ao Estado de que está vivo e de que o senhor é realmente o senhor, quando o senhor conseguir provar isso poderá reconhecer firma aqui no cartório.
__ Meu Deus! Eu não sou um impostor! Estive 2 anos em outro país, não sei de onde surgiu esta maldita certidão de óbito, como posso provar que estou vivo? Como posso provar que eu sou eu mesmo? Meu irmão gêmeo morreu, meu nome é Ronaldo, e o dele Arnaldo, somos univitelinos, deve haver algum engano, eu não morri, estou aqui falando com você!
__ Mas agora terá que provar que não morreu, e outra, terá que provar que o senhor é o senhor mesmo e não outra pessoa, terá que provar que não é um impostor.
__ Este país é uma ruína burocrática, meu Deus! Meu Deus! Não é possível! É uma situação completamente esquizofrênica! Eu sou eu mesmo caramba!
__ Estou começando a desconfiar de que o senhor não é o senhor mesmo e que se trata de um impostor que está querendo a herança do Sr.Arnaldo, estou seriamente considerando a ideia de que o senhor não é o senhor mesmo coisa alguma! Vou telefonar para a Polícia Civil para averiguar o caso, e enquanto isso o senhor ficará detido aqui no cartório até a chegada dos policiais. Seguranças, segurem este homem, ele é um impostor! Está com documentos de uma pessoa morta para receber a herança de outra pessoa morta.
__ Mas eu sou eu! Eu não sou outra pessoa! Você pode ver na foto!
__ Parece na foto que é o senhor, mas a foto é antiga e isto não prova nada! Terá de prestar contas à polícia, impostor! Falsário! Biltre!
__ Meu Deus! Meu Deus! Eu só vim fazer um reconhecimento de firma e descubro que morri e que eu não sou mais eu e sim um impostor, só posso estar num pesadelo, ou melhor, estou ficando louco, é isso, eu estou louco, completamente louco, podem me prender então, ou melhor, me joguem no hospício.
__ É exatamente isso que vou fazer se o senhor não ficar quieto até a chegada dos policiais, o senhor está morto, e pior, o senhor não é mais o senhor mesmo, o senhor terá que provar que não morreu, e pior, o senhor terá que provar que o senhor é realmente o senhor e não outra pessoa, agora fique quieto, espere e será preso como falsário, não cairemos neste golpe, usar documentos de uma pessoa morta passando por ela para receber uma herança ... francamente! O senhor não esperava por essa, né? Descobrir que a sua vítima estava morta e que sua certidão de óbito estava aqui, por essa o senhor não esperava, mesmo!
__ Meu Deus! Meu Deus! Estou ficando louco, estou louco!
__ O senhor não está nada bem mesmo, deve ser um louco mesmo, vou chamar o SAMU para interná-lo, descobri que você é um louco, além de celerado é louco!
__ Meu Deus! Meu Deus!
(Chegam os policiais civis, eram dois investigadores)
__ Tá aqui, esse cara é completamente louco, disse ser uma pessoa e não é, pegou os documentos de um morto sabe-se lá como e está dizendo que é uma pessoa que está morta, aconselho interná-lo num hospício antes de seu julgamento como falsário, vai saber quais não serão seus outros crimes.
__ Meu Deus! Meu Deus! Não façam isso comigo, só pode ser um pesadelo, estou louco! Estou louco!
(Chega o SAMU, imobilizam-no numa maca, ele é levado ao hospital psiquiátrico)
(Passam dois meses e a investigação desfaz o mal-entendido, Ronaldo era mesmo Ronaldo, mas agora o próprio pensa que é outra pessoa, e ninguém consegue convencê-lo de que ele é ele mesmo e não outra pessoa).

31/10/2012 Paranoide (Comédia/ Série de vinte sketches para teatro) 

Sketche n° 1 – Uma História Escrota

(Na loja de celulares da operadora OK Phone)

Entra o cliente para comprar seu celular novo, ele se dirige ao balcão
Onde está uma moça, funcionária da OK Phone.

__ Olá, eu gostaria de trocar meu celular por um novo, quero ver as marcas, minha linha é de vocês da OK Phone, posso fazer isso agora?
__ Olha, você pode me passar seu nome, nós estaremos vendo isto para o senhor, qual é o seu nome?
__ Meu nome é Escroto.
__ Como, não entendi?
__ Meu nome é Escroto.
__ Pode repetir, por favor?
__ Meu nome é Escroto, entendeu agora?
__ Bom, não sei se entendi, acho que sim, mas não se preocupe, parece que o senhor odeia o seu nome, mas aqui estou trabalhando e preciso saber qual o seu nome, não vou julgá-lo pelo seu nome ou rir, prometo!
__ Você não está entendendo minha filha, meu nome é Escroto! Não entendeu? Es-cro-to. Fui claro?
__ Ahan ... bem .... não será possível efetuar a troca de seu celular se o senhor não me disser qual é o seu nome, o seu nome de verdade, já disse que não vou rir.
__ Caramba! Meu nome é Escroto e ponto! Vou ver aqui a minha identidade e você verá a verdade!
__ Bom, tudo bem que o senhor não gosta do seu nome, mas acho que essa revolta toda com o próprio nome não leva a lugar nenhum, você nunca tentou trocar de nome no cartório? Hoje eles fazem isso, e tem outra, tenho o cartão de uma psicóloga que pode te ajudar nesse trauma, quer o cartão dela? Tá comigo aqui, ela é uma lacaniana, vai entender o significado do seu nome, você sabe, esses lacanianos mexem com esse negócio de signo e tal ...
__ Porra! Cadê a minha identidade? Putz! Esqueci a minha identidade. Te juro minha querida! Meu nome é Escroto, Escroto! Ouviu?
__ Bom, não vou julgá-lo por ter um nome assim tão feio, toma aqui o cartão dessa psicóloga, ela é minha amiga e poderá te ajudar, mas você tem um problema sério com o seu nome, hein? Escroto é demais, deve ser mesmo um nome horrível, pois o senhor se recusa a dizer seu nome, poxa.
__ Você ainda não entendeu? Meu nome é Escroto! Escroto! Es-cro-to!
__ Ligue para esta minha amiga, ela é uma ótima pessoa e pode te curar desse trauma, e vá no cartório trocar de nome. Até fiquei curiosa em qual será o seu nome de verdade, tem tanto nome escroto por aí, o seu não deve ser mais escroto do que o dessas pessoas, acredito.
__ Agora vou deixar claro: Meu nome é Escroto Leite Azedo, Escroto é o meu nome de verdade, sempre fui zoado na escola por causa desse nome, cresci com esse nome escro ... bem, com esse nome ridículo, Escroto é o meu nome de batismo, entendeu agora?
__ Bom, você pode falar com essa minha amiga lacaniana, agora acho que entendi, seu nome é Escroto, Escroto Leite Azedo, bom, não sei se isso foi uma piada, pois se for, posso chamar o meu chefe, estou aqui trabalhando e não gosto de apurrinhação e ainda mais de um chiste desses!
__ É verdade, caramba! Ninguém acredita em mim! Meu nome completo é Escroto Leite Azedo, quantas vezes tenho que repetir isso? Escroto Leite Azedo, pombas!
__ Vou chamar o meu chefe, você não é uma pessoa normal, e odeio piadistas desocupados, poderia chamar a polícia, pois isso é um desrespeito, tem gente na fila e não vou mais te atender, passar bem, Sr. Sei lá o quê! Vai saber qual é o seu nome, mas você é um escroto mesmo!
__ Chega! Chega! Tchau! E toma esse cartão de psicóloga, nunca entenderão que o meu nome é Escroto, meu Deus, Escroto Leite Azedo, o que eu fiz para merecer isso? Que vida escrota! Que mundo escroto! Tenho que ir embora, tchau e até nunca mais!
__ Vai embora mesmo, seu escroto. Próximo.

31/10/2012 Paranoide (Comédia/Série de vinte sketches para Teatro)
(Gustavo Bastos)  

domingo, 28 de outubro de 2012

CAPOTE, A SANGUE FRIO

   Truman Capote foi um dos mais importantes escritores americanos do século XX, além de comediante. Escreveu contos, romances e peças teatrais e com o seu livro de maior sucesso “A Sangue Frio” entrou no gênero de romance de não-ficção que designa, também, o chamado jornalismo literário, que tem, além de Capote, na sua versão norte-americana, outros destaques, como Norman Mailer, Tom Wolfe e Gay Talese, estes três, junto com Capote, formando o time do “New Journalism” norte-americano.
   O romance de não-ficção de Capote “A Sangue Frio” seguiu este caminho literário de juntar um fato real, de repercussão nos jornais e na mídia em geral, e daí tirar um relato romanceado que sai do fato objetivo e busca entrar na subjetividade dos personagens, neste método se faz um estudo de pessoas reais que, no romance não-ficcional, têm suas subjetividades mais valorizadas do que o simples relato noticioso das manchetes dos jornais, pois o fato jornalístico, isento de um aprofundamento literário, o qual Capote faz em seu livro, apenas é um retrato objetivo e frio de um acontecimento, que repercute por um tempo definido, e depois cai no esquecimento, logo substituído por outros fatos.
   Esta voz interior dos personagens é ouvida no romance não-ficcional. Capote parte, em seu romance A Sangue Frio, do fato de um assassinato real, a morte da família Clutter, quatro pessoas assassinadas dentro de casa, seus corpos amarrados, nenhuma pista, a princípio, de quem foi ou de quem foram os assassinos, uma cidade tranquila do interior do Kansas em polvorosa, desconfiança total entre os habitantes da cidade, portas de casas que antes ficavam abertas, como as dos Clutter, trancadas, paranoia, pessoas fazendo vigílias em suas janelas, e enquanto isso, Capote faz um enredo do trajeto dos assassinos, Dick e Perry, ainda não descobertos, percorrendo os EUA em direção ao México, como se nada tivesse acontecido. Capote faz a alternância entre a história dos Clutter, e os caminhos feitos pelos dois assassinos após o fato brutal.
   A investigação começa, Dewey toma a frente do caso junto com seus detetives, começa a especulação e o exame das provas deixadas no local do crime, Dewey ainda não tinha qualquer pista de quem tinha feito aquilo. O assassinato tinha sido bem extremo, o chefe da famíla, Sr. Clutter, sua esposa, sua filha Nancy e seu filho Kenyon, todos mortos, nenhuma suspeita ainda, o namorado de Nancy logo foi descartado como suspeito, Dewey estava empenhado em resolver o caso o mais rápido possível, havia suspeitas de que tinha sido algum conhecido da família, o Sr. Clutter tinha dinheiro, mas a cena do crime não indicava roubo, ou pelo menos não dizia nada de que tinha sido um assalto, logo Dewey buscou possíveis motivos de algum desafeto do Sr. Clutter ter feito isso, mas nada foi provado, e neste ínterim, Capote alterna esse enredo com as viagens dos assassinos, Dick e Perry, em direção ao México.
   Capote utiliza no romance duas histórias que correm paralelas, mas que estão unidas pelo mesmo fato, um crime, e a história, que começa em duas pistas simultâneas, vai ficando cada vez mais interessante, o que se espera é qual será o momento em que este caminho duplo do romance se juntará, quando Dewey descobrirá os culpados e então na junção das peças, o romance junte o caminho duplo do enredo e se torne uma única história, a do assassinato dos Clutter e sua solução. É bem interessante notar que o romance de Capote tem um caminho duplo, mas o tempo inteiro se trata de uma única história, e o clímax é no momento em que esta história, que é uma, encontra a sua unidade, quando os assassinos são descobertos e o drama dos Clutter e da cidade e arredores em que morreram e a investigação encontram os seus algozes depois de um retorno tranquilo do México, sonhando com tesouros escondidos e passando cheques sem fundo pelo caminho.
   Depois da condenação de Dick e Perry, a grande questão do romance gira em torno da pena de morte, alguns dizem que é correto, outros dizem que não, mas o fato também traz a reflexão da tradição de alguns estados norte-americanos aplicarem a pena capital, e no caso do estado de Kansas, seria um modo de evitar a fuga dos assassinos ou sua soltura, pois neste estado a prisão perpétua poderia num momento, após sete anos, ser comutada em liberdade condicional, a questão da morte, assassinato, encontra a questão da pena de morte, assassinato legal. Uns matam e são criminosos, outros matam e são a afirmação da legalidade. Este paradoxo Capote levanta, mas não resolve. E o romance se encerra com a execução na forca, a lei matando os que matam, a pena capital para os que não tiveram pena da vida de inocentes, a morte ao mesmo tempo como coisa abjeta e logo depois como justiça e punição.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor. 






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