PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

ASSÉDIO SEXUAL E O FAHRENHEIT 451

“uma resposta do feminino frente ao descaso e mentira que sempre cercou o assédio”

AS VIRTUDES DA MORAL

Nos casos recentes de assédio sexual que se tornaram públicos se acendeu uma chama interessante de debates e punições, e tais revelações de abusos vão muito além do que se costuma chamar de politicamente correto ou o que o manifesto francês encabeçado por figuras proeminentes como Catherine Deneuve tentou simplificar como puritanismo e combate feminista da liberdade sexual (leia-se : a prerrogativa de predador natural que muitos homens até hoje gostam de divulgar como uma grande glória).
Muitos destes casos (escândalos) como o divulgado do produtor Harvey Weinstein, que participou, dentre outros filmes, de Pulp Fiction, não foram casos pontuais de deslizes, abordagens inadequadas e fora de hora ou do tom, mas revelam casos repetidos e sistemáticos de uso da hierarquia e do poder para subjugar mulheres, pois julgo que um exercício de poder é mais grave do que um erro pontual que pode ser corrigido e o sujeito reeducado sem mais grandes consequências.
O que é tratado aqui vai muito além disso, é o assédio sexual agressivo como poder e hierarquia, o uso de uma posição privilegiada para atuar nos bastidores que só agora veio à tona como num efeito dominó que trouxe um debate com pontos e contrapontos, mas, voilá, isto está sendo discutido, o assédio, corrigindo casos mais sutis e punindo casos graves, e assim a sociedade vai esclarecendo este ponto que sempre foi obscuro e tirando os monstros até então ocultos da sombra e rediscutindo o que é de fato o exercício da masculinidade e quais são seus limites.
Hollywood, e uma grande aliança do quarto poder, a mídia ou imprensa, deram um gás fenomenal a tudo isso, e agora estamos em meio de um turbilhão que ganha muito da aparência de caça às bruxas, mas que tem sim uma resposta do feminino frente ao descaso e mentira que sempre cercou o assédio, e isto por décadas, como no caso específico das denúncias em torno de Harvey Weinstein, recapitulações como no caso de Kevin Spacey, exageros como no caso de Woody Allen (ainda em andamento), e o maior escândalo de todos, que envolveu o esporte, do médico Larry Nassar, que se trata de pedofilia e que soma denúncias de cerca de 90 ginastas americanas. E o resultado midiático mais visível é o uso da hashtag #MeToo para as mulheres que sofreram assédio ou abuso sexual compartilhar suas histórias.

OS VÍCIOS DA MORAL

Agora vamos para os pontos nebulosos destas investidas morais que começam como virtudes, mas que, no extremo, acabam prestando uma homenagem involuntária e quase cômica ao vício, e que é o pior de todos, o que se acredita e se vende como virtude. A ópera Carmen do compositor francês Bizet teve seu desfecho alterado na sua apresentação num teatro de Florença, na Itália. Aqui temos uma obra original de 1875 sendo alterada, reescrita, isto mesmo, pasmem.
Pois a Carmen de Bizet é morta a punhaladas pelo amante frustrado Don José, e para denunciar o feminicídio histórico na sociedade, alguma ou algumas almas muito boas, iluminadas e virtuosas decidiram retalhar o final de uma obra de ópera de mais de um século. Agora o final é glorioso, e ao invés de Carmen ser assassinada, ela é a assassina, como se a face da moeda fosse censurável e seu reverso também violento trouxesse algum alento, pois agora se mata Don José e não mais Carmen, troca-se um crime pelo outro, e a isto se dá o nome de virtude e de revisão ou justiça histórica.
Tal revisão histórica, se levada a sério, pode ter um choque ao ler autores violentos, tais como o Marquês de Sade, e talvez reescrever 120 Dias de Sodoma, rever o final da Divina Marquesa em que a infortunada morre a machadadas, e queimar o nome do Marquês em praça pública assim como fizeram os seus contemporâneos de séculos atrás, podendo até mesmo mudar seu nome ou apagá-lo da História, num impulso de Torquemada que prega para convertidos que não sabem a diferença entre contextualização justa de uma obra e seu retalhamento literal.  
Polêmicas históricas que vêm à baila, como a entrada da obra de Adolf Hitler para domínio público, trazem este debate para um plano ambíguo, em que se confunde uma justa edição crítica e com diversas ressalvas, da simples proibição, o que passaria por um Fahrenheit 451 (filme de François Truffaut baseado na obra de Ray Bradbury de mesmo nome em que se vive numa sociedade em que se queima todos os livros que existem) às avessas, agora não mais com fogueiras nazistas, mas com a higienização contra ameaças que, se forem bem explicadas, são matéria de estudo histórico, e não mais de lavagem cerebral a favor de ideologias putrefatas como o nazismo.
E temos casos ainda em que se mistura a infâmia com a genialidade, como é o caso mais conhecido do autor Ferdinand Céline, que apoiou a ocupação nazista na França, um paradoxo ambulante valorizado intelectualmente por figuras como o cineasta Jean-Luc Godard, mas execrado por suas ideias racistas, acusado de traição pelo Estado francês ao fim da Segunda Guerra Mundial, e se refugiando na Dinamarca até sua anistia em 1951.
E a relação nem sempre fácil entre arte e moral envolve outros casos polêmicos como a incidência da palavra “nigger” na obra de Mark Twain, expoente histórico da literatura norte-americana, com algumas reedições em que a palavra é trocada por “slave”, sendo a palavra original extremamente agressiva para o inglês norte-americano como um todo.
No Brasil temos a polêmica em torno do nosso autor infantil Monteiro Lobato, como as referências racistas presentes na obra Caçadas de Pedrinho. Contudo, como dito, casos históricos devem ser no máximo contextualizados, pois a realidade de uma época não se altera por decretos morais. A escrita da História deve ser fiel ao que aconteceu, e não ao que muitos gostariam que fosse, pois senão teríamos que também, no caso do Brasil, de revisar por completo as teses antropológicas racistas de um Nina Rodrigues, por exemplo, e não encará-lo como ele é hoje, um documento histórico, de uma época.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37479/14/assedio-sexual-e-o-fahrenheit-451



segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT – PARTE I

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT, O POETA SINGULAR DO MODERNISMO

“este poeta vai revitalizar o estro romântico, com um acento mais grave”

O poeta nasceu em 1906, no Rio de Janeiro (RJ), onde faleceu em 1965. O poeta integrou historicamente o período modernista, mas nunca participou de nenhum movimento, tendo a sua obra sido uma influência para a geração de poetas que surgiu na década de 1940. Augusto Frederico Schmidt também foi editor e empresário, tendo ainda feito parte do governo de Juscelino Kubitschek.
Augusto Frederico Schmidt realizou uma grande obra poética, estreando na literatura brasileira, em 1928, com seu livro de poesia “Canto do Brasileiro”, cujo tema principal era o da morte, e que trazia uma tendência messiânica, contribuindo com a nova poesia brasileira, naquele tempo que era o da afirmação do movimento do Modernismo.
No caso de Augusto Frederico Schmidt, este poeta vai revitalizar o estro romântico, com um acento mais grave, tornando-se o poeta, então, dentre os pares de seu tempo, uma figura singular, pois Schmidt tinha um estilo ainda simbólico que nem sempre ecoava o cotidiano e o coloquialismo que surgia de forma plena na corrente poética modernista.
No cenário posterior da poesia brasileira, e falando do mercado editorial, o poeta se encontra numa espécie de limbo, sem grandes edições, quando muito, o conhecimento que temos do poeta é pela via antológica, e muito se perde de um poeta que atravessou com sua obra grande parte do século XX, de 1928 a 1964, sendo sempre um poeta forte e original.
Augusto Frederico Schmidt, entre os pares de seu tempo, na poesia, estabelece um corte, e que é ao mesmo tempo a sua marca, sua diferença, e seu isolamento num estilo em geral diverso do que vinha sendo feito pelos modernistas. Desde sua estreia em 1928 com o Canto do Brasileiro, seu estro avançava para outro domínio de expressão e estilo que não era o do poema modernista que era praticado naquelas década de 1920.
Os poetas do Modernismo eram mais coloquiais, com poemas-piada, retratando um Brasil local e arcaico. E no caso de Schmidt tínhamos um canto do brasileiro com estilo mais simbólico, o que então em sua obra posterior também se revelará, como dito, nos pendores românticos, colocando Schmidt num lugar próprio e sensível, na verdade instável, talvez sendo um dos motivos de sua obra ter tido menos reedições do que os modernistas mais standard.
Esta bifurcação do poema modernista, entre os mais modernos, e poetas mais tradicionais como Augusto Frederico Schmidt, no entanto, refletia o próprio projeto de pesquisa da poesia modernista, não era uma contradição, pois a liberdade de cada poeta para realizar as suas próprias experiências reforçava um dos legados principais do movimento modernista, que era o de uma pesquisa estética permanente e infindável, como irá afirmar em conferência de 1942 o poeta Mário de Andrade.
Schmidt, então, será o poeta que vai inaugurar um poema moderno com fundo simbolista, que tinha certos eixos coloquiais, mas que se fundava mesmo era numa linguagem poética mais séria e formal, num tema que ia para o fantástico e o lírico para escapar da angústia cotidiana. Mas, como dito, Schmidt foi pouco lido, se o compararmos aos poetas mais conhecidos do Modernismo, e outros tiveram até destino pior, pois ficaram num esquecimento histórico, poetas como Emílio Moura, Dante Milano e Henriqueta Lisboa.
Os temas líricos, de um mundo invisível, da poesia de Schmidt, se distanciava do que era concreto, sendo um caso único no Modernismo, numa busca de universalidade para a linguagem poética moderna que se tornou, no entanto, uma singularidade que hoje habita um lugar estranho no cenário geral dos poetas que fizeram parte das gerações do Modernismo.

POEMAS :

CANTO DO BRASILEIRO (1928)

CANTO DO BRASILEIRO : O poema que dá título ao livro de Schmidt nos dá um panorama do 
cenário do Brasil como um lugar evitado por uma fuga ao mundo, sendo então aqui o poeta aquele que vai descrever muito mais as suas próprias sensações do que um retrato cotidiano da paisagem que talvez evoque o título do poema antes de nos debruçarmos sobre ele, no que temos : “Não quero mais o amor,/Nem mais quero cantar a minha terra./Me perco neste mundo./Não quero mais o Brasil”. O poeta meio que se rebela contra o Brasil, mas nem tanto, como se vê no poema que exala uma contradição radical entre impulsos fortes e opostos entre si, no que segue : “Quero é perder-me no mundo/Para fugir do mundo.” (...) “Sou uma confissão fraca/Sou uma confissão triste/Quem compreenderá meu coração?!/O silêncio noturno me embala./Nem grito. Nem sou./Não quero me apegar nunca mais/Não quero nunca mais.”. As decisões dramáticas e radicais revelam um temperamento poético já ultrapassado, mas que ganha nota modernista, pois o poeta é um estranho no ninho, mas não é um ser incompreensível, no que temos : “O mundo pesa em cima de mim/Não quero mais carregar ele./Nem filosofias/Nem nada./Sou o homem que chora”. O peso do mundo, com toda a sua carga que faz filosofar desesperadamente, faz o poeta chorar, e segue : “Meu coração!/Nas vielas escuras – meu Deus que mistério!/Nos portos tão longe/Tristezas tão grandes!/Me perco no mundo” (...) “Agora, a tristeza/Cidades tão lindas/Agora, a saudade/Cidades tão grandes./Nas matas de casas me perco meu Deus!”. E agora a angústia recorre a Deus, este ponto ou lugar oculto ou salvação do tormento do mundo, no que temos : “Meu Deus que te ocultas em tudo o que existe,/Tirai-me a tristeza que lenta sufoca/O meu coração.” (...) “Eu tenho saudade de luares estranhos –“ (...) “_ Minha pátria é bem longe/Minha pátria é mais longe/Fujamos daqui./E a onça é o mistério/Tem febre nos olhos –/Tem sol concentrado no seu coração./_ Minha pátria é aqui mesmo!/Lembrai-vos dos prantos/Que os rios levaram/De alguém que partiu.”. O poeta tem um exílio perturbado, e o poema demonstra a confusão de uma alma errante.

NAVIO PERDIDO (1929)

A PARTIDA : O poema evoca a noite como o cenário ideal da morte do poeta, no que temos :“QUERO morrer de noite –/As janelas abertas,/Os olhos a fitar a noite infinda.”. E temos a descrição precisa do desenlace de sua alma do corpo, e a cena geral de um velório, no que segue : “Irei me separando aos poucos,/Me desligando devagar./A luz das velas envolverá meu rosto lívido.” (...) “E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos./Os que virão, os que ainda não conheço,/Estarão em silêncio,/Os olhos postos em mim.”. E seu destino após a morte também é descrito, a fuga para a distância, no que segue : “Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo./E quando todos souberem que já não estou mais/E que nunca mais volverei/Haverá um segundo, nos que estão/E nos que virão, de compreensão absoluta.”. Uma alma que nunca volverá, e aos que ficam se gera o milagre da compreensão absoluta.

LEMBRANÇA : O poema levanta a ideia da consciência da finitude, um tipo de memento mori (pensar na morte) pessimista que invade o entretenimento feliz de uma sessão de cinema, no que temos : “TODOS os que estão neste cinema agora,/Neste cinema alegre,/Um dia hão de morrer também :/Nos cabides as roupas dos mortos/penderão tristemente.”. E o poeta nos lembra ainda que a morte é universal, no que segue : “E todos os homens medíocres/se elevarão no mistério doloroso da morte./Todos um dia partirão –/mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo :”. E enfim o poeta continua a nos lembrar da morte, esta que os frequentadores da sessão de cinema esqueceram, a ignorância é feliz, e o poeta é um angustiado, no que termina o poema : “No entanto parece que os frequentadores deste cinema/Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer/- Porque em toda a sala escura há um grande ritmo de/esquecimento e equilíbrio.”.

NOTURNO I : O poeta aqui tem medo do trovão e da chuva, ele lembra de sua infância, e seu refúgio é a memória, mas também está nela a origem de seu medo, e nesta contradição vai o poema, que evoca a chuva e o escuro da noite, e que tematiza o medo através da memória infantil, no que temos : “EU tenho medo da chuva/E do raio, do trovão –/Fica menor, quando chove,/Meu coração./Quando os raios riscam rápidos/O escuro do firmamento –/Que saudade se apodera/De mim, do meu pensamento!/Me lembro de um tempo longe/Que não volta nunca mais :/Eu era bem pequenino/E eram vivos os meus pais.” (...) “_ Minha mãe, que medo eu tenho/Do escuro da noite enorme!/Quanto menino pequeno/Anda no mundo, sozinho,/Que tem medo e que não dorme!”.

CANTIGA : O poema traz um poeta que tem medo da solidão e de perder o amor, e este parte e lhe deixa aos seus lamentos, no que temos : “Ficarei sozinho,/Não partas assim!/É longo o caminho,/Longo e tenebroso.”. Um caminho longo e grande se abre, o poeta o encara como um abismo, que muitos chamam de vazio da alma, e este gera o medo, e o poeta aqui é um refém exangue de seu próprio coração, no que temos : “Ficarei sozinho/Numa angústia enorme,/Ficarei sozinho/Numa tal tristeza/Que – ai de mim! –/Jamais os meus olhos sentirão beleza/Nas coisas mais belas deste mundo assim.”. Temos neste poema um exemplo do estro romântico em pleno modernismo, aqui Schmidt é intenso, como um bom romântico chorão, no que segue : “Nunca mais o mundo me será risonho,/Nunca mais a vida sorrirá pra mim./Não partas assim!” (...) “Fica mais um instante!/Não me deixes pobre/Neste isolamento,/Nesta casa escura/Ouvindo o lamento/- Ai de mim! –/Deste meu tormento/Que não tem mais fim!”. Eis a ideia de que o tormento não tem fim, quando na verdade tudo passa e finda sempre, mas o poeta está com o coração transbordando, e sucumbe, no que segue o poema : “Ficarei chorando de desesperança/Como em terra estranha chora uma criança/Sem amparo algum./Ficarei sozinho .../Não partas assim!”.

IMAGEM : Um encontro se foi, o cruzamento dos destinos se deu uma única vez, e o poema lembra atônito um fato radical, que é o fato irrepetível do qual o destino é mestre, e pertence a quem o decifra, sem mais. Mas, aqui o poeta é mais uma vez um refém, um ingênuo que sofre em vão, no que temos : “AQUELA despedida para nunca mais./As mãos se apertaram num gesto rápido./Os olhos se encheram de lágrimas –/Nunca mais, como um soluço, nunca mais./Destinos que se cruzam rapidamente./Quem sabe se de novo, um dia ...?/Havia um pressentimento, uma certeza quase, porém,/De que nunca mais, nunca mais ...”. É o poema que deseja o nunca mais, que é o vazio da alma que se apega e que tem o coração oprimido do poeta, com um peso que lhe apunhala o peito, e o poema finda, então : “No coração opresso, os apitos eram punhaladas longas./E aquele olhar, e aquele olhar triste e molhado./E aquelas mãos morenas a dizer adeus ...”.

POEMAS :

CANTO DO BRASILEIRO (1928)

CANTO DO BRASILEIRO

Não quero mais o amor,
Nem mais quero cantar a minha terra.
Me perco neste mundo.
Não quero mais o Brasil
Não quero mais geografia
Nem pitoresco.

Quero é perder-me no mundo
Para fugir do mundo.

As estradas são largas
As estradas se estendem
Me falta é coragem de caminhar.

Sou uma confissão fraca
Sou uma confissão triste
Quem compreenderá meu coração?!

O silêncio noturno me embala.
Nem grito. Nem sou.
Não quero me apegar nunca mais
Não quero nunca mais.

Vem calma fresca do vento bom
Abanar minha febre!

Vem beija minha ferida
lua tão branca!

Vem matar minha sede
água tão pura!

O mundo pesa em cima de mim
Não quero mais carregar ele.

Nem filosofias
Nem nada.

Sou o homem que chora
O silêncio chora também
Tudo chora
A noite chora
Os bois choram perdidos no alto do morro.

Meu coração!
Nas vielas escuras – meu Deus que mistério!
Nos portos tão longe
Tristezas tão grandes!

Me perco no mundo
Me perco nas vidas
Me rasgo de raivas inermes e enormes.

E a terra era pura
E puros os homens
E tudo tão puro!

Nos galhos as frutas maduras pendiam
E os rios corriam tão puros cantando
E a vida corria no leito dos rios
Nas noites – tão trêmulas – mulheres erguiam
Mulheres erguiam os olhos pra lua
Pra lua tão branca, tão pura no céu.

E a lua chorava seu choro macio
E a lua deitava seu óleo oloroso
Na pele tostada das lindas mulheres.

E as cobras se erguiam nas matas escuras
Sagradas e lindas – bandeiras estranhas
Mil cores sombrias corriam no chão.

Depois no silêncio da noite serena
Os homens pensavam nas lutas e guerras
Nas pescas e caças – que vida meu Deus!
Mas se as tempestades tombavam medonhas
E raios riscavam o céu sempre azul
Que medos sombrios! Castigos medonhos!
Que medos tamanhos sentiam então!

Agora, a tristeza
Cidades tão lindas
Agora, a saudade
Cidades tão grandes.
Nas matas de casas me perco meu Deus!

Me sinto sozinho

E vieram cantando cantigas tristonhas
Morcegos escuros olharam para eles –
Se encolhem os ombros nos suores tragédias.

De noite as esquinas das ruas dos bairros –
Dos bairros longínquos –
A luz é mortiça.

Ah, são os primários!
Ficaram grudados no povo bem fundo.

E a voz chama ele
De dia é moleque

Escuro e safado
De noite o mistério da voz chama ele
E muda-se em trágico anseio o seu grito
Macumba!
E ele é o mistério também.

Está tudo minado
Ah são os primários!

Meu Deus!
(nem precisão de mundo ...)
Meu Deus que te ocultas em tudo o que existe,
Tirai-me a tristeza que lenta sufoca
O meu coração.

Meu Deus a inocência primeira trazei-me,
São Jorge na lua!
Meu Deus explicai-me que eu vivo tremendo!
Meu Deus aclarai-me!

Eu tenho saudade de luares estranhos –
Eu tenho nos olhos paisagens estranhas –

Paisagem estranhas de frios intensos
Cegonhas tremendo no alto das torres
Visões de distâncias tão raras – tão raras –
Nos mundos estranhos, que voz se ergue então?

_ Minha pátria é bem longe
Minha pátria é mais longe
Fujamos daqui.

E a onça é o mistério
Tem febre nos olhos –
Tem sol concentrado no seu coração.

_ Minha pátria é aqui mesmo!
Lembrai-vos dos prantos
Que os rios levaram
De alguém que partiu.

(Obs : o poema continua, aqui está a sua primeira parte).

NAVIO PERDIDO (1929)

A PARTIDA

QUERO morrer de noite –
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.

Quero morrer de noite.
Irei me separando aos poucos,
Me desligando devagar.
A luz das velas envolverá meu rosto lívido.

Quero morrer de noite –
As janelas abertas.
Tuas mãos chegarão aos meus lábios
Um pouco de água.
E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos.
Os que virão, os que ainda não conheço,
Estarão em silêncio,
Os olhos postos em mim.

Quero morrer de noite –
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.

Aos poucos me verei pequenino de novo, muito pequenino.
O berço se embalará na sombra de uma sala
E na noite, medrosa, uma velha coserá um enorme boneco.
Uma luz vermelha iluminará um grande dormitório
E passos ressoarão quebrando o silêncio.
Depois na tarde fria um chapéu rolará numa estrada ...

Quero morrer de noite –
As janelas abertas.
Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo.

E quando todos souberem que já não estou mais
E que nunca mais volverei
Haverá um segundo, nos que estão
E nos que virão, de compreensão absoluta.

LEMBRANÇA

TODOS os que estão neste cinema agora,
Neste cinema alegre,
Um dia hão de morrer também :
Nos cabides as roupas dos mortos
penderão tristemente.

Os olhos de todos os que assistem
às fitas agora,
Se fecharão um dia trágica e dolorosamente.
E todos os homens medíocres
se elevarão no mistério doloroso da morte.
Todos um dia partirão –
mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo :

Os abastados e risonhos
Os estáveis na vida
Os namorados felizes
As crianças que procuram compreender –
Todos hão de derramar a última lágrima.

No entanto parece que os frequentadores deste cinema
Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer
- Porque em toda a sala escura há um grande ritmo de
esquecimento e equilíbrio.

NOTURNO

I

EU tenho medo da chuva
E do raio, do trovão –
Fica menor, quando chove,
Meu coração.

Quando os raios riscam rápidos
O escuro do firmamento –
Que saudade se apodera
De mim, do meu pensamento!

Me lembro de um tempo longe
Que não volta nunca mais :
Eu era bem pequenino
E eram vivos os meus pais.

Alguém, num canto, cosia
À luz de um bico de gás –
Forte trovão sucedia
A um relâmpago fugaz.

Alguém, num canto, cosia.
E a chuva chorava forte
Na rua escura e vazia,
Num tal silêncio de morte.

_ Minha mãe, que medo eu tenho
Do escuro da noite enorme!
Quanto menino pequeno
Anda no mundo, sozinho,
Que tem medo e que não dorme!

CANTIGA

FICAREI sozinho.
Ficarei sozinho,
Não partas assim!
É longo o caminho,
Longo e tenebroso.
Ficarei sozinho.

Ficarei sozinho
Numa angústia enorme,
Ficarei sozinho
Numa tal tristeza
Que – ai de mim! –
Jamais os meus olhos sentirão beleza
Nas coisas mais belas deste mundo assim.

Ficarei sozinho,
Ficarei tristonho
E – ai de mim! –
Nunca mais o mundo me será risonho,
Nunca mais a vida sorrirá pra mim.
Não partas assim!

Ficarei sozinho
Num silêncio grave,
Num silêncio tal
Que – ai de mim! –
Todos pensarão cheios de piedade,
Cheios de piedade,
Que chegou meu fim.

Ficarei sozinho,
Não partas assim!
É feio o caminho
Cheio de mistérios –
Tem pena de mim!

Fica mais um instante!
Não me deixes pobre
Neste isolamento,
Nesta casa escura
Ouvindo o lamento
- Ai de mim! –
Deste meu tormento
Que não tem mais fim!

Ficarei sozinho.
Ficarei perdido,
Minha Mãe de Deus!
Ficarei chorando de desesperança
Como em terra estranha chora uma criança
Sem amparo algum.

Ficarei sozinho ...
Não partas assim!

IMAGEM

AQUELA despedida para nunca mais.
As mãos se apertaram num gesto rápido.
Os olhos se encheram de lágrimas –
Nunca mais, como um soluço, nunca mais.

Destinos que se cruzam rapidamente.
Quem sabe se de novo, um dia ...?
Havia um pressentimento, uma certeza quase, porém,
De que nunca mais, nunca mais ...

Fazia frio. Homens de sobretudo, as golas levantadas.
Um chalé de madeira, perdido, muito longe.
E a montanha espetando o céu cinzento.

No coração opresso, os apitos eram punhaladas longas.
E aquele olhar, e aquele olhar triste e molhado.
E aquelas mãos morenas a dizer adeus ...

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



 



domingo, 28 de janeiro de 2018

SENTIDOS ESPARSOS

O que escrevi não tem sentido :
bolor dos pães ázimos
e fulgores estranhos
de uma nave interestelar,

o que escrevi não tem senso crítico,
não tem senso moral,
é desorientado.

o que escrevi faz tanto o canto
soar, como calar a esperança
que dorme na pedra inanimada,

não faz sentido o que escrevi :
a cada dia o senso do poema
se perde, eu me perdi
no mundo trevoso
dos conceitos
abstrusos,

não sei, não sei,
eu canto estas canções
ébrias sem sentido,

não sei, o que escrevi
eu nunca expliquei,
pois me tenho em dúvida
do que é o poema,
este que diz tudo
como um louco que delira.

28/01/2018 Gustavo Bastos

O POETA QUE SABE DE SI

O instrumento cortante da cirurgia
corta a galope o coração de poeta
e um palhaço como sou
estuda os abismos que engendram
as voltas da terra

este que sou que se estuda detidamente
com passos geografias e fitas master
que canta e que sonha
este que sou e que funda
os poemas sutis
da cantoria

este que segue seu rumo estelar
com vigores celestes
de bruma
            este que leva e levita
            todas as cores
            este que diz eu sou
            por ter conhecido
            o fim

ah mas me dá poesia como um santo
beberrão que tem renome
e reputação de mago
e de poeta
com paisagem
e ilusões

este poeta sou sou, este que escreve.

28/01/2018 Gustavo Bastos

BEBER ESTRELAS

Edifico um altar e bebo
os tonéis de álcool,
setas cortam o ar putrefato
que os ossos emporcalham.

Astros giram no plano potente,
os corpos celestes
erguidos
como
fábulas,

cuidado ao analisar as voltas,
círculos, elipses, cálculos
infindos do espectrograma,
o infra-vermelho radiante
destes sóis do infinito,

vai, e bebe teu licor
para ver estrelas,
bebe teu vinho
para ver a noite,
bebe teu espírito amplo,
teu grito bebe,
teu silêncio bebe,

e o meu poema eu derramo,
e a estrela rutilante
ecoa este poeta
como um rezador
destes púlpitos ébrios
que canto.

28/01/2018 Gustavo Bastos

O POMAR

O pomar tem uma face calma,
não lhe cabe os espasmos
histriônicos ou a
afetação de poeta.

Lugar imóvel, sereno,
este que o pomar
organiza.

Ah, que meu poema ventile
a paisagem do pomar,
como um este que é verso
e também sereno,
como um monge.

Ah, e leve meu poema para
tomar um arzinho,
passear pela praia deserta,
pelo campo de trigo,
pelos ares de castelos
antigos.

E que este pomar, no jardim que
eu cultivo com ciência,
me ensine a alegria
natural do sol.

28/01/2018 Gustavo Bastos