PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 16 de novembro de 2013

CAMINHO DO BEM VIVER

Trago a felicidade em minhas mãos.
A felicidade não é o mistério do universo,
é muito mais simples,
muito mais fácil.

A felicidade não é um sonho metafísico,
é um senso prático de oportunidade,
o pragmatismo da sensação
de bem-estar
sem nenhuma razão aparente,
é ter na razão e na emoção
o equilíbrio do sentir-pensar
do coração e do pensamento
como a senda unívoca
da alma completa,
ser feliz nem sempre
é ter grandes ambições,
é tê-las, as grandes ambições,
como frutos da alma, da bondade
e da sensatez,
e não como a queda do megalômano
que sonhou em ter o mundo
e foi expelido pela cloaca
deste mesmo mundo,
ser feliz, alcançar a felicidade,
é ter a plenitude
de ser tudo o que
completa a jornada
de existir.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O PENSADOR

Tenso, gravo o nome do pensador
na lápide das horas mortas.
Tinha pensado na figura e no busto
do pensador,
nos pensamentos que ele pensou,
nas teorias, conceitos, cálculos,
conclusões, dúvidas, caminhos.

Eis a obra principal,
eis os comentários,
eis uma antologia.

O seminário sobre
os pensadores obsoletos
e a moderna florescência
foram gravados
por um discípulo fiel,
cada verbo registrado
em sua voz viva.

O pensador morreu,
e de ter pensado
em várias coisas,
um único pensamento se deu:
a vida pensa e age,
o poema é só
 a certeza de nada.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

RAZÕES DO SENTIR

Claro o corpo que se funde ao espaço.
De teus braços e pés
o abraço em uníssono,
os corpos vorazes
no vozerio da paixão,
os dias lilases
de corpos nus
em santeria
de ervas
sob a noite
de areia
e clarividência,
a flor da ciência,
a fortuna da sabedoria,
todas as filosofias
num ósculo
de convergência
ao sentido unívoco
do mundo
que é tangido
de corações
aos pulos
pelo inesperado
do destino.

Este é o tempo limpo,
a clareza da ideia
amante que rutila
em toda razão de vida.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

MARÉ DE SOL

Cheiro de maresia ao dia da maré.
Quem tem fé é sacra lida,
sacrifício de medida,
tempo de poema e sol.

Com os vinhos tintos da litania,
cai e sobe o mar,
ventre do frio lunar,
vem e vai maré cheia e vazante,
a dor espera o instante,
a flor desperta adiante,
e o calor refaz o caminho
que ao largo do silêncio
o poema se faz mirante.

Cheiro de bruma no rio das léguas,
caminho de vinho pelo ardor
que gera meu mistério de alegria.
À flor suada o bem-te-vi faz festa,
bem rica nasce a onda na enseada,
o plano divino delineia toda estrada,
já é o poema ao qual o tempo
vê no espaço infinito
todos os versos
da fúria que ama
todo alvorecer
de que o sol
refulge.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

AMORES LUNARES

Frutifica o tempo
em vão de paixão
ao frio e ao calor
dos instantes noturnos.

Poema devaneia verso loucura e grito,
silencia o termo calado
depois do surto,
garante o estro à flor ferida,
e divaga mistério
nas cãs da alma de lua.

Ao poema o ardor fulgura
sempiterno céu de fundo amor.
Qual queda o plenilúnio
dá lugar à lua nova,
e já na mirada do minguante
faz crescente
o amor refeito
que senti.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LUZ CONCENTRADA

Desfecho, nesta luz incontida
que ilumina a noite fria.
Olho os meus topázios,
desafio o cobre e a prata das armas.

Intenso é o segredo marmóreo
de meus silêncios.
Diante do timbre a voz rouca,
em fio de meada o ensejo das cordas.

Flecho o fecho do coração convulso.
Digo e desdigo a paixão que
dá volta ao mundo,
caio mudo e desnudo,
picho um muro
de tinta azul,
e o amarelo da parede
dos dias
corrói
a tez alva
do meio-dia.

Conjugo o verbo amar
como desarmar,
e o coração noturno
fecha e contorce
o sol que mora
no poema que dá
o sentido da dor.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

ENSEADA DO TEMPO

O mar não esmorece de teu calor de oceano.
Tal poema fustiga os demônios,
a sombra da intempérie
recava a sua queda e decadência,
as palavras soltas flutuam
ao tempo do versejador,
o poeta crê na nuvem
de sua loucura,
o tempo antevê
o visionário,
e o poema tudo vê
ao olho do vinho
que sustenta
as esferas
do céu limpo
que ilumina
a poesia.

O mar ignora tal tempo de ferro,
e no sal qual esmero,
faz continente
e terra de enseada.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

VISÃO DE PAISAGEM

A paisagem desfigura a razão,
nota por nota o cais descansa,
e a paz da penumbra foge ao sol.

Leve o susto cai da razão morta,
e o sol, qual flecha de loucura,
espanta a noite com seu dente de luz.

A paisagem, tal o temor da fúria,
cai ao silêncio como funda esmeralda.
O sol, ventre do solo fértil,
faz chuva com o poema de fausto
que avança sobre o trigo queimado,
e forte o poema se volta
ao vento que sopra
do infinito
dos mares
da visão.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

CONTO DA FADA

Fada-madrinha, de teu mel
ao teu mal quero-te todo o bem
da fauna real.

Floresta do encanto,
me traz a honra do poema
do pó alucinógeno
de tuas asas,
fada-madrinha,
sei que estás
no sol e na nuvem
como quem quer
meu todo
d`alma
à flor
d`aurora.

Eis teu rito e magia,
fazer de mim
mais poeta
que todo drama
visceral da vida.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

TEMPO INCLEMENTE

Diante da vida, tardo nos meus lençóis.
Faço hora com a danada manhã.
Corro pelo vento à hora exata,
e o tempo me combate
e eu combato com o tempo.

Fauna rústica é o grito da cidade,
passa passaredo em revoada,
uma noite a mais no meu canto ébrio,
uma paz de verso no cantinho do meu quarto.

Eis tudo, o poema e seu topázio,
a poesia que rutila ametista,
o pó do vidro que torna diamante,
e o amante com rompante
de dor e êxtase
na noite suja
do sangue
que a boêmia
bebeu.

14/11/2103 Êxtase
(Gustavo Bastos)

A RUA E AS TRÊS IDADES

Atravessar a rua para um menino
é aprender a olhar para os dois lados.
Todo menino comportado aprende isso
e depois sabe que só se atravessa
com o sinal vermelho.

Os adultos, por sua vez,
calham a correr,
deixam os meninos
atrás,
furam fila
e andam na pista
sem olhar
e no sinal verde.

O velho, já de bengala,
volta a olhar os dois lados
e o terror do sinal vermelho
lhe avisa que ele tem
trinta segundos
para não ouvir
buzinas
no meio da pista
do espanto
de um atropelo.

O velho chama o menino para atravessar,
e um adulto corre sem mais.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O OLHAR DE UM GATO

O gato passou debaixo da mesa de jantar,
viu em espírito a total família da casa,
pulou e agarrou um vulto
que ninguém viu,
o que seu olho de gato
viu é o fundo da parede,
é o mistério envolto da xícara,
é o riso imaterial na janela,
é o quadro em sua tinta forte,
é a criança fascinada
que tenta lhe pegar pelo rabo
enquanto corre
atrás do vulto
como um berro de miado
que a família
pensou que fosse
fome e não
vidência.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ZÊNITE

Eu vejo o andor e o sol me castiga.
Lá bem longe a máscara fere o poema.
Tal é o senhor tempo
da pura magia ao tambor,
sete índios se pintam
para a guerra,
e os tambores são gritos
dentro do corpo da floresta.

São juncos terríveis
os castelos invisíveis,
são fantasmas os temores
da ayahuasca,
e é vermelha a pele
que o poema
maquina,
sob as intempéries do caos
a cal e a penumbra,
e as asas movediças da paixão
socorrem a infausta queda
da qual a poesia
se levanta,
e mais tambores tocam
com a dança do sabá
de fogueira
na noite
dos lírios
que versejam
no zênite do amor.

Flautas doces ressoam nas nuvens.
O mar está longe da funda mata,
a guerra entre as tintas de urucum
são brios atávicos
de música de totem,
e as flechas são coroas
do corpo ferido
de oceano infindo
d`alma.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LAGUNA DOS GIRASSÓIS

Laguna, que semente a tua bruma
do musgo e da verve clama,
e os sóis fugidios na quentura d`alma.

Paz armada, da luz ventilada.
Meus livros são senhores
do tempo firme da visão,
a febre visionária
que ao caudal da chuva
luta com o cibório
em fogo de púlpito,
tal é a guerra da honra
em seu corpo belo de bronze e ferro,
ó poeta, tens o sal em tua roupa,
qual o pântano dos dizeres
no qual renasce a penumbra?

Faz o tempo o ar e o estalo
das flores com tão bento acalanto.
E as sombras rotas, de fios lassos,
não têm poder sobre a lua
nos teus girassóis.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O LUGAR PRÓPRIO

De pouca monta o ardil que nos cala,
o fruto do silêncio que
fulmina a verdade
é o triunfo da ignara
senda ao nada.

Da mais temível febre
o espanto e o medo,
e tal covil espantado
da morte oculta
o poema também cala,
e o calor sob o mistério podre
da canção enumera
a vala dos números
de um cadafalso
já mentido sob juramento,
e o justiçamento do sangue poeta
dá de ombros aos feitiços
de ardis que enfraquecem,
e o tempo-rei dá o riso e desdém
deste mundo oco
de tanta lida sem eira nem beira,
uma vez que poema e poeta
sempre souberam
onde estão.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

MISTÉRIO DO PÂNTANO

Todo pântano dos silêncios
ressoa sobre o grito calado
do húmus e do musgo,
deserto verde de serpente,
funda brisa úmida de tempestade.

Tarde, ao largo do rio,
dorme o espanto de pranto
que nem o corpo de um déspota,
seu mando de sangue
é o rito que fere a fria luz,
e o albor do eldorado
dorme sem sol à mostra,
tal luz de utopia
se esconde em mata densa
e o fim do mistério
não tem nada
do que afirma o tempo
e suas vãs cartas suicidas.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ALMA LÍQUIDA

Concentra o ar na lida da fumaça.
Dos ases sobre o céu,
a clemência da artilharia
diante do peito nu.

Perde-se em verso o tempo da luta,
perde-se toda luta
sem o verso da contenda.
Queda e mistério é o terror da dança,
 febre e tumor é o riso torto do desespero.

Vai o ar sob fumaça e o tempo na desrazão,
ceifa o coração a garra da loucura,
crê o coração na alegria do caos.

Parte ao meio o coração o peito rasgado.
O poema se esfumaça
de tanta dança
ao coração
que vira água,
e o luto fundo
do corpo já morto
revive
e roda
qual
chuva
de tormenta,
o corpo desigual
de uma alma líquida.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

DA VOZ SUCUMBIDA

Quem à dor tem a voz sucumbida?
De flores o ardor mais cândido,
soçobra o ferro da morte
no corpo indócil,
e encontra no meio do mato
o doce fel de aço à flor mastigada.

Quem ao sol o vento exulta?
Pois, do ar doente do frio,
o vento, sentimento de sopro,
acorda o dia, tal aurora perdida,
como sinal da luz sobre o silêncio.

Quem, d`alma funda, corpo em bronze,
sede à sede a vã paixão?
Sente o poeta tal risco de luta,
e que luta a batalha da senda,
e que funda tal poesia
que inda quebrantada
de coração em punho
com as mãos furiosas
de tanta briga,
e o sonho ferido
de tanta queda.

Vai firme, e o passo largo
como um continente, e o poema reto
como uma faca.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SOL DE ÊXTASE

Puro nada é o êxtase,
ao fio d`água o bronze e o sol.
Cama, louça escura da fome,
vai de teu sexo ao meu sexo,
corpo derrama.

Desdém é o nada em seu fundo,
paz edulcorada e sem estrada,
êxtase é solidão,
sem amor e sem flechada.

Cai da carne o carnaval,
seu vento puro nos enleva,
de corpos tais os sais fulguram,
orquestra maestra da festa,
corpos tais de carnavais.

Puro tudo é o triste lamento,
de tudo a litania ressoa,
ao nada e ao mar
o êxtase dissolve,
dissolução romântica
é o poema,
e de outro lado
o corpo que intumesce
ao brilho do bronze e do sol,
ao fio d`água
da sede que morre
 de mar.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PASSADAS

Ao passo do que anda,
tudo vai a pé.
De todos os dias passados,
flor d`água cai em pé.

Mesmo dia de labuta,
mesma praia da ausculta.
Peso o corpo na água,
sou tão ali como aqui.

Peço ao vento o lasso calor,
do frio o vento traz albor.

Ferve a morte na onda,
o nada se compraz da tragédia,
como no auge do verso
sob a capa da chuva,
com o verso sob o sol
que no meu corpo luta.

Em todos os caminhos
se vai a pé e todo caminho
vem do andar que não tem fim.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

CONVERSA COM UM TELEPATA, DENTRO DE UM HOSPÍCIO

   Certo dia, isso já tem uns bons dez anos, resolvi passar uns três dias dentro de um hospício para fazer uma reportagem. Ela rendeu boas histórias, algumas delas até viraram contos pequenos, mas uma em particular me chamou atenção, e me remeteu às viagens de William Burroughs atrás de seu Yage, erva que continha a chamada substância da telepatia, a telepatina. Dentro do hospício, descobri, no meu segundo dia lá dentro, que havia um homem de uns 40 anos no quarto 12 que, segundo outros internos, era um mago. Depois, consultando o seu psiquiatra, descobri que era um sugestionado místico, que o paciente se julgava em transe espiritual e que tinha a faculdade de telepatia.
   Pedi autorização ao psiqiuatra para conversar com seu paciente que, por recomendação médica, passava a maior parte do dia sedado, numa cama, dentro do quarto 12. Fui até lá de tarde, que é quando o paciente em questão era liberado para o almoço, e que, após a refeição, podia passar umas horas da tarde interagindo com os outros pacientes daquele hospício. Fui até ele, vi que tinha um olhar do que, no espiritismo, que bem conheço, se tratava de um obsediado já em estágio avançado de fascinação. Fiquei uns bons dez minutos só olhando para ele, antes de abordá-lo, reparando na sua linguagem corporal e no seu diálogo com os outros internos: "Vejam só, eu tomei quinhentos ácidos em um ano, mas o porre mesmo foi o Yage, depois do peiote não deu nada, depois da ayahuasca não deu nada, mas a telepatina me deu o poder, posso ler todos os seus pensamentos, eu sou o dono desse lugar aqui, posso me comunicar com vocês através da telepatia, tomei telepatina e meu terceiro olho abriu, man!" Ao que outro interno respondeu: "Você é o mago, é? Me mostra sua chama vermelha, me mostra sua chama vermelha!" Outro, ao lado, começou a rir e falou: "O mago tá louco, depois somos nós que somos doidos!". Ao passo que o mago respondeu: "Posso ver o teu pensamento, tem um monstro dentro da tua cabeça, meu caro discípulo, invoco mamón e moloque, tenho a espada da justiça em minhas mãos, meu poder astral é magnânimo, vou me concentrar a criar o teu fogo interior, só um minuto e teu monstro vai sumir daí!". O outro paciente retruca: "Você é o mago, mas não me comanda, daqui a pouco vão te pegar e dar um sossega, você é besta, muito besta, até um metido à besta!".
   Olhava aquele diálogo surreal e incrível, e então, finalmente, me aproximei do mago para conversar com ele: "Fala mago! Como você está? Ouvi dizer que tu tem o dom da telepatia? Poderia me mostrar como isso se faz? Também posso me tornar um telepata?" "Ainda bem que você crê! Tenho esse poder da telepatia sim, você quer ver?" "Claro, sou médium e só me falta o dom da telepatia para que tudo funcione para mim." "Então vai lá, se concentra, vê o que estou vendo? Embuti uma flor de lótus dentro da sua cabeça, posso ver os seus pensamentos, agora vou lhe enviar um tipo de pensamento, e você me diz se recebeu." "Opa, peraí, um minuto, mais um minuto ... ahá! Agora eu vi, você pensou numa serpente lutando com um porco, não foi?" "Eh ... sim! Sim! Você entendeu tudo! Tá vendo como sou um telepata! Eu sou um telepata! Eu sou um telepata!" "Sim, você é um telepata!" "Eu sou o dono deste lugar, ouço todos os pensamentos de todos que estão aqui dentro! Eu sou um telepata! Tá vendo aquele gordão babando ali no meio do pátio? Ele tem o dom da cura nas mãos, ele é meu servo, sou o mago e sei o que ele está pensando agora, ele só pensa em coisas com bacon, seu corpo clama por bacon toda hora, olho e vejo um porco no lugar de sua alma." "Cara, isso é demais, vamos lá falar com seu servo, que tal?" "Claro, eu sou um telepata! Vamos lá que vou ouvir o pensamento dele e falar o que vi dele para você."
   Bom, àquela altura já sabia que a fascinação espiritual do autointitulado mago e telepata era um perigo para ele mesmo, sabia que seria muito difícil que ele saísse daquela trama psíquica, e que o máximo que podia fazer, como repórter que sou, e não como psiquiatra, era embarcar na onda pra ver até onde ela ia, e foi o que eu fiz, fingi ser um crédulo, "mais um discípulo". O mago também, a meu ver, tinha um problema sério de ego, sua crença em si mesmo parecia um tanque, ele era o dono de tudo, ao menos naquele lugar, mas, concretamente, não passava de um dos pacientes de um hospício, e pior, vivia a maior parte do tempo recluso, não se sabe e nunca se saberá o que passa exatamente por sua mente quando está sedado e recluso no quarto 12, nem o que sonha quando está dormindo, e nem o que tanta medicação provoca e o que tanta droga alucinógena provocou até ele chegar a este ponto que, agora, eu estava vendo.
   Fomos até o seu discípulo, o gordo babão, para mais uma exibição dos dons do mago telepata. "Eu sou um telepata! Todos aqui são meus discípulos, eu sou o dono deste lugar, ouço todos os pensamentos daqui, vamos aqui, eu sou o mago e vou ler seus pensamentos." Se dirige ao gordo babão, "Eu sou um telepata! Agora vou me concentrar e olhar dentro de seu pensamento. Você está pensando em bacon, sempre pensa em bacon, não é verdade?" "Eeeeu tô pen pen san dôôôô ah ah ah ah! Bacoum bacoum magôôô eue tô pensano ou ou ou ou .... blah!" "Tá vendo, ele só pensa em bacon, toda hora ele só pensa em bacon, eu vi seu pensamento, ele tem a alma de um porco, um espírito está a seu lado, sua vida virou uma obsessão por bacon, ele nem fala direito mais, é meu servo, me serve taças de ouro maciço com vinho à meia-noite em um de meus banquetes reais. Faço magia negra dentro do meu palácio. Eu sou um telepata! Eu sou um telepata!"
   Bom, depois daquela cena horrível de humilhação contra o gordo babão, pelo mago ególatra, deu quatro horas da tarde, e então dois enfermeiros recolheram o mago para tomar injeção, e o telepata em questão voltaria, pelo resto daquele dia, às trevas de sua reclusão no quarto 12. Da minha parte, produzi uma reportagem, algumas partes eu poupei para não chocar, e aqui está meu relato da principal história que vi dentro do hospício, foram três dias de uma experiência bem curiosa, como se fosse uma antropologia da loucura, muito mais do que o intuito da reportagem em si, ou de possíveis e forçadas psicologizações que não dão conta do fenômeno humano. E foi isso que eu vi lá, a natureza humana, talvez até mais amplificada por uma dor entre anestesias inexplicáveis.

13/11/2013 Crônicas (Guilherme Thompson)  
 

domingo, 10 de novembro de 2013

PULPHEAD, ENSAIOS DE SULLIVAN

"Há uma liberdade literária muito maior nos ensaios contemporâneos, e isso fica claro, no caso de Sullivan, em seu Pulphead."

   John Jeremiah Sullivan, norte-americano nascido em 1974, em seu segundo livro, Pulphead, de ensaios, se revela um talentoso contador de histórias, que tomou da ficção muito de sua veia ensaística. Com textos em revistas como Harper`s, GQ, The Oxford American e The Paris Review, tem sido comparado a Tom Wolfe e David Foster Wallace. Com uma prosa flexionada em torno de seu tema, assume dicção oitocentista americana, num eco de Emerson e Thoreau. Ao contrário da trama bem cortada de Tom Wolfe, Sullivan desenvolve seus ensaios através de uma trama que leva à diluição de sua prosa, esta mesma que, por sua vez, carrega o tema de modo desordenado, pois temos aqui o viés do romance dentro do ensaio contemporâneo, que toma seu método no tema que se espalha pela prosa, tal como num romance, e a trama não se fia em exatidão racional.
   O ensaio americano em revistas, tanto no texto longo como no ensaio crítico, floresce, atualmente, em condições novas, superando uma falsa nostalgia intelectualista da Nova York dos jornalões da década de 1950, pois nada faltaria a nomes como Edmund Wilson ou Alfred Kazin, nos dias de hoje. Revistas surgem, como McSweeney`s, n+1, The Point e The Common, e outras antigas aparecem reformadas. As revistas tomam o lugar, na crítica, dos jornais, os quais evaporam. O ensaio contemporâneo aparece como uma fronteira que supera a novelização, e se coloca no modo fragmentado, que tira o enredo e segue o fluxo, e que, numa fratura de parágrafos numerados, deixa-se de lado a verossimilhança, e põe-se no lugar uma relação imbricada de realidade e ficção.
   No ensaio contemporâneo, o autor deixa de lado sua impessoalidade na segurança da terceira pessoa, tendo então um autor que entra e sai, transgredindo a estrutura tradicional da ficção. Há uma liberdade literária muito maior nos ensaios contemporâneos, e isso fica claro, no caso de Sullivan, em seu Pulphead. É a nova prosa ensaística, que usa de técnicas retiradas dos truques da novela e do romance para negá-los, liberdade que passa por irrealidade ou a pura falta de qualquer definição categórica do que é real, num misto e paradoxo que não se desvela em unidade de percepção, permanecendo a dubiedade, uma vez que até a temática do reality show, por Sullivan, em um de seus ensaios, denota o fracasso desta distinção entre realidade e ficção, no mundo contemporâneo.
   Sullivan, embora posto pelo crítico Geoff Dyer, como um ensaísta fora de moda, tem seu talento no ponto exato da questão do real que passa pelo mundo contemporâneo, pois é no nexo de criar na realidade a ficção que Sullivan, portanto, consuma seus ensaios, numa aparente ficção criada a partir de dados reais. O ensaio de Sullivan joga de propósito com este duplo sentido e o coloca como fratura que é nada mais que indefinição, e que busca o real, apesar desta cisão contemporânea. "O realmente real" de Sullivan é afirmado e, paradoxalmente, questionado o tempo todo. Sua ficção é real, pois se funda em fatos reais de reportagem, à exceção de um ensaio malsucedido sobre animais em fúria contra humanos, deste mesmo livro Puplhead, que é um caso isolado de tentar uma ilusão de fato. Em Sullivan, ao fim de Pulphead, fecha-se a chave dupla do ensaio contemporâneo, pois, pelos escritos de Sullivan, esta chave bem atual do conceito de realidade não nega que haja, na forma, em tais ensaios, ainda uma prosa clássica ou oitocentista.
   Destaco três dos ensaios de Sullivan do livro Pulphead. Um sobre Michael Jackson, outro sobre Axl Rose e o último sobre Bunny Wailer. Começando pelo ensaio sobre Michael Jackson, que tem seu início num Michael no dilema entre as músicas encomendadas de seu grupo com seus irmãos nos Jackson 5, e a ambição que levaria Michael muito mais longe do que aquele início, e que, numa busca de seu instrumento interior, o leva ao estrelato. Pois, desde sua visita aos ensaios musicais de Stevie Wonder, sua curiosidade e sua intuição se tornaram as sementes que produziriam o maior astro pop da História. E tal História se firmou, de forma polêmica, numa ambiguidade de cor branca ou negra, que era um conflito de sua imagem, mesma imagem que sairá, mais tarde, arranhada por escândalos de pedofilia.
   O retorno de Michael à sua infância, por sua vez, se torna o reflexo de alguém que só tomou consciência de si, já no caminho do estrelato. Por outro lado, depois de Off The Wall, em que Michael consegue grandes êxitos, ele não se dá por satisfeito, e queria fazer algo realmente grande, se juntando aos irmãos mais novos, Randy e Janet, com os quais já tinha criado "Don`t Stop `Til You Get Enough", e produz a pérola "Billy Jean". Daí pra frente, Michael explode com Thriller, e se considera um abençoado de Jeová, ao qual agradece pelo seu talento. Michael alcança o tal próximo nível de sua carreira solo e tem seu sonho realizado. Ele não queria inclusão, mas ter o público a seus pés. Sullivan afirma que ainda falta uma biografia realmente séria sobre Michael, pois ele era o centro onde convergiam todas as correntes culturais da música americana.
   Em seu outro ensaio, Sullivan fala de Axl Rose. Este ensaio é uma prosa, evidentemente, de um fã incondicional, pois Sullivan defende Axl até de sua velhice, tentando deixar claro que ele ainda é o mesmo Axl que despontou na juventude, de onde veio do nada, do centro de Indiana, lugar do nada, para Sullivan. E Axl grita: "You know where you are?", ao que o mesmo responde ao público no final: "You`re in the jungle, baby." Clássico indefectível, os Guns N` Roses ainda conseguem dar conta do tranco, mesmo que a banda não seja mais a original, só tenha Axl, mas que, devidamente, substituiu o guitarrista Buckethead por um cara chamado Bumblefoot, que toca muito, e os caras, então, decidiram conseguir tocar as partes do Slash. Tudo está perfeito, nota por nota, é uma batalha entre ver todos esses caras que não estavam no Guns N` Roses original, pulando no palco com Axl, e tocando músicas dos Guns N` Roses, e as qualidades duradouras das músicas em si. Axl, desde o início, segundo Sullivan, foi o único dançarino branco e homem indispensável de sua geração, o único que valia a pena imitar de brincadeira. Para Sullivan, sobre os Guns N` Roses: "Eles foram a última grande banda de rock a não achar que existe algo meio constrangedor em fazer parte de uma banda de rock."
   Para fechar, falo aqui do ensaio sobre Bunny Wailer, que é, disparado, o que mais gostei neste livro de Sullivan, uma verdadeira aula sobre a Jamaica e Kingston, pela visão de um de seus mestres, Bunny, que foi, nada mais, que um dos membros originais da lendária banda que lançou Bob Marley, os Wailers. No início de julho de 2010, Sullivan foi de avião até a Jamaica, com o intuito de entrevistar Bunny Walier.
   Kingston, em uma década, viu o surgimento de Bob Marley & The Wailers, Toots & The Maytals, Jimmy Cliff, Desmond Dekker, The Pioneers e The Paragons, The Melodians e The Ethiopians, The Heptones e The Slickers, The Gaylads e todo um rol de gente, que formam um vórtice de talento de primeira linha. A maioria veio dos mesmos conjuntos habitacionais, e em grande parte, estava cantando para sair deles. E o motivo pelo qual o melhor material jamaicano se aprofunda com o passar do tempo, é que a música, na Jamaica, tem um sentido espiritual.
   Na entrevista com Bunny Wailer, Sullivan ouve muitas histórias antigas sobre Kingston, de como, a partir da década de 60, o país jamaicano se tornou um dos mais violentos do mundo, pela tomada das milícias, que se dividiram em dois partidos rivais, o esquerdista People`s National Party (PNP) e o conservador Jamaica Labour Party (JLP). E, nos anos 70, a coisa piorou. O líder do PNP, Michael Mandy, manifestou simpatia por Fidel Castro, o que levou ao apoio da CIA americana ao líder do JLP, Edward Seaga, e as armas recebidas pelas milícias, portanto, aumentaram em quantidade e calibre. Era Manley contra Seaga, socialismo contra capitalismo, PNP contra JLP. Kingston se tornara um front em miniatura da Guerra Fria.
   Enfim, fecho esta resenha com a curiosa história de conversão de Bunny Wailer ao rastafarianismo. Bunny conta a sua história: "Eu sabia dos rastas desde criancinha." explicou, "mas Blackheart Man era o nome dado ao Rastaman para manter todos os jovens longe daquele indivíduo, porque ele arrancaria o coração deles para comer e coisas do tipo. E quando alguém desobedecia ou fazia qualquer coisa errada na família, diziam: Se não se comportar direito, vou chamar o Blackheart Man para pegar você."    
   Em Kingston, na região de Trench Town, quando os garotos se atrasavam para a escola, costumavam cortar caminho pelas valas para chegar mais rápido. Os rastas moravam nas valas, onde montavam acampamento. "O Blackheart Man morava no lixo", disse Bunny. Às vezes um desses místicos com dread-locks saía do barraco "para encher sua panela de água" e, quando as crianças o viam, corriam na direção oposta. Bunny então percebeu que, enquanto ele e seus amigos fugiam correndo dos rastas, estes voltavam aos seus buracos andando calmamente. Uma vez, Bunny parou e interrogou um rasta, que fez, numa pequena conversa, converter Bunny ao rastafarianismo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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