PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 27 de fevereiro de 2016

MAIAKÓVSKI, OS POEMAS DE SOM E FÚRIA – PARTE I

Maiakóvski, o grande poeta panfletário, o que leu Marx e absorveu a luta no meio político de sua arte engajada, que de súbito anuncia suas palavras, começa num gesto inocente de escrita, mas se dá bem quando decide pela literatura e recebe a palavra mágica de Burliuk ao ler para ele o poema Noite (o que Maiakovski pensou que não se publicaria em parte alguma): “Mas foi você mesmo quem escreveu isto! Você é um poeta genial!” Logo depois deste incentivo, no decorrer da produção de Maiakóvski, este elege um norte, seguiria a trilha de seu herói, o poeta Khliébnikov, com suas soluções formais inovadoras, inaugurando um novo poema russo, de ímpeto revolucionário, poesia moderna, já rompendo com o simbolismo anterior, já numa linguagem mais coloquial, ainda rica de sons, como no caso de Maiakóvski, mas comprometida com a realidade, já bem depois de tradições seculares e canônicas como de Pushkin.
Nos poemas “De Rua” e “De Rua em Rua” fornecem um pouco do início do trabalho poético de Maiakóvski, já num comprometimento do poeta com a realidade urbana, sobretudo, guardando ainda a sonoridade e o ritmo, que foram bem traduzidos para o português no trabalho conjunto de Boris Schnaiderman e dos irmãos e também poetas Augusto e Haroldo de Campos, tendo neste caso o tom destes poemas bem respeitados e conservados, numa linguagem adequada ao russo do poeta Maiakóvski, que tinha sido vítima, anteriormente, de traduções retóricas e gritadas que não condiziam com ele, embora este tenha sempre sido hiperbólico na própria língua russa.
Nestes dois poemas, portanto, aparece o poeta urbano que foi Maiakóvski, já para além de um simples leitor de Marx e alma revolucionária, o que nos versos de “De Rua”, podemos ver: “Cravo as estacas dos meus passos,/O tamborim das ruas sente.” Ou ainda: “Alçando à mão o olho arisco,/A praça oblíqua põe-se a salvo.” Aqui temos as ruas e a praça oblíqua, mesmo numa linguagem bem sonora, e que tem o pé fincado na cidade, neste caso a imagem da rua e seu tamborim (burburinho, azáfama), e a praça que se põe a salvo, com o olho atento (arisco) do poeta russo. E nos versos de “De Rua em Rua”: “dos/anos/sona-/dos.” E também em: “Nos cavalos de ferro/das janelas das casas que correm/saltaram os primeiros cubos.” Aqui vemos o ritmo, o som e a rua, o urbano com o som da poesia, dos anos sonados em tradução fidedigna, e resultando na mestria imagética, também, com os cavalos de ferro que das janelas das casas saltam, e velozes dão o ritmo da cidade, azáfama do poema, meio em que vive o poeta, rua que o poeta escreve.
No último poema “A Mãe e o Crepúsculo Morto Pelos Alemães”, que tem versos como: ““Fechem, fechem os olhos dos jornais!” e “Veja – o ar se pavimenta/de balas como pedras ribombantes!”, os ais das mães brancas nos caminhos negros, a guerra, elas pedem para fechar os jornais, lá estão, nos jornais, o que a mancha da batalha faz chorar ao desamparo, e pedem, fechem os jornais, o filho grita com a mãe neste poema, Varsóvia está lá, o crepúsculo morto pelos alemães, e o ar é pavimentado pelas balas, estas que ricocheteiam como pedras ribombantes, o som das balas são o som do poema, a guerra sua forma, e Maiakóvski seu mensageiro, o poema que tem o drama das mães na guerra, e os jornais devem ser fechados, para que parem com a dor, mas as balas correm no poema, e os jornais são o poema como  a notícia da guerra.
Segue-se os poemas:

DE RUA

Barracas – entre imagens gastas,
Bandejas sangram framboesas.
Num arenque lunar se arrasta
Sobre mim uma letra acesa.

Cravo as estacas dos meus passos,
O tamborim das ruas sente.
Lentamente os bondes-cansaços
Cruzam com lanças fluorescentes.

Alçando à mão o olho arisco,
A praça oblíqua põe-se a salvo.
O céu esgazeia ao gás alvo
O olhar sem-ver do basilisco.
(1913)

DE RUA EM RUA

Ru-
As.
As
ru-
gas dos
dogues
dos
anos
sona-
dos.
Nos cavalos de ferro
das janelas das casas que correm
saltaram os primeiros cubos.
Cisnes de pescoços-campanários,
Torcei-vos nos fios do telégrafo!
No céu se grava o guache das girafas,
desaviva a ferrugem dos penachos.
Brilhante com truta
o filho
da leiva sem lavra.
O mágico
puxa
Da goela do bonde os trilhos,
oculto pelo mostrador da torre.
Estamos ganhos.
Banhos.
Duchas.
Elevador.
A dor leva o corpete da alma.
Ao corpo queimam os dedos.
Grites ou não grites

“Eu não queria!” __
ao corte
queimam
os medos.
O vento farpado
Arranca
da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada.
O lampião calvo
Despe voluptuosamente
da rua
uma meia preta.
(1913)

A MÃE E O CREPÚSCULO MORTO PELOS ALEMÃES

Mães brancas nos caminhos negros
Estendem-se – brocados convulsos sobre féretros
O inimigo derrotado, e elas lançam seus ais:
“Fechem, fechem os olhos dos jornais!”

Uma carta.

Seja forte, mãe!
Fumaça.
Fumaça.
Mais
fumaça!
Tua voz que lamenta
distante?
Veja – o ar se pavimenta
de balas como pedras ribombantes!
Ma-m-mãe!
Arrastam agora o crepúsculo ferido.
Resistiu quanto pôde,
duro,
troncudo,
mas de súbito, _
abalando as espáduas sólidas,
o pobre
caiu chorando no colo de Varsóvia.
Estrelas estridulam
em lenços de chita azul:
“Morreu,
Morreu
o meu amado!”

E o olho turvo do novilúnio
fita de soslaio
o padioleiro soturno, de inertes punhos.
As aldeias lituanas acodem numa chusma:
embutida na sombra, firme sobre os cotos,
marejando de lágrimas igrejas de olhos de ouro,
Kovno decepa os dedos de suas ruas.
O crepúsculo urra
_ sem pernas, sem braços: _
“Não é verdade!
Ainda sou capaz
de
retinindo as esporas numa doida mazurca
torcer as minhas felpas ruivas!”

Tilinta.

Mãe,
Quem chama?
Branca, branca, brocado em funeral.
“É ele _ ânimo!” _
o morto do telegrama.
Ah fechem, fechem os olhos do jornal!”

(1914)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27490/17/maiakovski-os-poemas-de-som-e-furia-parte-i 
   


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

BABY NOSFERATU

Na família Stevens tinha um ar aristocrático de tradição milenar, uns ingleses misturados com alemães e austríacos, e que agora, num núcleo particular, na cidade de Viena, em pleno século XX, mais exatamente em 1922, se desenrola a trama de um pai e de uma mãe de 12 filhos, dez homens, duas mulheres.
O pai de nome Joseph, a mãe, agora grávida de mais um menino, de nome Lia. Os dez homens: Richard, 30 anos, Selton, 29 anos, Douglas e Mark, gêmeos, 27 anos, Martin, 24 anos, Theo, 22 anos, Philip, 15 anos, Dan, 12 anos, Ludwig, 10 anos, Dagliev, 5 anos. As duas mulheres: as gêmeas Stephanie e Lea, 25 anos. Lia estava com 45 anos, Joseph, com 60 anos.
A família Stevens, abastada, era uma família de músicos, todos eles. Joseph tocava piano, sabia fazer partituras para concerto e orquestra, tinha uma obra reconhecida, embora nada que se aproximasse de um virtuose ou de algo que ficasse na História de Viena e do mundo da música erudita, era mais conhecido por apreciadores. Lia tocava flauta doce, dentro de casa, escreveu algumas partituras, mas era algo conhecido apenas dentro da família. As gêmeas Stephanie e Lea tocavam violino em orquestras de Viena, não faziam composição, as duas eram especialistas em Bach.
Richard era compositor com o piano, também fazia partituras para concerto, com um pouco mais de vulto que seu pai, quase um dos grandes, mas reconhecido apenas na Áustria. Selton era membro de orquestra e solista de violino, não compunha. Douglas tocava piano solo e para concerto, também não compunha, e junto com Selton e seu gêmeo Mark, especialistas em Beethoven.
Martin, fanático por Brahms, mas também especialista em Liszt e Chopin, aonde era um executor virtuose e um dos melhores intérpretes, tentava compor, mas não com a mesma desenvoltura de suas execuções de Liszt e Chopin ao piano. Theo era um bon-vivant, tocava violino por prazer, mas não quis se envolver no mundo da música, vivia da renda da família, assim como Philip, que era um amador no violino e no piano, e tentava arranhar algo no violoncelo, não tinha muito foco ou perseverança, o mais fraco dentre os filhos de Lia e Joseph na música.
Dan, outro pianista, seguia a trilha de Martin em Liszt e Chopin, com bom rendimento. Ludwig, com nome forte, honrava a herança na orquestra como flautista solista, não compunha, mas executava brilhantemente Beethoven, seu astro principal e seu estudo detido, já aos dez anos. E Dagliev, por fim, aos cinco anos, começava a aprender piano, e ia bem com Mozart, seria o primeiro especialista em Mozart da família.
Lia, com sua intuição, achava que o temporão que ia nascer seria então o esteio musical desta história familiar, todos eram muito unidos, e Richard também tinha a mesma sensação de que algo muito importante iria acontecer para eles, Lia era mística, e tinha sonhos de um menino virtuose compondo febrilmente, mas também, nestes sonhos, via sangue, mas não entendia o que aquilo significava.
O menino nasce em 1923, Lia aos 46 anos, um parto difícil, em que Lia delirava e dizia que via um espírito de um ancião todo de preto, com uma barba branca até os pés, e um cajado, e que se esvaneceu ao primeiro choro de vida do rebento, que levou o nome de Wolfgang, em homenagem a Mozart.
Wolfgang Stevens nasce, e Lia tinha um anseio que sabia que era real, o primeiro Stevens a romper o círculo austríaco e despontar para ventos mais amplos, algo que Joseph, o pai, via com ceticismo, pois não entendia aqueles delírios de grandeza de Lia e de Richard em relação a alguém que ainda era um bebê. O ceticismo de Joseph estava ligado a sua formação sólida no positivismo, algo que confrontava diretamente com o misticismo messiânico de Lia e da fé luterana de grande parte dos filhos, com exceção de Martin, que ganhou uma influência brutal do pai e era também da fé de Comte. Só que a verdade era a de que o sonho de Lia e a fé de Richard se tornariam, terrivelmente, algo real.
Nos primeiros anos, Wolfgang foi treinado no piano, e na leitura de partituras, mas logo começou a ter hábitos estranhos aos 3 anos, como o de brincar de morder seus irmãos e os cachorros do grande quintal da casa. E o choque foi quando Lia viu um pombo dentro da boca de Wolfgang, no que ela bateu nele e disse para ele parar com aquela “brincadeira”.
Algo acalmou por um tempo, e Wolfgang avançou velozmente na composição já aos cinco anos, nas cordas e no piano, no órgão, ele abarcava tudo num galope de dar calafrios, e seus hábitos noturnos aos seis anos já eram tolerados por Lia, que depois viria a descobrir que ele caçava pombos pelo quintal e os mordia arrancando-lhes a cabeça, o que Lia via como maldade infantil e não como um distúrbio hematófago de que a criança sofria.
Ao sete anos, Wolfgang, pela sua precocidade, já compunha concertos para o piano e entrou como intérprete solista de Mozart ao piano e membro de orquestra, e ele priorizou o piano e órgão na sua composição, com músicas sinistras, que não eram de muito agrado ao gosto médio, mas que tinham um grau de virtuosismo incomuns. Wolfgang passou então para os cuidados de Richard, o irmão mais velho, que começou a compor junto com ele, mas logo não teve fôlego para acompanhá-lo, deixando-o seguir a sua própria intuição, o que valeu para Richard como uma licença para a glória, Wolfgang era voraz, mas sabia o que estava fazendo, não se perderia, tanto que suas composições tétricas de início passaram a composições doces e suaves, como numa viagem ao paraíso.
Mas o inferno estava dentro de Wolfgang, e ele iria no rastro de Strauss e Stravinski, depois aos dez anos virou um vanguardista, mas um certo dia chegou esbaforido na direção de Richard e lhe disse que precisava de muita ajuda, no que Richard descobriu o distúrbio de Wolfgang por sangue, que até então só era conhecido por Lia.
E Wolfgang disse para Richard manter segredo em relação a isso, e convenceu Richard a roubar sangue num banco de doação em Viena, o que Richard conseguiu de um jeito mais fácil, subornando os enfermeiros de uma casa de saúde, o que virou algo sistemático, pois Wolfgang passou a beber dois litros de sangue por dia, o que em dois anos passou para três e quatro litros diários, e Richard descobriu que aquilo aumentava a produção criativa de Wolfgang, no que teve certeza de que aquele segredo entre ele, Wolfgang e Lia era muito importante, vital para o trabalho que estava em realização.
E os enfermeiros, que eram dois, já chamavam Wolfgang de o “vampirinho” que Viena tinha como músico. A vanguarda de piano agora virava partituras de sinfonia, dez em dois anos, Wolfgang com quinze anos, com algo que iria explodir na sua puberdade. Aos dezesseis foi atrás de uma moça para mordê-la, mas esta fez um escândalo, e Wolfgang declinou da ideia de atacar virgens por um tempo, mas sabia que sua voz interior dizia que o sangue de virgens o fariam um novo Beethoven ou um novo Mozart, algo que ele ainda almejava, e que era um sonho impossível, mas não para ele.
Aos dezessete, Wolfgang tem uma ideia, vai atrás de sangue jovem no próprio banco de sangue, e decide priorizar o sangue O negativo, que para ele era um néctar. Mas logo ele não se contém e realiza o seu primeiro ataque a uma menina de quinze anos, mordendo-lhe o pescoço e as nádegas, mas sem matá-la ou violá-la, e ela sai correndo com as saias empapadas em sangue, e o pescoço roxo, sem atingir, no entanto, veias ou artérias vitais.
Mas, Wolfgang recua de seu ímpeto, e decide ficar um tempo com o sangue O negativo do banco de sangue, que era raro, se contentando, macambúzio, com AB muitas vezes. Richard sabia que aquela loucura uma hora seria descoberta e que isso seria um escândalo, pois Wolfgang já era famoso como compositor, e os enfermeiros, dito e feito, começaram a chantagear Richard atrás de mais e mais dinheiro, no que ele pediu ajuda a Lia, que se desesperou, e disse que Wolfgang não era mais problema dela, ele só poderia contar com Richard, que ainda tentava manter um castelo em ruínas.
Depois de dois anos vivendo de banco de sangue, a coisa estourou para todos os lados, Wolfgang entra esbaforido no banco de sangue para matar os enfermeiros chantagistas com mordidas, mas é contido e internado imediatamente num hospício, o que dura três meses, pois lá ele se contém e bebe sangue de pombos escondido no pátio para sobreviver sem pirar ou ficar deprimido, e fazendo o jogo certo de manter as aparências, é liberado e volta para as mãos de Richard, que não sabe o que fazer, e decide pedir ajuda a Selton, que fica chocado com a descoberta de um irmão hematófago.
Mas Selton hesita um pouco, dizia que aquilo tinha que ir aos ouvidos de Joseph, mas Richard começa a chorar e explica que o trabalho todo de Wolfgang dependia, infelizmente, de sangue. Lia já tinha abandonado o barco e se degradava progressivamente nas trevas da loucura, com as visões do tal ancião perturbando-lhe diariamente de dia e de noite. E ela dizia que o ancião não falava nada, e Joseph não entendia absolutamente nada do que se passava, e a realidade, neste contexto, poderia ultrapassar tudo o que um positivista convicto como ele poderia conceber, mas logo o choque viria, com direito a trovoadas.
O ancião assediou tanto Lia que ela ficou catatônica, sendo alimentada por sondas, no que num espaço de seis meses a levou para a morte. E, então, desesperado, Richard revela o segredo para Joseph de que Wolfgang era hematófago, o que é recebido com ceticismo por Joseph, que só depois de algumas provas cabais é convencido, no que Joseph, ambicioso do trabalho de Wolfgang, também decide guardar aquele segredo, agora junto com Selton e o guardião de Wolfgang, Richard.
Mas tudo estoura num escândalo de graus colossais, pois Wolfgang, finalmente, mata uma moça de sua idade com uma mordida no pescoço, à luz do dia, numa praça com pessoas passando, no que ele é preso, e seu trabalho interrompido talvez para sempre, o escândalo do vampiro vira o caso de polícia que a imprensa passa a tratar como o caso “Baby Nosferatu”, que era a idealização do enfant-terrible com uma obra de vulto para vender. Tudo ao gosto do espetáculo, mas que resulta na abstinência de Wolfgang por sangue numa cela de solitária, onde não havia pescoços e nem pombos, só uma sopa de vegetais servida duas vezes ao dia.
Wolfgang quase enlouquece, treme e delira por sangue, mas ganha um processo gigantesco, pois o caso do banco de sangue também é descoberto, já que os enfermeiros dão com a língua nos dentes, pois já não temiam ser atacados por Wolfgang, que estava preso, condenado para três anos de reclusão. E os enfermeiros são processados por corrupção junto com Richard, pois o que fez os dois enfermeiros falarem, apesar de serem punidos, era o de tentar imputar prisão perpétua para Wolfgang por ameaçá-los, o que não ocorreu até o dia do ataque, pois quem buscava o sangue era Richard e não Wolfgang.
E, embora o escândalo tomasse proporções avassaladoras em Viena, as composições de Wolfgang já eram quase standard no universo conhecido da música erudita, criando um imbróglio ético que muitos apreciadores decidiram ignorar, pois aquilo já estava no gosto deles, Wolfgang, o prodígio, era um paradoxo ambulante de arte e crime.
Até que Richard consegue convencer o juiz do caso de que Wolfgang sofria de um distúrbio, o que foi comprovado depois por um psicólogo, e Wolfgang passou o resto da pena num manicômio judiciário, onde ele podia morder pombos escondido, saindo da abstinência que para ele era semelhante a de um heroinômano.
O psicólogo tenta um tratamento alternativo com sangue de porco para “salvar” Wolfgang, e consegue a liberação da justiça para amenizar o sofrimento de Wolfgang, que já não aguentava pombos, e que, para sua sorte, ainda tinha a ajuda de Richard, que levava bolsas de sague humano escondido para ele no manicômio, o que ele conseguiu no mesmo banco, subornado agora o diretor-executivo e médico de lá.
Wolfgang não teria paz por muito tempo, pois entre doses extáticas de O negativo, ele se contentava com a receita de porco medicinal e terapêutica, numa tentativa do psicólogo de reverter seu distúrbio hematófago paulatinamente, pois tinha percebido que o consumo de sangue para Wolfgang era como uma droga, da qual ele tinha que se libertar. Richard viu aquilo como a luz no fim do túnel, pois pensou: “Isso é só uma droga para ele, é só desintoxicá-lo!”.  
E o exame de raiva dá negativo, Wolfgang poderia estar caminhado para a sua liberdade, seja da prisão, seja do consumo de sangue. O psicólogo, de nome Arnold, já tinha certeza que aquilo era como uma droga, e teria que trabalhar para que a criatividade de Wolfgang não esvaísse sem aquele sangue. Ele tem a ideia de dar transfusões, duas, para equilibrar o PH de Wolfgang, e tem sucesso. Logo, em dois meses, o sangue de porco é suspenso, e Richard, aconselhado veementemente por Arnold, suspende o sangue humano.
Wolfgang passa a aprender a viver sem o distúrbio, e lhe são ministrados calmantes para suportar os sinais semelhantes a de heroinômanos por sangue, Wolfgang queria agora se redimir e leu a Bíblia inteira na sua reclusão, queria agora compor músicas sacras para salvar a própria alma e toma aversão pela cor vermelha, o distúrbio logo se inverte, e Arnold sorri e diz que o tratamento é um sucesso, pois Wolfgang passa agora a ter aversão pela cor vermelha e tem náuseas ao sentir cheiro de sangue, sua dependência hematófaga é invertida e superada, Wolfgang começa a compor novamente, mas já tomando distância dos temas tétricos, e uma nuvem mística de benevolência lhe toma o coração, e ele passa a bendizer sua arte, de que seu passado estava enterrado, e de que seu distúrbio tinha sido uma provação para ele e Richard se unirem na causa da arte, a qual agora já não dependia nem de sangue humano e nem de pombos. Sua vida eterna seria garantida por seu novo protestantismo e não pela lenda de vampiro.
Aliás, a má fama de Wolfgang já se invertia também, pois o exagero da imprensa no caso se voltou contra si mesma, e a execração pública de Wolfgang logo é debelada por declarações contundentes de Richard, acabando com aquele circo dos horrores. Wolfgang era doente, e estava curado, um distúrbio tão grave foi combatido por um psicólogo que entrou na hora certa para entender que a droga leva pouco tempo para fazer efeito, e quando viu o sorriso extático de Wolfgang depois de uma dose de O negativo, entendeu tudo de súbito, matou a charada.
E a fama de Wolfgang ficou dividida entre apreciadores e detratores, mas a moral da imprensa tinha sido destruída pelo sensacionalismo, a guerra de Richard contra ela tinha sido vencida, não havia mais surtos de moralismo por onde ele rondava, Richard era de fato o guardião do trabalho de Wolfgang, que depois de sair do manicômio, ainda era chamado de assassino, vampiro, morcego e quejandos no meio da rua, mas tinha no meio de apreciadores da música erudita uma romantização de sua história, que agora se redimia longe do espetáculo midiático, numa cultura refinada de concertos e sinfonias, e o tempo foi passando, e a formação de Wolfgang foi ficando sólida, ele se tornou também pastor luterano, sem renegar o passado, ainda ouvindo piadas da imprensa marrom sobre o “vampiro crente que toca piano”, às vezes.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



22/02/2016 – Contos Psicodélicos.