O CAMINHO DA GLÓRIA –
DO DESENHADOR PUBLICITÁRIO AO ARTISTA ADULADO DA “POP ART”
Andy Warhol atingia grande estima nos meios da publicidade e
do luxo, no entanto, ele aspirava a ser reconhecido como artista, como “verdadeiro”
artista. Portanto, Warhol escondia os seus trabalhos comerciais, quando
esperava a visita de colecionadores de arte no seu estúdio, pois, mesmo na Nova
Iorque dos anos 50, a arte comercial era ainda tomada como algo de mau gosto. O
artista Warhol já conhecia tais visões dominantes, mas teve, mesmo depois de
seu reconhecimento artístico, além do atelier para a arte propriamente dita, um
outro para o trabalho publicitário comercial. E se este estúdio comercial se
ocupava apenas da comercialização dos seus próprios produtos, isto é uma prova
da inteligência superior de Warhol, o que demonstrava também a sua
sensibilidade para os critérios de valor do meio artístico.
Warhol era um artista empírico e das coisas visíveis, o que
seria fonte de sua batalha para ter êxito nos Estados Unidos dos anos 1950, que
ainda eram marcados pelo domínio ainda inquestionável do Expressionismo
Abstrato. Tal que era o culto da interioridade e do idealismo desenfreado, e
que eram expressos nos quadros de pintores expressionistas abstratos como
Jackson Pollock, Franz Kline, Clyfford Still, Mark Rothko e Barnett Newman,
como uma refutação artística definitiva, até então, de qualquer fonte empírica e material como
expressão ade arte.
Portanto, a luta de Warhol era a de que as influências
artísticas, transmitidas pelos seus professores no College de Pittsburgo, e as
que ele teve durante seus anos em Nova Iorque, a da arte dos Rubens e Courbets
até à arte popular americana, passando pela caricatura, não tinham ainda dado a
Warhol a sua concepção de arte. Por outro lado, os seus projetos para anúncios
nas revistas em papel glacé do luxo e da moda alcançavam cada vez mais atenção
e aceitação. Pois qualquer que fosse o objeto a ilustrar, seja shampoo, joias,
baton ou perfume, Warhol tinha uma originalidade decorativa nos seus trabalhos.
Para os seus desenhos publicitários, por exemplo, Warhol tinha
adotado uma técnica de reprodução direta: desenhava os projetos a lápis em
papel hidrófugo, retocava os contornos a tinta-da-china e imprimia o conjunto,
ainda úmido, sobre folhas de papel absorvente. Este processo, em princípio,
baseado no processo do papel mata-borrão, era de fato tecnicamente primitivo,
mas surtia efeito. As linhas que na imagem impressa não apareciam como traço contínuo,
sendo por vezes interrompidas de forma mais esbatida, ou mais acentuada, tinham
qualquer coisa de esboçado, de ligeiro, de flutuante. Graças a uma preparação
minuciosa do modelo, a imagem obtida condensava-se num conjunto – embora
ligeiramente deformado – de linhas e formas familiares, como que ligadas por
pontos.
A seguir à impressão, Warhol, ou um dos assistentes que, bem
cedo, se aglomeraram à sua volta, coloriam as superfícies interiores nas cores
pastel, rosa pálido ou vivo, azul-claro, verde como gelado de pistácio, ou
laranja, como a cor de um “parfait” de laranja. Warhol utilizou igualmente a
técnica da “blotted line”, a linha manchada, para a produção de trabalhos
“independentes”, como ilustrações de livros. E são tais folhas que o colocariam
dentro dos círculos artísticos. James Fitzsimmons então escrevia na revista
“Art Digest” que as impressões frágeis de Warhol lhe faziam lembrar Aubrey
Beardsley, Henri de Toulouse-Lautrec, Charles Demuth, Balthus e Jean Cocteau;
pois desprendia-se delas uma preciosidade
e uma perversidade habilmente estudada que tinha uma espécie de expressão de
arte que provocava sentimentos confusos e ambíguos.
A técnica da “blotted line” pode ser considerada como uma das
fases essenciais da evolução artística de Andy Warhol. Pois, ao imprimir as
linhas desenhadas a tinta-da-china, reproduzia o desenho original e
desvalorizava a noção inconteste das vacas sagradas da História da Arte. Por
outro lado, esta técnica invulgar e inusitada não está assim tão afastada dos
processos de reprodução, geralmente aplicados na Arte, tais como temos na xilogravura,
na gravura a talha-doce, e nas águas-fortes e litografia. No entanto, no
contexto de arte no qual Andy Warhol ainda vivia, o postulado segundo o qual a
unicidade é uma das condições necessárias (mas não a única) para que um
trabalho seja considerado uma obra de arte, não foi abalado pelo processo do
papel mata-borrão.
Warhol desferiu, por sua vez, um golpe mais subversivo no
dogma do original, quando, apenas esporadicamente, interveio na elaboração das
folhas referidas que, graças ao colorido e textos de acompanhamento, poderiam
ser consideradas apenas quase-originais. Os desenhos, meio gravuras, meio
originais, eram, afinal de contas, o produto de uma manufatura. E quando Andy Warhol
tinha alguma reunião no “New York Times” ou em qualquer revista de moda, ele ia
muitas vezes para casa carregado de sapatos, joias, frascos de perfume, roupas
de malha e outras tralhas para fazer as respectivas ilustrações. Os desenhos
eram depois decalcados noutro papel e, a seguir, passava-se à fase do
“blotting”; obtinha-se então o desenho final de traço desigual, a
característica linha interrompida (blotted line). Na Lexington Avenue, então,
Warhol experimentou aquilo que mais tarde iria realizar, em grande estilo, na
lendária “Factory”.
No entanto, nem o modo nem a técnica de trabalho eram
extraordinários para um desenhador publicitário de sucesso. Os concorrentes
que, como ele, lutavam por um lugar ao sol, procediam de igual modo. A transposição
para a arte da divisão do trabalho da sociedade industrial e/ou pós-industrial,
só poderia assustar mesmo os gurus de uma concepção idealista da Arte. O
artista, promotor e adversário da indústria e da burocracia, que assume todas
as fases da criação da sua obra, era produto de uma concepção esotérica originada
do espírito idealista alemão que, por muito tempo, animou a arte americana,
desde as paisagens monumentais do emigrante alemão Albert Bierstadt às erupções
cósmicas de Jackson Pollock.
No Renascimento, para que um contrato fosse executado com
originalidade, os mestres tinham apenas que criar pelas suas próprias mãos as
partes essenciais, o mestre concebia os esboços, definia os pormenores da obra
pretendida e, quanto ao resto, dedicava-se aos seus negócios, tais como
obtenção de encomendas lucrativas, ou viajava em missões políticas. O gênio
pensativo que, na mais profunda solidão, luta com a sua arte, só séculos mais
tarde marcou a imagem do artista.
Warhol era procurado pelos seus desenhos publicitários, mas
não era ainda reconhecido como artista. O ano de 1956 iria ter uma importância
decisiva para ele. Deu uma volta ao mundo que, entre outros países, o levou a
Itália, a Florença, onde as obras de arte do Renascimento o impressionaram e lhe
animaram as ambições artísticas. Neste mesmo ano, foi também distinguido com o
“Thirty Fifth Annual Art Directors` Club Award” pela publicidade aos sapatos da
elegante loja da conhecida firma Miller, tendo o Museum of Modern Art, centro
de consagração da Arte Contemporânea, convidado Warhol a participar numa
exposição dos “Desenhos mais recentes dos EUA”. Era-lhe, assim, facultado o
acesso à arte “séria” e a “Life Magazine” publicou uma série das suas
ilustrações. Foi também então que Warhol começou a interessar-se pelo cinema e
suas estrelas.
Já nesta época pré-pop, Andy era uma espécie de celebridade,
que conquistava prêmios, admirado por todos, e com um estilo próprio. E o texto
de David Bourdon evoca um conceito: o de pop. Mas apenas na perspectiva dos
contemporâneos que acreditavam no progresso e tinham tendência para considerar
o passado como mero prelúdio do presente, é que os anos 1950 podiam ser
considerados como o decênio da pré-pop. A realidade, na verdade, era muito
diferente, pois a abstração dominava a Arte, com exceção de alguns
“dissidentes” franceses e italianos. A cultura ocidental encontrava-se dominada
por um valor de liberdade que se refletia numa abstração como para rivalizar
com o realismo de inspiração socialista e comunista.
Com efeito, grupos de marginais da literatura, do teatro, do
cinema e das artes plásticas declararam guerra a uma concepção tão unilateral
de arte, e também Dada e a anti-arte de Marcel-Duchamp, mas ainda nãos e podia
falar de pré-pop. A Pop Art, por sua vez, atingiria como um raio os meios
artísticos estabelecidos, que reagiram assustados. No entanto, ainda alguns continuaram
a depreciar o fenômeno indesejável, considerando-o simplesmente como um
episódio da história das modas. Era preciso ser-se um espírito muito aberto,
para se atribuir o mínimo valor artístico às pesadas “pinturas” de Robert
Rauschenberg e aos quadros singulares de Jasper Johns. Ainda assim, eles não
traíam inteiramente as convicções sagradas do Expressionismo Abstrato e, apesar
da estranha integração de objetos cotidianos, de forma material ou pictórica, ainda
se tratava de uma concepção subjetiva e individual de arte, a arte que continuava
a prevalecer sobre a vulgar realidade. No entanto, a Pop Art propriamente dita surgiu
como uma expressão nova e apenas uma pessoa, talvez inconscientemente, estava
preparada para isso: Andy Warhol. Neste aspecto, ele é de fato o único
representante da fase que antecede a Pop Art.
São muitos os que se vangloriam de ter inventado o termo
“pop”. Ele aparece, pela primeira vez, numa colagem, que se perdeu, do artista
britânico Richard Hamilton. Muitos consideraram-no abreviatura de “popular”, à
semelhança da famosa palavra “Merz” inventada por Kurt Schwitters que, tendo
fugido da Alemanha nazi, encontrou um refúgio na Inglaterra. O crítico inglês,
Lawrence Alloway, introduziu o termo na literatura sobre arte. Ele tentava
descrever experiências artísticas que se debruçavam, de forma crítica, sobre os
artigos do consumo de massas, as marcas de fabrico e as imagens-símbolos da
indústria dos bens de consumo, os apelos formalistas da publicidade, as
histórias esquemáticas da banda desenhada, os ídolos estereotipados do cinema e
da música, os anúncios luminosos dos grandes centros urbanos que representavam um
vocabulário trivial feito de símbolos e de imagens, destinados, como os
produtos e as ideologias que eles representam, a um consumo imediato.
Andy Warhol trabalhava, de fato, na arte da publicidade
comercial; fazia para artigos de prestígio e criava anúncios para revistas de
qualidade, mas, na verdade, isto não era, de modo algum, o seu mundo. No início
dos anos 60, mudou abrupta e radicalmente a sua temática. De repente, eles aí
estavam; primeiro, os desenhos e, logo a seguir, os quadros das notas de
dólares, das estrelas de cinema, das latas de sopa, das garrafas de Coca-Cola e
dos frascos de ketchup, das bandas desenhadas de Dick Tracy, Popeye e Superman.
A consagração artística de Warhol era fatal, quando descobriu
que os seus temas não tinham sido bem escolhidos. Eram adequados aos desenhos
chiques, mas demasiado elaborados para impressionar os esnobes da cena cultural
nova-iorquina. Apenas os sapatos transformados em fetiches exalavam um mau
gosto ligeiramente trivial. Os motivos comercializados da arte tinham degenerado
em elementos decorativos baratos; faltava-lhes força e poder de provocação. A
partir do início dos anos 60, Warhol deixou de enriquecer a concepção
publicitária através de formas a fórmulas da arte superior, para, ao contrário,
trazer à arte os símbolos oticamente gritantes da publicidade de massas. Deixou
as lojas elegantes da Fifth Avenue voltando-se para os supermercados de Queens,
Bronx e Brooklyn e de outros subúrbios americanos. Andy Warhol escolhia os
motivos pura e simplesmente noutros domínios “mais baixos”. Deste modo,
lançava-se formalmente na esfera artística com bandas desenhadas, rótulos de
garrafas e de latas de conservas, fotografias da imprensa popular e, mais
tarde, as fotografias instantâneas, que fez de si próprio, e que se tornariam a
base da sua atividade artística.
Warhol modificou também a sua “assinatura”: substituiu as
linhas finas do grafismo comercial por traços coloridos pesados e alargados e
guarneceu os objetos com sombras muito projetadas, como se pode ver nas fotografias
de amadores ambiciosos. “Warhol”, escreve Werner Spies, “procura temas vulgares
e uma maneira de pintar que, nos primeiros quadros que ele ainda pinta à mão,
renuncia a tudo que caracteriza o seu traço. Para realizar as latas de sopas e
as garrafas de Coca-Cola, escolheu um estilo de pintura que lhe era estranho.
Não podemos dizer que se verifica nele uma “continuação” de temas populares e
de uma pintura eficaz de cartazes. Trata-se, antes, de uma ruptura radical”.
Se, até ali, tinha rodeado os produtos de luxo com o brilho do privilégio, a
partir de agora Warhol se dedicava aos artigos de massas do consumo americano
que, sem dúvida, simbolizaram o “American Way of Life’ de uma maneira mais
persuasiva e mais surpreendente do que os sapatos de personalidades ricas e
célebres.
Datam de 1962 os desenhos que apresentam o inventário quase
completo do “universo artístico” de Andy Warhol: latas de sopa Campbell,
frascos de ketchup Heinz, notas e maços de dólares, cápsulas de garrafas de
Coca-Cola, retratos de vedetas populares do cinema, como Joan Crawford, Ginger
Rogers e Hedy Lamarr. O contorno dos objetos é formado por largos traços
fluidos, o texto dos rótulos e dos letreiros cuidadosamente trabalhado, os
fundos muitas vezes sombreados e os contrastes acentuados a preto e branco. Em
relação aos trabalhos dos anos 50, é visível nestas folhas uma tendência
nitidamente antiestética. Isto é ainda mais notório, quando o desenho feito a
lápis grosso é parcialmente colorido a aquarela. A linha tênue e elegante dos
desenhos em “blotted line” do período anterior desaparecem, Warhol não estava
mais interessado em prosseguir a tradição da linha elegante e decorativa, para
a qual o teriam predestinado as suas aptidões de desenhador, nem em seguir uma
via uniforme estilística no sentido acadêmico convencional.
Mas Andy Warhol não era o único artista à procura de uma
resposta na Nova Iorque do início dos anos 60, pois quase ao mesmo tempo, Roy
Lichtenstein descobria o que havia de intacto na linguagem das imagens das bandas
desenhadas populares. Abaixo do limiar para a cultura da elite social, tinha-se
desenvolvido esta cultura das imagens, específica, direta e fácil de assimilar.
Os leitores de jornais diários não devoravam as notícias e comentários
políticos, mas sim as páginas das bandas desenhadas. As personagens mais
populares transformaram-se em heróis dos numerosos filmes de Hollywood e as
histórias contadas em imagens eram muitas vezes superiores aos filmes pela sua
expressividade e maior vivacidade visual.
Quando criança, naqueles sombrios dias em que esteve doente,
as bandas desenhadas foram um lenitivo para Warhol. Muito naturalmente, elas
faziam parte da vida cotidiana de qualquer adolescente americano, como depois
aconteceu com a televisão. Quaisquer que fossem as histórias que contavam, as
bandas desenhadas nunca perdiam o contato com o mundo cotidiano e, como explica
Jürgen Trabant, elas recorriam a certas técnicas de comunicação: “A ilusão do
real é obtida no desenho pelos meios convencionais existentes desde o
Renascimento, da representação em perspectiva, da exatidão anatômica, do
movimento e da imitação realista. Na sua forma, a concepção retoma os processos
de representação cinematográfica: plano geral, grande plano, corte das imagens.
Isto acontece também no interesse da verossimilhança, porque o filme e a
fotografia são sobretudo entendidos como sinônimos de fidelidade empírica e a
representação, padrão das bandas desenhadas, e reforçam assim seu realismo”.
Ao transformar recortes de bandas desenhadas com grande
divulgação em motivos dos quadros, Andy Warhol aproximava-se do seu tema
artístico central, se é que ele teve algum. Mas, logo que soube que tinha um
concorrente na utilização inovadora da iconografia trivial, terminou
abruptamente com tais experiências, embora estas estivessem orientadas numa
direção inteiramente diferente da pintura estetizante de Lichtenstein. Os
mecanismos do mercado tinham-se estendido com mais intensidade ao campo da Arte
e todo o artista que não se distinguisse por um estilo original estava sujeito
a que o suspeitassem de falta de consequência artística.
(Baseado no livro Andy Warhol de Klaus Honnef, editora
Taschen)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32877/17/o-caminho-da-gloria