PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 29 de agosto de 2015

LORCA E SEU ROMANCEIRO GITANO É A ESSÊNCIA DA SENSIBILIDADE HISPÂNICA

O Romanceiro Gitano (1928) transita entre o cerebral e o popular, essência da sensibilidade hispânica, Lorca vai com sua alma andaluza ao ápice da experiência da poesia hispânica. Lorca atua em sua poesia como o grande reflexo da Granada trágica, a Espanha moura, a veia cigana de sua origem. Lorca é o intérprete ideal da alma popular de sua terra. Romanceiro Gitano é o clímax da criação poética de Lorca. Aqui, animais, naturais e mitológicos, fornecem esta identidade cigana dos escritos de Lorca, é uma escrita frutífera e de guerra, seu jogo metafórico é riquíssimo e repleto de uma alma barroca de brocado multifacetado.
   Com resíduos barrocos, com incursões pelo romantismo e o simbolismo, tirou proveito das lições da lírica popular, contra a poesia fria e descritiva do ultraísmo, colocou sua veia poética com o calor da metáfora viva, com muita base nos cancioneiros do século XV, numa união de vida e obra marcada pelo trágico. Na poesia lorquiana juntam-se todos os elementos da poesia e da alma espanhola, é o poeta da imagem plena de originalidade, de um verso musical e cheio de luzes interiores, apreendeu os motivos populares e deu a eles tratamento lírico em sua identidade peninsular (hispânica). Lorca, com esta identidade fortíssima, se junta, em tamanho e tradição, na História, ao romanceiro que tem ainda Góngora e sobretudo, seu padrinho mais evidente, Juan Ramón Jiménez, como um dos que elevaram os valores da moderna poesia espanhola, a partir da alma deste povo.
   E neste poema, Romance da Guarda Civil Espanhola,  lembrando de seu destino trágico no fuzilamento em plena guerra civil, nós temos, aqui, o quadro dramático de sua Andaluzia natal, com os ciganos caçados pela polícia, e o tumulto das ruas em oposição à calma plácida das estátuas dos santos à porta das catedrais. A seguir temos este poema na íntegra, em todo o seu esplendor, que é, para mim, um dos pontos altos da poesia de Lorca:

ROMANCE DA GUARDA CIVIL ESPANHOLA
    (A Juan Guerrero,
   Cônsul-geral da Poesia)

Os cavalos negros são.
As ferraduras são negras.
Nas capas reluzem
Manchas de tinta e de cera.
Têm, por isso não choram,
De chumbo as caveiras.
Com a alma de charão
Vêm pela estrada.
Corcovados e noturnos,
Por onde animam, ordenam
Silêncios de goma escura
E medos de fina areia.
Passam, se querem passar,
E ocultam na cabeça
Uma vaga astronomia
De pistolas inconcretas.

Oh! Cidade dos gitanos!
Nas esquinas bandeiras.
A lua e a calabaça
Com as ginjas em conserva.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e não se recorda de ti?
Cidade de dor e almíscar,
Com as torres de canela.

Quando caía a noite,
Noite que noite noiteira,
Os gitanos com suas fráguas
Forjavam sóis e flechas.
Um cavalo malferido
Chamava a todas as portas.
Galos de vidro cantavam
Por Jerez de la Frontera.
O vento dobra desnudo
A esquina da surpresa,
Na noite prata-noite,
Noite, que noite noiteira.

A Virgem e São José
Perderam suas castanholas,
E procuram os gitanos
Para ver se as encontram.
A Virgem vem vestida
Com um traje de alcaidessa
De papel de chocolate
Com colares de amêndoas.
São José move os braços
Sob uma capa de seda.
Atrás vai Pedro Domecq
Com três sultões da Pérsia.
A meia-lua sonhava
Um êxtase de ceginha.
Estandartes e faróis
Invadem as açoteias.
Pelos espelhos soluçam
Bailarinas sem quadris.
Água e sombra, sombra e água
Por Jerez de la Frontera.

Oh! Cidade dos gitanos!
Nas esquinas bandeiras.
Apaga as tuas verdes luzes
Porque vem a benemérita.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e não se recorda de ti?
Deixai-a longe do mar
Sem pente para suas riscas.

Avançam de dois no fundo
Para a cidade da festa.
Um rumor de sempre-vivas
Invade as cartucheiras.
Avançam de dois no fundo.
Duplo noturno de tela.
O céu parece a eles
Uma vitrina de esporas.

A cidade livre do medo,
Multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
Entram nelas para o saque.
Os relógios pararam,
E o conhaque das garrafas
Se disfarçou de novembro
Para não infundir suspeitas.
Um voo de gritos longos
Se levantou nos cata-ventos.
Os sabres cortam as brisas
Que os cascos atropelam.
Pelas ruas de penumbra
Fogem as gitanas velhas
Com os cavalos dormidos
E os vasos de moedas.
Pelas ruas empinadas
Sobem as capas sinistras,
Deixando para trás fugazes
Remoinhos de tesouras.

No portal de Belém
Os gitanos se congregam.
São José, cheio de feridas,
Amortalha uma donzela.
Teimosos fuzis agudos
A noite toda soam.
A Virgem cura os meninos
Com salivinha de estrela.
Mas a Guarda Civil
Avança semeando fogueiras,
Onde jovem e desnuda
a imaginação se queima.
Rosa, a dos Cambórios,
Geme sentada à sua porta
Com seus dois peitos cortados
Postos numa bandeja.
E outras moças corriam
Perseguidas por suas tranças,
Num ar onde estalam
Rosas de pólvora negra.
Quando todos os telhados
Eram sulcos na terra,
A aurora mexeu seus ombros
Em longo perfil de pedra.

Oh! Cidade dos gitanos!
A Guarda Civil se afasta
Por um túnel de silêncio
Enquanto as chamas te cercam.

Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e não se recorda de ti?
Que te busquem em minha frente.
Jogo de lua e de areia.
(Poema do livro "Romanceiro Gitano" de Federico García Lorca)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/24557/17/lorca-e-seu-romanceiro-gitano-e-a-essencia-da-sensibilidade 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

MÁQUINA DE ULTRASSONHOS

   Dr. Kurtz era formado em medicina e psicologia, se especializou em Jung e Lacan. Mas partiu para experiências com hipnose e alucinógenos, depois começou a colher conhecimentos técnicos para construir sua máquina dos sonhos, foi um trabalho de duas décadas até que ele tivesse o primeiro protótipo, só que no primeiro dia de funcionamento, no qual ele se autoaplicou hipnose e uma dose de morfina para se adaptar melhor ao mecanismo, a máquina pifou.
   Então, um pouco arrasado, ele teve mais cinco anos para desenvolver um programa para aplicar ao novo hardware, nesse meio tempo ele recrutou três voluntários para suas experiências artificiais com o mundo dos sonhos. Foram chamados estudantes de psicologia, os três eram João, Fernando e Helena. Tal tentativa seria secreta, o objetivo final era produzir isto para o mercado para servir como uma nova droga sem os efeitos colaterais das naturais e sintéticas, e ao fim comprovar experimentalmente o êxtase místico dos estados nirvânicos.
   Dr.Kurtz conseguiu finalizar o programa F22 e terminou de fazer o hardware Soft. Foi sorteado o primeiro a ser testado na máquina, foi João. Dr.Kurtz recomendou a João ler Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley antes da experiência, foi o que ele fez, e depois teve que fazer doze horas de jejum. Dr.Kurtz tinha uma previsão x, y e z. A x era do efeito positivo, a y do efeito negativo e a z do efeito nulo, parecia que ele ainda não sabia ao certo qual das três ia ser mais provável, mas a aposta era, obviamente, na previsão x, o que levaria ao desenvolvimento do programa F23, com a base empírica colhida das experiências com o F22.
   João entrou na máquina, algo semelhante ao compartimento de ressonância magnética funcional, pois o corpo inteiro do paciente ficava dentro da Soft. Os barulhos, diferente da ressonância, não eram toscos, eram metálicos. João ficaria, se na primeira hora houvesse o efeito x, mais duas horas, para ter tempo do recolhimento de evidências cerebrais do eletro-encefalograma e da ressonância magnética funcional embutidos no F22. Se fosse o caso do efeito y, a experiência seria imediatamente interrompida, e o efeito z teria um acréscimo de mais três horas.
   Os cálculos dos escaninhos de Dr.Kurtz o levaram a esta base teórica prévia, com base na neurociência, na hipnose e na experiência alucinógena que ele se auto-aplicara em condições controladas antes de sua pesquisa para a máquina de sonhos. O protótipo, que tinha pifado, tinha dado efeito z segundos antes do resistor derreter, a máquina de então era menor e não tinha um HD potente ou uma memória suficiente, a carga elétrica danificou tudo, e Dr.Kurtz redobrou os esforços para realizar a Soft, com núcleos múltiplos e coordenados, e com um gerador de energia potente para segurar as horas de sessão.
   Segundo a parte técnica de passes magnéticos, teria a indução alfa e a theta. Isso já embutido no F22, tal era o processo para a introdução no que Dr.Kurtz chamou de essência da mente ou simplesmente o desconhecido, nomeado tecnicamente por ele como estado ômega, no qual a base empírica de sua pesquisa poderia ser finalmente começada. A questão era se esse estado realmente existia, pois na teoria de seus escaninhos estava prevista esta hipótese, e que seria a base de todo o desenvolvimento para o F23, que seria a passagem do ômega para a transcendência absoluta do estado zeta, também ainda só previsto na teoria. Se houvesse, porventura, persistências do efeito z ou a suspensão do efeito y, tudo teria que ter base somente, por hora, em alfa e theta, já bem conhecidos empiricamente pela ciência standard. Dr.Kurtz chamava o estado zeta de “o olho de Deus”.
   João então entrou na máquina, com o corpo nu e besuntado com uma pasta fluorescente e relaxante. Nos dez minutos iniciais foi iniciada a transição de beta para alfa, já aos 45 minutos começou theta, João não poderia falar nada, por enquanto, e as análises do eletro-encefalograma faziam suas escalas senoidais com frequência regular.
   Até então, nada de errado, mas aos cinquenta minutos João começou a ter uma crise de soluços. A máquina Soft já tinha sua carga elétrica do gerador triplicada na fração de um minuto, o F22 resumia a atividade como “transição ômega irresoluta, código 3257-FG”.
   O desconhecido de Dr.Kurtz agora tinha uma base empírica, só que tecnicamente negativa, embora a escala senoidal estivesse regular. Tecnicamente, código 3257-FG significava erro de procedimento anterior não identificado, o que levaria Dr.Kurtz a descobrir se tal se sucedeu em alfa ou theta, e apostou em theta, estado próximo, o que ele confirmou teoricamente no escaninho. Mas, em seguida, teve de fazer uma recarga magnética para anular o código de erro, e aí apareceu código 11, isto é, processo normal em desenvolvimento harmônico, o que Dr.Kurtz tinha apelidado de código suntuoso.
   Agora, a partir de uma hora de experiência, eureca, estado ômega confirmado, voo de cruzeiro, código 11 reconfirmado, isto é, deu efeito x, a base empírica poderia ficar pronta e os pressupostos dos escaninhos confirmados ou não. Das dez previsões dos escaninhos, Dr. Kurtz confirmou todas as dez, pressupostos só baseados então em especulações místicas de hipnoses sensacionalistas e de charlatães natos, incluindo aí o truque da levitação, coisa que só monges tibetanos faziam de verdade e com frequência.
   Pressupostos confirmados, efeito x com código 11 persistente, tudo dava certo. A Soft, então, entra em mais uma carga, triplica de novo na fração de um minuto, a crise de soluços de João volta, dá erro 3259-FG, só que no aspecto neurológico tudo estava normal. Dr.Kurtz tentou corrigir o erro com sons metálicos específicos dentro dos tímpanos de João, voltou o código 11, efeito x para mais duas horas confirmado, depois disso, uma hora de sessão dialógica para descrição dos sonhos, e agora todo o estado ômega poderia ser descrito oniricamente, ligando a base empírica neurológica com a base empírica do relato do paciente.
   Passaram mais duas horas, código 11 persistente, mais o código 12 de recorrência interrompida, isto é, os soluços, finalizado organicamente pelo corpo de João. E, de repente, João falou a palavra frio, não estava prevista a verbalização antes de finalizar as três horas de efeito x estabilizado, mas só foi isso, o F22 deu código 3263-FG, desligado por novo código 11 sem intervenção do Dr.Kurtz.
   A classe FG de erros é abreviação de fiction genesis, isto é, a classe universal criada pelo programa F22 para detectar erros e corrigi-los sem ou com a intervenção do Dr.Kurtz. FG era uma classe regular de códigos de erros, que deveria ser universal justamente para não sobrecarregar os núcleos da Soft, senão seria uma progressão geométrica de códigos, impossível de um programa como o F22 e outros mais desenvolvidos, ou qualquer processador, unir com racionalidade.
   Dr.Kurtz estava eufórico, as coisas finalmente estavam dando certo, o estado ômega tinha base senoidal estendida, estado de relaxamento absoluto, a respiração de João seguia regular, batidas cardíacas reduzidas, mas sem perigo de colapso. O código 11 continuava persistente, era a hora agora de ligar o microfone de João e induzi-lo com o passe de toque das mãos.
   Dr.Kurtz abriu o capacete em que João sonhava, colocou os dedos indicadores sobre a testa de João, apertou forte no meio, no terceiro olho, e depois deu um tapa na glândula pineal, técnica tibetana para fazer sonhadores ficarem despertos ainda no estado onírico.
   João falou a palavra frio de novo. Código 11 persistente, estável, agora com frequência do código 7 ainda intermitente, código que significava “desperto”. Dr.Kurtz deu mais um tapa na pineal, apertou agora o terceiro olho com a ponta do dedão. Código 7 agora ficou pré-regular, mais um tapa na pineal, código 7 estável com harmonia estável com o código 11. Agora, João diz a palavra urso. Dr.Kurtz pergunta: “Polar?”. João responde : “Sim.” Dr.Kurtz pergunta então: “Por isso o frio?” João responde: “Sim.” Entra código 8, “desperto para logorreia”. Dr.Kurtz então sorri, dá mais um tapa na pineal de João, e faz um movimento em espiral com o dedão direito no terceiro olho de João, passe hipnótico para estabilizar os códigos 7 e 11 com o código 8, feito.
   Dr.Kurtz diz a João: “Comece a falar, aonde você está agora?” João começa: “É um lugar lindo, sinto uma paz imensa, não quero sair daqui.” “Por quê?” “Não vou embora daqui, o frio é bom, o urso polar fala e é meu amigo.” “O que ele diz?” “Que o mundo é uma girândola, é só ter olhos pra ver.” “E você vê o que o urso vê?”  “Ainda não, mas tá uma paz boa por aqui.” “Pergunte ao urso aonde está o tesouro.” “Ele disse que está em volta, no ar.” “E o que mais você vê?” “E o que você sente da paz? É sensorial?” “Sim, é sensorial.” “E aí toca alguma música?” “Sim.” “Boas?” “Sim.”  “Pergunte ao urso quem toca a música.” “ Ele disse que é o sol.” “Mas aí não é frio?”  “Mas o sol brilha o tempo todo.” “E sua visão do sol, é sensorial?” “Com a música e a luz parece uma massa sonora de prazer.” “Me fale do prazer, é durável?” “Sim.”  “Então, achou o tesouro?” “Acho que sim, está na massa sonora e de luz.”
   Dr.Kurtz anotava tudo em um caderno, junto com os pressupostos e cálculos dos escaninhos confirmando teses, e faria disso um relatório das experiências sob o prisma de uma psicologia particular criada por ele, que comportava uma tese cósmica (ou cosmológica) da mente para além dos aspectos neurológicos.
   A descrição de seu paciente da massa sonora e de luz para o Dr.Kurtz esclarecia a predominância do sensorial quando em estado onírico, e a tese cósmica passava necessariamente por estas interpretações práticas do mundo onírico. Muito para além do processo psicanalítico, Dr.Kurtz queria explorar ao máximo suas mentes cobaias para alcançar o Graal em que se esconde o êxtase místico.
   O uso tecnológico já se inteirava, a propósito, de uma larga experiência de realidade aumentada já no ano de 2025. Só que no caso de Dr.Kurtz, ele não estudava as interações virtuais e informacionais de óculos scanners, mas sim a tese antiga do mundo onírico em seu estado literal, sem a mediação a posteriori como se fazia no tempo de Freud. A tese cósmica ou cosmológica da mente para Dr.Kurtz era uma verdadeira obsessão e uma certeza absoluta, já que no Budismo ele tinha a intuição perfeita destas evidências.
   A realidade aumentada, para o Dr.Kurtz, não passava de uma corruptela se comparada aos estados alterados e oníricos da mente, seu estudo era comprovar experimentalmente a conexão cosmológica que existe entre a mente humana e a Mente do Universo como nas histórias tibetanas e afins. Seu arcabouço passava, então, pelo conceito de harmonia, como se a mente humana, que também tem uma essência espiritual, fosse um instrumento de afinação em função do gozo final do êxtase nirvânico. O Nirvana, para Dr.Kurtz, era uma realidade, e seu trabalho era comprovar em experimentos tecnológicos de indução de que tudo é possível.
   Dr.Kurtz se incomodava com a predominância do paradigma neurocientífico dos estudos da mente nas últimas décadas. Lhe aporrinhava o saco só de imaginar uma tese tão reducionista ser a palavra final sobre a existência e sobre a essência da mente humana, pois um órgão como o cérebro provava todas as teses autorreferidas, fechando o campo para uma conexão mais ampla, e Dr.Kurtz sabia que não poderia abrir mão do método experimental para enfrentar tais limites, pois dos paradigmas, a ciência inescapável ainda era o experimento, e não uma ideia intuitiva de um conceito metafísico puro. A metafísica não teria poderes de subverter tais teses da neurociência. Dr.Kurtz só tinha uma alternativa: fazer dos experimentos oníricos a ponte que vai à essência espiritual da mente, e com a descrição de suas pesquisas comprovar a existência do estado místico do Nirvana.
   Dr.Kurtz estudava, enquanto fazia as experiências do Soft com o F22, a criação de um novo programa que plasmaria imagens oníricas na tela do computador de acordo com as descrições dos pacientes, e criar um indicador de sensações como um termômetro mental. O Nirvana passa além do limite até aqui de suas possibilidades experimentais, mas Dr.Kurtz jamais desistiria de dar a boa nova um dia.
   A experiência com João durou mais duas horas, efeito x estável pelo resto do tempo, voo de cruzeiro. Dez minutos antes de terminar, Dr.Kurtz deu o passe longitudinal e dois transversais, fez movimentos circulares, e deu um tapa na pineal de João, e conseguiu, com isso, encerrar a sessão em estado alfa a um minuto do fim. Dez segundos, e beta retorna, o Soft desliga automaticamente com a detecção.
   Dr.Kurtz se deu por satisfeito, e sorteou o segundo paciente: Helena. Ele teria que usar um pouco de hipnose desta vez, mas com uma técnica criada por ele mesmo, baseada em experiências de desobsessão ainda em suas viagens no Tibete. Ele sabia que o sistema nervoso central inadequado para as interações mediúnicas poderia facilmente transgredir da incorporação ou manifestação para a pura sugestão, sendo reservada tais ações a pessoas aptas psiquicamente para tais eventos, já que se tornou muito comum uma difusão do fenômeno mediúnico que nem sempre é verdadeiro, isso passando ao largo das necessariamente rígidas recomendações do Espírito da Verdade na seleção das informações do além. Mas, Dr.Kurtz era cientista, e sabendo disso, ele queria restringir o escopo de suas experiências ao aspecto mental e onírico, e não para uma expansão da consciência no sentido mediúnico. Sua técnica ele apelidou de “sugestão lemniscata”.
   Helena entrou na Soft, a técnica de “sugestão lemniscata” seria aplicada, esta consistia na hipnose de indução mística e de êxtase, um passe magnético conduz o paciente por palavras-chave para o estado simulado de Nirvana. A sugestão lemniscata trabalhava experimentalmente com bases paradoxalmente metafísicas, e era uma operação da linguagem para efeitos empíricos na mente humana.
   No Tibete, Dr.Kurtz conseguira abrir uma exceção com um monge, e teve a oportunidade de aprender a técnica, que depois ele recriou com o nome de lemniscata. Tudo começava pela operação de palavras-chave na língua do paciente, e depois de mantras tibetanos já na onda theta. Helena entrou em theta pela sugestão lemniscata em 15 minutos, o efeito x se deu, e o código 11 era estável. Dr.Kurtz sentia que agora o trabalho com Helena seria mais fácil do que com o de João, e que seus escaninhos receberiam confirmações inumeráveis de seu mapeamento obsessivo da mente espiritual, só que em bases de experimento, sendo a Soft seu prisma para esta luz interior.
   O código 7 de desperto e o 8 de desperto para logorreia entraram em harmonia, e a sugestão lemniscata já depois dos mantras entrou na fase de passes magnéticos levemente agressivos sobre a glândula pineal de Helena. Dr.Kurtz conseguiu uma rápida condução à ômega e começou uma entrevista surreal com Helena: “O que você vê e ouve?” “Não sei, vejo mandalas coloridas e sons psicodélicos, parece que estou num festival dos anos 60.” “E quem é o cantor?” “Uma voz influenciada pelo blues, mas me parece que é rock.” “Em que língua ele canta?” “Inglês, sim, eu sinto, estou numa regressão!” (A esta altura Dr.Kurtz ficou extremamente confuso e preocupado, não tinha nada de seus escaninhos que previra episódios de regressão, ele não tinha colocado o viés reencarnacionista como previsão empírica em suas hipóteses com o uso racional do F22).
   Dr.Kurtz tentou rabiscar na hora uma solução técnica para o episódio, mas a regressão se aprofundou em Helena. Os escaninhos de Dr.Kurtz naquele momento de nada serviam, e nem em ômega ele contaria com tal peça pregada por estruturas desconhecidas da mente humana.
   Mas, agora ele não tinha nada mais a fazer além de continuar esta entrevista insólita e agora perigosa: “Em que ano você está?” “Acho que em 1967, estou no Festival de Monterrey, tomei LSD.” “O efeito é bom?” “Por enquanto é, mas estou lembrando, terei uma bad trip!” Nesta hora Dr.Kurtz gelou, como poderia lidar com um efeito duplo de regressão e alucinógeno. Nada do que ele tinha anotado com suas experiências auto-induzidas com drogas tinha associação com um efeito regressivo de uma encarnação prévia.
   E Helena gritou: “Meus braços estão derretendo, quero arrancá-los!” Dr.Kurtz viu um código 15 que definia “estado de pesadelo”. Dr.Kurtz então pergunta: “Como termina a história?” “Eu sou internada numa clínica, fiquei em surto.” “Qual é seu estado mental no festival?” “O som da música passou a me dar náuseas e paranoia.” “Que tipo de paranoia?” “De estar sendo observada por investigadores disfarçados.” “Quanto tempo durou esta viagem? Lembra?” “Eu só saí do surto depois de 2 anos, perdi 20 quilos.”
   “Ainda está em 1967?” “Perdi a noção do tempo, só sinto horror, e continuo querendo arrancar meus próprios braços, eles viraram tentáculos de polvo, o horror!” “Quem te levou embora do festival?” “Uma ambulância.” “Ainda vê coisas irreais no caminho?” “O rosto do enfermeiro não é deste mundo.” “Como sabe?” “Eu vejo!” “E o que você vê?” “Seu rosto é de um assassino!” “Seu delírio persecutório é grave, achas que vai ser assassinada?” “Não.” “Mas o enfermeiro não vai te matar? Ele não é um assassino?” “É!” “Mas por que ele não te matou?” “Por que me deram sonífero e apaguei, não vi mais nada, acordei num quarto branco sem nenhum objeto.”  
   “Continua sendo observada?” “Sim, pelo panóptico!” “E quem está por trás do panóptico?” “Gente ruim.” “E como você sabe que eles são maus?” “Por que são todos assassinos, todos querem me matar!” “E por que ainda está viva? Será que eles são maus mesmo, ou apenas estão te tratando?” “Não sei, só quero arrancar meus braços.” “É o efeito da droga, o LSD?” “Mais ou menos.” “E o que é, além disso?” “Artimanhas do demônio.”
   “Você tem religião?” “Fui criada em família luterana.” “Já foi exorcizada alguma vez nesta sua encarnação prévia?” “Sim, dois dias depois de minha internação um padre entrou na clínica com autorização de meu pai para exorcizar-me” “Mas luteranos acreditam nisso?” “Alguns.” “E o que aconteceu no exorcismo?” “Um espírito de nome Azael entrou em mim.” “Era um demônio?” “Um obsessor.” “E o que ele disse?” “Que ia me levar à loucura.” “E ele conseguiu?” “Por dois anos.” “Mas não foi o tratamento que te curou? Ou o exorcismo funcionou?” “As duas coisas contribuíram.”
   “Mas quem era de fato Azael?” “Alguém que queria se vingar de mim.” “Por quantas encarnações?” “Desde o século XVIII.” “E ele se achou vingado?” “Quando eu tive a bad trip ... acho que sim.” “E o que você sente e vê neste seu surto? O que é o principal?” “Meus braços derretem e viram tentáculos, nascem cobras de minha barriga.” “E pra você é real?” “Sim.” “Mas não é um surto?” “Me parece que as coisas não são tão definidas como se nos apresenta.” “E por que você acha isso? Se explique.” “Eu flertei com o zen-budismo meses antes do festival, e aprendi que no koan as coisas são contraditórias.” “E qual é a lógica disso? Constitui paradoxo? São duas realidades numa só?” “Sim e não.” “Portanto é.”
   “O surto resulta de minha irresponsabilidade com as drogas, mas tem a vingança de Azael também.” “E depois da manifestação com o padre, ele se foi?” “Sim.” “Então, depois de dois anos seus membros e sua barriga voltaram ao normal?” “Sim.” “E as cobras que saíam de sua barriga, para onde elas foram?” “Voltaram e entraram pela minha garganta e saiu uma tênia na minha evacuação.” “Teve diagnóstico de cisticercose também?” “Um mês depois, sim.” “Mas sumiu por milagre? Poderia ter ficado louca para sempre!” “Os ovos sumiram sem explicação, os médicos do tratamento não entenderam nada.” “E o LSD? Que papel teve no seu acidente psíquico?” “As alucinações com os membros e as cobras.” “E Azael?” “As vozes e o delírio persecutório.”
   “Volta ao festival. O que veio antes da bad trip?” “Sensação de união mística com a música.” “Quantos papéis de LSD você tomou?” “No começo do show tomei um tablete, depois de uma hora tomei outro, e dez minutos depois do segundo tablete deu a bad trip, exagerei.” “Então o sonho hippie virou pesadelo?” “Ah, minhas mãos estão derretendo!” “O quê?” “Meu corpo está sangrando, estou sendo crucificada!” “Mas ...”.
   Deu código 15 novamente, e dois códigos de erro simultâneos, 3260-FG e 3270-FG, em conjunto significam “falência irrefreável de lucidez.” Dr.Kurtz não sabia o que fazer, Helena se encontrava, agora, numa combinação maléfica de regressão e surto psicótico.
   Dr.Kurtz percebera, ali, que seus escaninhos e pressupostos tinham virado farelo. Ele apertou o botão de emergência para desligar o Soft, tudo apagou, o gerador de energia quase deu pane, Helena saiu da Soft em surto, a experiência de Dr.Kurtz tinha seu primeiro revés, e Helena saiu correndo com medo de ter seu corpo derretido. Parecia que Dr.Kurtz, num átimo, se tornara seu carrasco, Helena ficou com medo dele, e saiu correndo feito louca pelas ruas. Foi encontrada desacordada, dois dias depois, perto de um lago. Dr.Kurtz ficou com medo de ser denunciado por Helena, mas ela teve um colapso nervoso e perdeu a memória.
   Dr.Kurtz, então, ficou aliviado de não ter sido descoberto, e resolveu insistir na experiência com o Soft e o F22, desta vez com seu terceiro paciente, Fernando. Enquanto isso, João se preparava para voltar à carga após Fernando.
   Dr.Kurtz foi vencido pela curiosidade que já havia dado sinais trocados com Helena. Se ocorresse mais algum imprevisto, ele teria grandes e graves problemas. Desta vez, com Fernando, ele não daria a “sugestão lemniscata”, e nem trabalharia com estado ômega, faria algo mais superficial, como uma indução onírica puramente verbal, sem passes magnéticos, e como base de uma análise estritamente experimental para colher dados do eletro-encefalograma e da ressonância magnética funcional.
   Com João, logo após, ele apostaria todas as suas fichas, pois seu paciente tinha se mostrado positivo e receptivo às induções que tinham tido sucesso com efeito x em seu caso. Agora, o procedimento deu ganho estável em theta, por duas horas, código 7 com 11, Fernando também se mostrou positivo às intervenções, mas logo o Dr.Kurtz se iludiria, pois tudo não passava de aparências, ele teria grande tribulação horas depois, tanto com João, como com Fernando. E Helena, enquanto isso, estava mais uma vez internada numa clínica psiquiátrica, sem lembrar nem do próprio nome.
   O procedimento com Fernando foi rápido e indolor, os escaninhos subvertidos por Helena agora davam encaixe perfeito em pressupostos compatíveis com os dados senoidais, tudo funcionou. Logo, entrou João na Soft, o F22 em uma hora, com a prática temerária, novamente, da “sugestão lemniscata”, deu pane, código 0 era o episódio neutro, efeito y, deu tudo errado com João, ele teve de sair da máquina Soft com asfixia e estado de catatonia, também perdera a memória. Saiu correndo pelas ruas, assim como Helena, e foi encontrado por um pescador em alto mar. Pois João nadou sem parar e sem destino, e foi encontrado com hipotermia a três quilômetros da costa.
   Como João também tinha perdido a memória, o Dr.Kurtz escapou mais uma vez de ser denunciado. Com Fernando, depois de uma noite de sono, ele acordou num estado de fantasismo extremo, teve um surto de licantropia, tinha, na sua viagem, virado um lobisomem, e tentou matar o Dr.Kurtz com uma faca.
   Os dois tiveram uma luta corporal, e o Dr.Kurtz acabou matando Fernando com a mesma faca, saiu com seu carro, e foi enterrar o corpo de Fernando num pântano. Só que, durante a ação, ele foi avistado por um matuto de um sítio que perguntou o que ele fazia ali.
   O matuto viu o corpo de Fernando, e então sacou uma arma, e rendeu o Dr.Kurtz. Este foi, então, levado até o fazendeiro, chefe do matuto, e este pediu que o Dr.Kurtz explicasse o que ele fazia ali, e se tinha matado aquela pessoa.
   Neste ínterim, Helena recobrou a memória na clínica, e disse que era tudo culpa do Dr.Kurtz que, por coincidência, era conhecido do dono da clínica, o psiquiatra Adônis. Este sabia que o Dr.Kurtz era um louco imprudente, e resolveu denunciá-lo ao colegiado de ética médica da cidade, e logo foi enviada uma força-tarefa para prender o Dr.Kurtz.
   A força-tarefa recebeu uma ligação do fazendeiro, e então, o Dr.Kurtz foi preso por manipulação de pacientes e homicídio, e foi responsabilizado pelo surto de Helena, Fernando e João. Adônis, então, passou a tratar dos dois sobreviventes, Helena e João, e o Dr.Kurtz foi preso por quatro anos de condenação.
   A força-tarefa foi à clínica clandestina de Dr.Kurtz, e destruiu a Soft com marretadas. Um mês depois da prisão, Dr.Kurtz entrou em surto depressivo. Adônis processou o mesmo, e a carteira médica do Dr.Kurtz foi cassada.
   Dr.Kurtz conseguiu resistir às tentações do suicídio nos quatro anos de prisão, mas passou a viver como indigente pela ruas, depois de sua libertação. E os dois pacientes que sobreviveram aos delírios de grandeza do famigerado Dr.Kurtz,, Helena e João, espezinhavam dele toda vez que o viam como pedinte no centro financeiro da cidade.
   João dizia que nunca deveria ter confiado nele, Helena gritava para ele fazer o F23 e se enfiar na sua nova Soft como um caracol enjaulado. E então, o Dr.Kurtz gritou por perdão, que tinha sido um erro a Soft. Mas, agora ele era um pária da sociedade, e Helena se recuperou junto com João. Os dois resolveram terminar os estudos de psicologia, e começaram a refutar todas as teses dos escaninhos que sobraram dos arquivos do ex-Dr.Kurtz, agora apenas Daniel Kurtz, psicólogo cassado, pedinte de rua, com um cachorro louco por companhia.

28/08/2015 Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)  
  



CANTO DE SOL NA NUVEM

   Esse véu que encontra o tempo maquinal, espectro que inunda a tela, vaudeville que me entranha os passos. O palco que encontra o véu sísmico enovela tantra espasmódico com as letras de fogo de poetas. Mesmer contorna a figura do ópio com a linha, sete linhas nodais, um Exú que oferta a paixão com prisma doloroso de glória e razão. Sopro sofisticado que irrompe com as náiades pelas igrejas tortas e queimadas, eu tenho que cerzir meu manto com azul turquesa, como o monge sacrificado em totem na mais áurea época de ouro.
   Diante de tua imagem, ó Sebastião! Que me dá a cor funda do horizonte, plúmbeo crepúsculo que volta e volteia com naus soberbas de canto atmosférico. Diante de teu manto, ó Sebastião! O sol pulsa por todas as veias e artérias, vinho de rubro calor, enfadado o astral absorto e depressivo, alegre a tempestade com sinos no átrio de relaxamentos em yoga. As pernas se esticam e o cerzir das mãos fazem novelo com poemas que inunda a tela, vértice, vórtices, manto sacro que viraliza a festa.
   Canto de sol na nuvem, ó Sebastião! Nem todas as filosofias podem estourar, e a velha enormidade explode, os cântaros eu dedico às águas de Jordão ritmado em Ganges e Indo. Na veia mercurial soçobra a pena mais delicada que espanca, de todos estes sonhos eu guardo o mel pois sinto isto. Na veia mais denodada perfura o meu ventre o vinho fremente das cores de nuvem, dos sabores de sol.
   Dom é querido por toda a era, aquariana maré vertigem de calafrios, os denodados campos fustigam a seca, a chuva cai em pranto por todo o lodaçal, o poema convida ao susto, das cores fundas da tela inunda a sensação um fogo de abismo, com as cores de veraneio as águas e sopros enchem os poros de ilusão e fortuna, ó Sebastião!
   As notas de dissonâncias caem aos pedais, um ritmo de céu prega à cruz tuas dores, ó Sebastião! Recreio de poeta é assim fundante de miasmas sonhadores, e meu karma fica mais leve com o bater das asas sob a fogueira da meia-noite, com um sol de meio-dia no peito a gritar. Seus dons, ó Sebastião, me dão a visão da eternidade! Veia pulsa nunca morta, pois teus dons são imortais, flor do universo!
   O karma é nódoa e fortuna na mesma encarnação, tua alma, Dom Sebastião, funda a minha onda em mar de turquesa, revira meus álamos e engole-vento e a safira que batiza todo o caminho como numa velha estrada de horizonte nu, e teus corpos nus, e teus címbalos crus, e teus sonhos mais que futuros, ó Sebastião da anarquia e da justiça!
   Na rua de passos largos se elenca a morte com grito de rito, e o sacrifício desta alma devota contorce o miasma de que o mundo rumoreja com todas as dores a amores do mundo, meu Dom Sebastião!
   O mar, e a carta de náufrago trazem notícias do novo mundo, a era de ouro perdida em notas distantes, um vinho de aurora que espanca a luz na onda de imortais como tu sonhara, meu Dom Sebastião! E o vinho por fundo mosto é sacro com espanto de teus delírios, meu santo Sebastião!
   O canto do sol enumera as virtudes cardeais e vigora teu delírio de poeta:
 Canto solar revigora toda dor,
Espanto de minha filosofia,
Manto barroco de antanho
Com os dias mais felizes
Do poema que é sopro,
A mão do vento grita
Em tambores o vendaval,
E a flor do dom passa na flora
Ressuscitada, a flor da nau
 De uma carta perdida
Busca temperança em meio
Do caos de estrelas decaídas,
A asa que me carrega é o dom
Na pura nuvem de um vinho
Sacro de mosto aos pés da vindima.

   Sacro és, Sebastião, teu manto me cobre como profeta de tuas brumas, passo ao largo do espanto pois já sei de tua essência de mar, anda ao mar e vê visionário, tua febre é o delírio que o poema traduz como um soco. Nas mãos da Filosofia mora a alma animada de euforia, eudaimonia, e a similitude de uma ilha de frio busca um calor de que o espírito já em sua presciência concebe como o fogo inaugural de Heráclito, e os elementos empedoclianos se metamorfoseiam em mística, a febre da alma enumera as virtudes e seus dons, pobre Sebastião, pois a guitarra sopra meus versos como o vento que leva tudo ao destino sem fim de tua eternidade.
   O canto de nuvem é rápido:
Flutua a dor, cai o abismo
Que somos, o destino
É um dom, a pena é
O sopro de Dom Sebastião,
O mais astuto do mar,
E as nuvens refletem o sol
No arrebol de minha unyo mística
Que em tudo é UM e todos.
Breve morada das moradas eternas,
O poema é nota reflexa de nirvana.
Dom Sebastião, tua flecha vai ao coração.

28/08/2015 Gustavo Bastos
  
  



quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O CONDOR

As asas do condor são a música
do voo rente ao corte do sol
no horizonte de arrebol.

As asas do condor
sob a pluma
do calor
do sol
no arrebol.

As asas do condor
à dor parida exaurida
de voar por todo o céu
de arrebol.

As laranjas do sol batem
ao voo de crepúsculo
com dor.

27/08/2015 Gustavo Bastos

AS SOMBRAS

As sombras dançam no convés.
Temos o encontro das
máquinas:
ruína das almas mortas.

As sombras fazem o ócio,
temos no talante
da corrida o ermo,
a esmo as esmeraldas,
ao sul-norte
todos os lados
da dor.

Fere minha estrela!

As sombras se saciam
da luz desperdiçada
em rito translúcido,
como a lucidez soturna
do poema.

27/08/2015 Gustavo Bastos

ALMAS MORTAS

As coisas todas explodem
nas cidades.
As coisas de morte e de vida
caem no poço fundo,
os corpos-coisas
do destino,
ah, que assassinos
levarão os outros? E a mim?
Quem mais à arma dada
atirará?
Podemos renunciar?

Ah, e a morte restitui
a perda?
E a perda, constitui
a vida?

27/08/2015 Gustavo Bastos

EMPAREDADO

Eu me chorei por dentro.
A lágrima interna
conspurca o karma.

Eu me bati por fora.
O soco externo
depura o corpo.

Alma: ato intrínseco.
Corpo: ato para fora.

Lágrima de alma
apenas sorri
a penar!

A penar as penas duras,
eu me chorei por dentro
de tudo que se funda.

Em torno do coração
de meu irmão,
calei à parede
atado e seus
olhos fechados.

27/08/2015 Gustavo Bastos

domingo, 23 de agosto de 2015

VINHO

Altiplano é o mapa do viajor.
Eu entendi no giro das flores
as essências perdidas
do mundo arché,
do mundo aletheia.

O mapa de origens:
causa do primeiro motor,
a pupila sob efeito
do mais fantasmagórico
ópio e estrela da manhã,
os lugares fúnebres
de Belphegor
e Morfeu,
o divertimento mefistofélico
dos eurekas
solares,
da nova tipologia
ou teorema,
dos poemas que sois
poetas,
das mulheres saciadas
de vinho.

23/08/2015 Gustavo Bastos

DAMA DE ABSINTO

Flutua a dama de absinto.
A levitação é o sopro
dos risos sinceros.

Flutua a dama de absinto,
qual a fada telúrica
que sonha risonha.

Ah, e que modo de sorriso
que é a marca e o encanto
que só o incenso
fareja.

Flutua a dama de absinto
nos sentidos.
O terreno dos eflúvios,
os mundos etéreos
de visionários
nunca a verão,
pois aqui em terra
estás,
nos salões
da primavera.

23/08/2015 Gustavo Bastos

DE QUERERES DESEJÁVEIS

Querências, desejos,
o vazio só é cheio
do espírito,
a alma só é repleta em si
quando dança
no jardim
em volta de seu
próprio corpo,
seu enlevo íntimo
que reconhece
a pupila
sempiterna,
querências de ter por mim
a ti no átimo
que desejas,
desejos de ter por ti
a mim no átimo
que queres,
qual o fato de voragem
no meio deste serpentear
que é o caso gerado
da poesia,
o registro publicizado
de nossas intenções,
as mais quentes,
hipócrita leitor,
meu irmão em armas
e coração ao alto.

23/08/2015 Gustavo Bastos

ESSÊNCIA DO ÓPIO

O fumo de ópio apascenta
o coração,
pasto de íon com a mão nas alturas,
peca e pega,
o diapasão.

A estrutura-mordente:
cada capítulo é escansão,
cada motivo uma pilhéria.

O poema se intitula poltrão,
veias abertas de cosmos
políticos, brumas sequiosas
às serventias do ósculo.

Perímetro, bissetriz, altiplano,
a queda nos dá a profundidade
do abismo,
e eis que o silêncio, negro como
o monólito enigma,
prazenteiro se toca
ao corpo fumo de
todos os ópios
da estrela de vento
em dias de sol.

O fumo de ópio me faz
ouvir águas mansas,
o regato feliz de Xangrilá.

As chagas de Cristo
juravam em meu pulso firme,
o pulsar da circulação
em pressão anormalizada,
o surto mais fundo
do coração,
a loucura mais astuta
d`alma em flor,
as mãos maravilhadas
como olhos do corpo
sem vidências,
só o tátil
como a experiência
do limite ao outro,
seu sexo e sua chama,
as mãos no meio do fumo
apertado ao peito,
o narguilé que rumoreja
haxixins
na sentinela
das cadeias,

e os girassóis perdidos
no outono
que anunciava
sangue.

23/08/2015 Gustavo Bastos