PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 18 de dezembro de 2016

CHARLES BAUDELAIRE E AS FLORES DO MAL – PARTE III

“podemos apontar o cristianismo baudelairiano como um dos traços dominantes de As Flores do Mal.”

CHARLES BAUDELAIRE

RELIGIOSIDADE

Um dos aspectos que também pode ser levantado da poética baudelairiana é o de sua religiosidade, e de como esta não é evidente, mostrada como uma forma complexa e ambígua muitas vezes, por isto não evidente como sentido bem discernível de qual a sua orientação, pois a poesia, esta forma diluída por excelência, é o espaço da polêmica e das contradições, sempre fruto de uma interpretação açodada que é a conhecida ignorância plena, como se diz. E tal interrogação aparece sobretudo na questão do cristianismo de Baudelaire, se ele era ou não um cristão. Enquanto para alguns o cristianismo de Baudelaire pode ser uma mera falácia, peça de ficção, para outros esse mesmo cristianismo jamais o abandonou.
Além do que nos permite concluir a própria leitura dos poemas que integram As Flores do Mal ou dos fragmentos de que se compõem as Fusées e Mon coeur mis à nu, estudos como os de Bénouville, Paul Arnold, Maurice Barrès, Victor Chrabonnel, León Daudet, Benjamin Fondane, Stanislas Fumet, Charles Du Bos, Friedrich Kemp, Pierre Emmanuel, Pierre Louis, Jean Massin, Jean Pommier, Paul Soulay e Robert Vivier, entre alguns outros, parecem não deixar nenhuma dúvida quanto à vocação cristã de Baudelaire. Só que a forma de atuação de Baudelaire é controversa, pois sua poesia oscila entre Deus e o Diabo, o que o leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo. E também temos as blasfêmias habituais do poeta satanista, que podem ser interpretadas como um tipo de visão mística de quem se perdeu no abismo do pecado. Baudelaire nos aparece, portanto, como um poeta do Limbo, ou do Purgatório, poeta de verve espiritualista que levou às últimas consequências o pecado como condição da vida terrestre da alma.
Lúcida ao grau extremo, a poesia de Baudelaire pratica um agônico e lancinante movimento no sentido de substituir a religião perdida pelo prazer estético que lhe proporciona a consciência de seu altíssimo valor. O culto da beleza deveria assim atender às suas ávidas exigências religiosas, pois Baudelaire, na vivência das dúvidas de seu século, não era um crente de dogmas e tradições. Baudelaire era capaz, ademais, de criar uma religião particular que não tinha nenhuma relação com as formas da religião tradicional. E foi isso o que o poeta realizou, estabelecendo uma espécie de estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta em que Lúcifer ocupa todos os altares.
O pessimismo haurido em Joseph de Maistre e sua pascalina angústia do abismo o induzem diretamente à fé no poder de Satã, que o poeta fundamenta com o dogma do pecado original. Baudelaire tem a compreensão da natureza, portanto, como essencialmente corrupta, com o poeta se rebelando contra a obra do Criador e identificando a ideia da Queda à dualidade, à multiplicidade caduca e contingente cuja miséria e decadência desfilam ao longo dos “Tableaux parisiens”, dessa Paris quase dantesca e da qual não se pode dizer que seja infernal, porque é o próprio Inferno.
Há, por fim, na poesia baudelairiana, ademais, um otimismo e um entusiasmo diante da vida, e Fumet e Du Bos, além de Massin, não deixam dúvida quanto ao cristianismo que existe no pensamento de Baudelaire, mas isto não implica em colocá-lo como um católico ortodoxo ou homem da Igreja. Pois Baudelaire, como produto genuíno do romantismo, tinha suas contradições inconciliáveis, de tensões espirituais cujos pólos antitéticos jamais lograram superar-se naquele momento superior que caracteriza a síntese hegeliana. E, por fim, neta contradição romântica, o absoluto e o infinito pelos quais tanto ansiou o poeta ao longo de sua existência lhe estiveram desde sempre interditos por sua visão da Queda. Por outro lado, podemos apontar o cristianismo baudelairiano como um dos traços dominantes de As Flores do Mal.

POEMAS:

SPLEEN – POEMA LXXVIII: O poema, em clima gótico, veia bem comum e distribuída generosamente por toda As Flores do Mal, tem este escurecimento da Esperança (em maiúscula), com o tal espírito mais uma vez como vítima dos açoites do tédio, o grande bocejo que abre a grande obra poética baudelairiana: “Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa/Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,” (...) “Quando a terra se torna em calabouço horrendo,/Onde a Esperança, qual morcego espavorido,/As asas tímidas nos muros vai batendo”. E o poema segue, como um fenômeno psíquico que por fim vai consumir em vermes o cérebro do poeta, este ser fúnebre, sempre gótico, com pendor pela escuridão das formas e das imagens poéticas: “Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,/Imita as grades de uma lúgubre cadeia,/E a muda multidão das aranhas sombrias/Estende em nosso cérebro uma espessa teia,/Os sinos dobram, de repente, furibundos/E lançam contra o céu um uivo horripilante,”. O uivo talvez seja um último grito contra a morte ou o tédio, que aqui, falando em Baudelaire, podem muito bem aparecer como sinônimos, no que o poeta então, também uiva, ao fim, no que chora a esperança e sofre o golpe final seu infortunado crânio: “_ Sem música ou tambor, desfila lentamente/Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;/Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,/Enterra-me no crânio uma bandeira preta.”

O GOSTO DO NADA: O poema, em tom pessimista, também tem este negror do clima gótico, em que temos a sombra já na abertura: “Espírito sombrio, outrora afeito à luta,/A Esperança, que um dia te instigou o ardor,/Não te cavalga mais!”. Tem um quê de nostalgia, se fala de um espírito que foi esperançoso e iluminado, mas algo aconteceu, mas o poema não dá motivo, apenas descreve o processo de luto como um simples fenômeno, ao qual o poema se detém, em toda a sua potência: “Conforma-te, minha alma, ao sono que te enluta./Espírito alquebrado! ao velho salteador/Já não seduz o amor, nem tampouco a disputa;”. E o rasgo de direção que é, enfim, o Tempo, este senhor de tudo e de todos, caudal da luz e da angústia: “O Tempo dia a dia os ossos me desfruta,/Como a neve que um corpo enrija de torpor;/Contemplo do alto a terra esférica e sem cor,/E nem procuro mais o abrigo de uma gruta./Vais levar-me, avalanche, em tua queda abrupta?”. Ao fim tal tempo é uma avalanche, o poeta está imerso tanto na angústia como no caos. E a cara ideia da queda aparece, esta presença constante no poema baudelairiano tanto quanto o bocejo do tédio.

ALQUIMIA DA DOR:
O poema abre como uma face dupla, da mais visceral, que é a de luz e sombra: “Um te ilumina com ardor,/O outro te enluta, Natura!/O que diz a um: Sepultura!/Ao outro diz: Vida e esplendor!”. E o poeta se faz Midas, então, no que segue: “Tu me fazes igual a Midas,/O mais triste dos alquimistas;/Por ti do ouro o ferro improviso/E torno inferno o paraíso;” (...) “Um corpo querido amortalho,/E às margens do celeste estuário/Grandes sarcófagos entalho.”. Aqui temos um Midas alquimista, mas em forma invertida, não faz ouro, mas produz inferno e ao fim a morte tem aqui as imagens da mortalha e do sarcófago para corroborar a ideia funesta de uma alquimia do pessimismo ou da dor.

O IRREMEDIÁVEL: O ser de angelitude aparece no poema em sua forma inteira, ser pleno, morada do azul, no que o poema se abre: “Uma Ideia, uma Forma, um Ser/Vindo do azul e arremessado/No Estige plúmbeo e enlodaçado/Que o olho do Céu não pode ver;/Um Anjo, viajante imprudente”. Este Anjo se perdeu, é um ser imprudente, e paga o preço, é agora prisioneiro: “Um prisioneiro do bruxedo/Em suas frívolas manobras/Para evitar répteis e cobras,/Tateando a lâmpada e o segredo;/Um réu a descer sem lanterna,/Rente a um abismo cujo odor/Trai a fundura e o frio horror/De uma oscilante escada eterna,” E o poema segue: “_ Claros emblemas, traços reais/De uma fortuna atroz e vã,/Como a dizer-nos que Satã/Faz sempre bem tudo o que faz!”. O satanismo baudelairiano tem sua forma evidente neste poema, que da ideia comum da queda angélica, nos faz ver Satanás, e que é a própria consciência do Mal, aqui em forma metafísica ou absoluta, digamos espiritual: “Fonte do Ser, límpida e impura,/Onde pulsa uma estrela fria,/Farol irônico, infernal,/Archote aceso a Satanás,/Consolo e glórias sem iguais/_ A consciência dentro do Mal!”

PAISAGEM: Este belo poema nos brinda com uma suave abertura: “Quero, para compor os meus castos monólogos,/Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,/E, junto aos campanários, escutar sonhando/Solenes cânticos que o vento vai levando.”. E o clima de céu se vê também camuflado no clima urbano, a cidade também aparece neste poema como imagem poética: “Verei a fábrica em azáfama engolfada;/Torres e chaminés, os mastros da cidade,/E o vasto céu que faz sonhar a eternidade./É doce ver, em meio à bruma que nos vela,/Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela,/Os rios de carvão galgar o firmamento/E a lua derramar seu suave encantamento./Verei a primavera, o estio, o outono; e quando,/Com seu lençol de neve, o inverno for chegando,/Cada postigo fecharei com férreos elos/Para na noite erguer meus mágicos castelos.” As imagens que se sucedem são bem elaboradas, num poema baudelairiano que eu gosto particularmente por não se ater demais no clima gótico, como é comum na produção do poeta, e o poema segue e fecha na luta da poesia, esta fonte de harmonia, contra o tumulto, a sempre relembrar a primavera, esta forma de plenitude que o idílio tanto canta, e que a poesia tem nela a sua graça maior: “O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,/Não me fará volver a fronte ao que se passa,/Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento/De relembrar a Primavera em pensamento”

O SOL: O poema fala do sol e de seu poder: “Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros/Persianas acobertam beijos sorrateiros,/Quando o impiedoso sol arroja seus punhais/Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,/Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/Buscando em cada canto os acasos da rima,/Tropeçando em palavras como nas calçadas,/Topando imagens desde há muito já sonhadas.”. E que inspira o poeta, no que o sol também aparece para Baudelaire como um tipo especial de poeta que ilumina tudo, no que o poema segue: “Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,/Eis que redime até a coisa mais abjeta,/E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,/Quer os palácios, quer os tristes hospitais.”. O sol, ao fim, espanta até a tristeza dos hospitais, um poema solar em forma literal na obra baudelairiana.

A UMA MENDIGA RUIVA: O poema se dirige a uma musa infortunada, mas que é exaltada, apesar da miséria que lhe envolve: “Moça de ruivo cabelo,/Cuja roupa em desmazelo/Deixa ver tanto a pobreza/Quanto a beleza,/Para mim, poeta sem viço,/Teu jovem corpo enfermiço,/Cheio de sardas e agruras,/Tem só doçuras.” (...) “Em vez da meia em pedaços,/Que aos olhares dos devassos/Te brilhe à perna o tesouro/De um punhal de ouro;” (...) “Muito servo ébrio de amor,/Muito Ronsard e senhor/Rondariam o postigo/De teu abrigo!/Em teu leito contarias/Menos lírios do que orgias”. A exaltação aqui ganha em esplendor de forma, ébrio de amor, os servos seguem a mendiga ruiva, mas o poeta sabe qual é a realidade nua, e o poema não a esquece, a miséria total aparece aqui como a ideia de nudez: “_ Contudo vais mendigando/A sobra que foi ficando” (...) “Segue, pois, nua de tudo/_ Pérola, incenso, veludo _,/Só de teu corpo vestida,/Minha querida!”

POEMAS:

SPLEEN – POEMA LXXVIII
Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
As asas tímidas nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.

_ Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.

O GOSTO DO NADA

Espírito sombrio, outrora afeito à luta,
A Esperança, que um dia te instigou o ardor,
Não te cavalga mais! Deita-te sem pudor,
Cavalo que tropeça e cujo pé reluta.

Conforma-te, minha alma, ao sono que te enluta.

Espírito alquebrado! ao velho salteador
Já não seduz o amor, nem tampouco a disputa;
Não mais o som da flauta ou do clarim se escuta!
Prazer, dá trégua a um coração desfeito em dor!

Perdeu a doce primavera o seu odor!

O Tempo dia a dia os ossos me desfruta,
Como a neve que um corpo enrija de torpor;
Contemplo do alto a terra esférica e sem cor,
E nem procuro mais o abrigo de uma gruta.

Vais levar-me, avalanche, em tua queda abrupta?

ALQUIMIA DA DOR

Um te ilumina com ardor,
O outro te enluta, Natura!
O que diz a um: Sepultura!
Ao outro diz: Vida e esplendor!

Hermes que oculto me conquistas
E para sempre me intimidas,
Tu me fazes igual a Midas,
O mais triste dos alquimistas;

Por ti do ouro o ferro improviso
E torno inferno o paraíso;
Roubando às nuvens seu sudário,

Um corpo querido amortalho,
E às margens do celeste estuário
Grandes sarcófagos entalho.

(obs: Midas: Rei da Frígia (c.715-676 a.C.), filho de Górdio. Rei poderoso, sua fortuna provinha das minas de ouro da Frígia e de Urartu, bem como das pepitas do rio Pactolo. Conta a lenda que Dioniso lhe deu poder de transformar em ouro tudo aquilo em que tocasse.)

O IRREMEDIÁVEL

I
Uma Ideia, uma Forma, um Ser
Vindo do azul e arremessado
No Estige plúmbeo e enlodaçado
Que o olho do Céu não pode ver;

Um Anjo, viajante imprudente
Que ousou amar o que é disforme,
Dentro de um pesadelo enorme
A debater-se na corrente

E a lutar, angústias sombrias!
Contra o refluxo mais feroz,
Que como um louco ruge a sós
E faz na treva acrobacias;

Um prisioneiro do bruxedo
Em suas frívolas manobras
Para evitar répteis e cobras,
Tateando a lâmpada e o segredo;

Um réu a descer sem lanterna,
Rente a um abismo cujo odor
Trai a fundura e o frio horror
De uma oscilante escada eterna,

Onde velam monstros horríveis
Cujos fosfóreos olhos fazem
Mais escura a noite em que jazem
E onde eles só ardem visíveis;

Um barco no pólo insulado,
Como num laço de cristal,
Buscando por que onda fatal
Foi neste cárcere atirado;

_ Claros emblemas, traços reais
De uma fortuna atroz e vã,
Como a dizer-nos que Satã
Faz sempre bem tudo o que faz!

II
Conversa a dois, clara e sombria,
Espelho que a alma em si procura!
Fonte do Ser, límpida e impura,
Onde pulsa uma estrela fria,

Farol irônico, infernal,
Archote aceso a Satanás,
Consolo e glórias sem iguais
_ A consciência dentro do Mal!

PAISAGEM

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,
E, junto aos campanários, escutar sonhando
Solenes cânticos que o vento vai levando.
As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E o vasto céu que faz sonhar a eternidade.

É doce ver, em meio à bruma que nos vela,
Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão galgar o firmamento
E a lua derramar seu suave encantamento.
Verei a primavera, o estio, o outono; e quando,
Com seu lençol de neve, o inverno for chegando,
Cada postigo fecharei com férreos elos
Para na noite erguer meus mágicos castelos.
Hei de sonhar então com azulados astros,
Jardins onde a água chora em meio aos alabastros,
Beijos, aves que cantam de manhã e à tarde,
E tudo o que no Idílio de infantil se guarde.
O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,
Não me fará volver a fronte ao que se passa,
Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento
De relembrar a Primavera em pensamento
E um sol na alma colher, tal como quem, absorto,
Entre as ideias goza um tépido conforto.

O SOL

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Buscando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Este pai generoso, avesso à tez morbosa,
No campo acorda tanto o verme quanto a rosa;
Ele dissolve a inquietação no azul do céu,
E cada cérebro ou colmeia enche de mel.
É ele quem remoça os que já não se movem
E os torna doces e febris qual uma jovem,
Ordenando depois que amadureça a messe
No eterno coração que sempre refloresce!

Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,
Eis que redime até a coisa mais abjeta,
E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,
Quer os palácios, quer os tristes hospitais.

A UMA MENDIGA RUIVA

Moça de ruivo cabelo,
Cuja roupa em desmazelo
Deixa ver tanto a pobreza
Quanto a beleza,

Para mim, poeta sem viço,
Teu jovem corpo enfermiço,
Cheio de sardas e agruras,
Tem só doçuras.

Calças com pés mais ligeiros
Os teus tamancos grosseiros
Do que essas damas tão finas
Suas botinas.

Em lugar de exíguo andrajo,
Que te envolva um régio trajo
Das espáduas singulares
Aos calcanhares;

Em vez da meia em pedaços,
Que aos olhares dos devassos
Te brilhe à perna o tesouro
De um punhal de ouro;

Que laços pouco apertados
Mostrem aos nossos pecados
Teus seios por entre os folhos
Como dois olhos;

E que para desnudar-te
Teus braços, com lábia e arte,
Sustem a golpes vivazes
Dedos audazes,

Corais de oceanos secretos
E de Belleau os sonetos
Por teus amantes rendidos
Oferecidos,

Escória de rimadores
A consagrar-te louvores
E a perseguir-te as passadas
Sob as escadas,

Muito servo ébrio de amor,
Muito Ronsard e senhor
Rondariam o postigo
De teu abrigo!

Em teu leito contarias
Menos lírios do que orgias
E a teus pés mais de um Valois
Sempre haverá!

_ Contudo vais mendigando
A sobra que foi ficando
Por um Véfour atirada
À encruzilhada;

Olhas de esguelha e sem jeito
Joias de brilho suspeito
Que não posso (hás de perdoar!)
Jamais te dar.

Segue, pois, nua de tudo
_ Pérola, incenso, veludo _,
Só de teu corpo vestida,
Minha querida!

(obs: Rémy ou Remi Belleau (1528-1577), poeta francês que Ronsard reconheceu, a partir de 1554, como um dos poetas da Plêiade. Sua principal obra é Petites inventions (1556), na qual se descrevem as flores, os frutos e os insetos./ Pierre de Ronsard (1524-1585), poeta francês que, ao lado de Antoine de Baïf e de Joachim du Bellay, dispôs-se a restaurar a poesia francesa em toda a sua amplitude, tornando-se chefe da nova escola La brigade, que, em 1556, passou a chamar-se La plêiade. Suas principais obras são Amours (1552) e os Hymnes (1555-56)/ Valois: dinastia que reinou na França de 1328 a 1589.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31975/17/charles-baudelaire-e-as-flores-do-mal-ij-parte-iii


  

sábado, 10 de dezembro de 2016

CHARLES BAUDELAIRE E AS FLORES DO MAL – PARTE II

“ele tem na ideia de dândi um procedimento para a poesia e também para a própria vida”

CHARLES BAUDELAIRE
DANDISMO
O dandismo baudelairiano serve tanto à sua ideia ou conceito estético como à uma forma de conduta social e humana, e ele tem na ideia de dândi um procedimento para a poesia e também para a própria vida, e que tem como uma de suas fundações a ideia de que a natureza está corrompida por si mesma, a corrupção da natureza é aqui a própria natureza, seu fenômeno.  
Como uma reação à ideia comum e tradicional de ver a natureza como fonte do bem e do belo, como em correntes literárias do século XVIII, Baudelaire levanta a ideia contra-intuitiva da natureza como a de que ela é abominável, e sua figura de dândi seria então uma subversão artificial do que já veio subvertido, e seu disfarce de dândi, para Baudelaire, era como um tipo de fuga da dor, uma maquilagem onde ele poderia ter alguma força e vida.
O dandismo baudelairiano aparece aqui como uma manifestação do espírito, algo que se reflete como um processo da vida interior, e que, falando da visão religiosa de Baudelaire, que se dá como um catolicismo que se volta contra os instintos originais, também sendo uma das formas em que se conclui e se fundamenta este seu dandismo. Tal artifício do dandismo viria, então, como uma forma forçada de corrigir a imperfeição natural, e este seria, por fim, segundo a ideia de atores sociais, o desiderato principal e talvez único de toda a civilização. Quando Baudelaire afirma, fundando o seu dandismo, que tudo o que é natural é abominável, poderíamos nos desligar da ideia primeira de uma subversão para irmos em direção ao que contém outra ideia mais importante e fundamental, que é a do pecado original.
E temos, então, com o dandismo, um tipo de conduta aristocrática, o entendimento possível da estética baudelairiana, o escritor como artista, com esse dândi nos aparecendo como o próprio artista superior, como um demiurgo autoconsciente que do caos vocabular nos entrega arte, e que se consagra à elaboração artificial, como um procedimento intelectual, num processo criativo que tendo o poeta como um dândi, neste processo não temos, portanto, a participação da natureza, pois esta aparece segundo a ideia de corrupção como amoral e monstruosa.
CORRESPONDÊNCIA
Baudelaire tem em Edgar Poe a sua inspiração da imagem do mundo material como correspondência do céu, mas temos também que tal conceito ou ideia tem origens mais antigas, no que podemos ver, portanto, uma teoria das correspondências já presente entre os alexandrinos, isso nos primeiros alvores da era cristã, e também durante o século XIII, nos textos do teólogo italiano São Boaventura. Três séculos depois, por conseguinte, voltamos a encontrá-la nas obras de São João da Cruz. Mas é no século XVII que a teoria das correspondências encontra seu primeiro codificador, que é o filósofo sueco Emmanuel Swedenborg, que em seu Arcana coelestia (1749-1756) Baudelaire decerto tomou conhecimento. E ao longo dos séculos XVIII e XIX a ela irão se referir figuras como Pascal, Malebranche, Spinoza, Hegel, Schelling, Hoffmann e Novalis.
No contexto da época de Baudelaire, além de Joseph de Maistre, que também tematizou o assunto, temos também três outros autores cujas obras o poeta não ignorava: François Marie Charles Fourrier, autor de uma Théorie de l`unité universelle (1841), o pietista suíço Johann Kaspar Lavater, que foi um dos precursores do romantismo alemão, além do místico polonês Hoëné Wronski. E sabemos também que Baudelaire teve acesso aos textos esotéricos de Eliphas Lévi, cujo Dogme et rituel de haute magie está citado em nota a um de seus poemas e segundo quem “o visível é a medida proporcional do invisível”.
O mundo visível seria então um tipo de processo platônico em que, na correspondência de um mundo invisível e superior, o mundo visível seria uma imagem imperfeita e caduca desse céu cuja conquista o poeta deveria empreender, com o fito de ver a revelação do que o poeta teria como a “tenebrosa e profunda unidade” que Lavater tematiza e que Baudelaire evoca em sua poesia. E tais correspondências também chegam a Baudelaire por fontes diversas como a do cromatismo musical de Wagner, sobretudo o de Lohengrin e de Tannhäuser, e que tem a ideia de união entre as misteriosas harmonias musicais com os mistérios da harmonia verbal. E podemos também pensar nas sinfonias de cores a que o poeta se refere quando analisa as telas de Delacroix, chegando à conclusão de que, assim como Wagner, Baudelaire também tentou alcançar uma arte total na qual a palavra, a cor e o som, num sistema difuso por analogias fizesse esta sugestão de um infinito sonho de espaço e profundidade na qual houvesse a revelação da beleza.
Assim como Swedenborg, ao deprimir o símbolo, na redução ao mínimo da autonomia da letra e do signo, quando afirma: “O fim enverga os trajes que mais lhe convém para poder existir como causa numa esfera inferior.”, assim também faz Baudelaire, pois lhe caberia, na representação alegórica do mundo, o erguimento de um tipo de refúgio contra a realidade da existência separada, com a sua batalha sendo empreendida no plano possível para ele, o da poesia.
Lendo Baudelaire em L`art romantique se percebe uma comunhão com os pontos de vista de Swedenborg, segundo quem tudo “o que foi criado guarda alguma relação de semelhança com o homem”. E se nossa ordem física não faz senão reproduzir a hierarquia do espírito, o microcosmo assume a imagem de Deus, e a realidade nada mais é que um pesadelo logo dissipado. E como nos ensina Eliphas Lévi: “A analogia dá ao mago todas as forças da natureza.”
POEMAS:
SEMPER EADEM: O poema se abre, com uma visão sinistra da vida, a qual a poesia também tematiza, pois nem sempre tal arte de versos se dá em idílio, mas também em tédio e amargor, como se vê: ““De onde te vem, responde, essa tristeza infinda/Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?”/_ Quando no coração nossa colheita finda,/Viver é um mal. Ninguém ignora este segredo,/Uma dor muito simples, nada misteriosa,/A todos familiar, como tua alegria./Nada queiras saber, minha bela curiosa!/E, embora a voz te seja afável, silencia!”. Aqui a vida aparece como um mal, e eis que também é, pois sempre nos veremos com a felicidade e a dor, como numa face dupla em que também a poesia refletirá a natureza deste jogo, e fecha entre a vida e a morte, também imagem auspiciosa e terrível de um bem e de um mal, e que neste poema tem face negativa, num sopro gótico e terrível: “Ainda mais do que a Vida,/A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.”
REVERSIBILIDADE: O poema evoca a angelitude, aparecem em cada estrofe um anjo, este começa com o anjo da alegria, que em vão enfrenta esta angústia do poeta Baudelaire, quando este diz: “Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,/Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,/E o difuso terror dessas noites medonhas/Que o peito oprimem como um papel que se amassa?”. A ideia de opressão, presente tanto em situações banais como em lutas graves do espírito, atazanam o poeta, que não poupa este seu difuso terror, mas ainda nutre algo, e se dirige ao anjo de bondade: “Ó anjo de bondade, já viste o rancor,/As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,/Quando brande a Vingança o seu apelo cruel/E de nossas virtudes torna-se o senhor?”. O fel aqui enegrece as virtudes que ainda viviam em tal infortunado espírito, no que Baudelaire faz então seu clamor ao anjo de saúde, quando vêm os versos: “Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,/Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,/Como exilados vão em seu passo tardio,/Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?”. Os delírios são como sentimentos de exílio, no que Baudelaire enfim evoca o anjo de beleza: “Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,/Não viste o medo da velhice e este suplício/De ler o esfíngico pavor do sacrifício/No olhar que outrora nos saciou a gula triste?”. A velhice, com sua sonora decrepitude, aqui o poeta já tem mais virtudes, mas ainda tenta, com o anjo de ventura, salmodiar uma última luz ou clarão, o que é nada mais que uma oração, e com o coração de poeta em tal fim de júbilo, em clamor: “Mas a ti só imploro as tuas orações,/Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!”. A esperança está ainda em tal poema, mesmo que repleto de dor.
A BELA NAU: A feiticeira aparece como musa e esta também está na sua relação com a imagem da nau, esta perfeição do mar, segundo os infindos poetas em suas diversas plêiades, e que Baudelaire, numa paixão poética, clama: “Eu quero te contar, lânguida feiticeira,/Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!/Quero pintar tua beleza,”. Ele atua aqui como um poeta-pintor, e faz a fusão da feiticeira com a nau, no que seguem os versos marítimos: “És como a bela nau que rumo às ondas larga,/Cheia de véus soltos ao vento,”. E vai ao colo da musa, sem mais: “Teu colo vitorioso é como um belo armário,/Cujos claros gomos convexos/Como os broquéis capturam rútilos reflexos;” (...) “Vinhos, perfumes e licores/Que o coração e a mente inundam de torpores!”. O entorpecimento é este peito que conforta o poeta, o colo da musa, como um vinho potente, um licor forte ou um perfume onipresente: “Teus braços, que aos titãs enfrentam nas porfias,/São sólidos rivais das víboras sombrias,/Feitos para o fatal abraço/E para o amante eternizar em teu regaço.”. O refúgio ou regaço é, ao fim, a busca da paz de espírito, a qual não se dá sem ser na feiticeira, sua bela nau em que ele poderá descansar de seus infernos, e se eternizar em júbilo.
A UMA DAMA CRIOULA: O poema tem sua musa admirável, e aqui Baudelaire a contempla em versos nada sutis: “No inebriante país que o sol acaricia,/Sob um dossel de agreste púrpura bordado/E a cuja sombra nosso olhar se delicia,/Conheci uma crioula de encanto ignorado.” (...) “A graciosa morena, cálida e arredia,/Tem na postura um ar nobremente afetado;/Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,/Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.”. Eis uma musa ousada, e que apraz o poeta, este admirador da audácia: “Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,/Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,/Tu que és digna de ornar os solares altivos,”. E ele a quer na terra francesa, e é quando poderia fazer seus sonetos, quando diz: “Farias, ao abrigo das sombras discretas,/Mil sonetos brotar no coração dos poetas,”.
MOESTA ET ERRABUNDA: O poema se abre em tais versos: “Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola,/Fugindo ao negro oceano da imunda cidade,/Em busca de outro oceano que jamais se estiola,/Profundo, claro, azul, tal como a virgindade?”. O profundo oceano, de um azul infinito, na fuga da cidade, eis que o poeta então se volta ao mar: “O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!/Que duende deu ao mar, jogral de áspero canto/Que acompanha o feroz e imenso órgão dos ventos,/Essa função sublime e sábia do acalanto?”. O sublime do mar se dá aqui como som e música de acalanto, o poeta contempla na distância do olhar, e vêm tais versos: “Como estás longe, paraíso perfumado,/Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega,/Onde tudo o que se ama faz por ser amado,/Onde à pura volúpia o coração se entrega!”. O poeta é irmanado com a volúpia, e evoca, enfim, um jardim prazeroso, no que o poema finda em questão nevrálgica: “Evocá-lo se pode em gritos pungitivos,/Ou talvez animá-lo com voz argentina,/O inocente jardim dos prazeres furtivos?”.
SPLEEN – LXXVI: O poema tenta revelar o espírito do poeta, que é aqui evocado como maior e mais vasto que todo conteúdo material da civilização, uma alma vasta e infinita, no que Baudelaire produz tais versos ousados: “Eu tenho mais recordações do que há em mil anos./Uma cômoda imensa atulhada de planos,/Versos, cartas de amor, romances, escrituras,/Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,/Guarda menos segredos que o meu coração.”. Seu coração, o poço de segredos, ultrapassa até esta nossa terra em que vivemos, e os versos continuam: “Sou como um camarim onde há rosas fanadas,/Em meio a um turbilhão de modas já passadas,” (...) “Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,/Quando, sob o rigor das brancas invernias,/O tédio, taciturno exílio da vontade,/Assume as proporções da própria eternidade.”. Mas eis que um dos temas dominantes da poesia baudelairiana dá as caras, é o tédio, este intruso anti-musa do poema gótico e sinistro: “Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,/Esquecida no mapa, e cujo áspero humor/Canta apenas aos raios do sol a se pôr.”. Áspero humor, esgar de ironia, farsa, enfim, tédio.
SPLEEN – LXXVII: O poema, mais um da série famosa do spleen baudelairiano, nos brinda: “Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,/Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,/Que, desprezando do vassalo a cortesia,/Entre seus cães e os outros bichos se entendia.”. O tédio, mais uma vez, e Baudelaire dá os seus efeitos: “Em tumba se transforma o seu florido leito,” (...) “E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,/De que se lembram na velhice os soberanos,/Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,/Em vez de sangue flui a verde água do Letes.”. O tédio enfim aqui se junta ao leito mortal do Letes, morte e tédio são aqui sinônimos.
POEMAS:  
SEMPER EADEM
(N. do T. “sempre a mesma”)
“De onde te vem, responde, essa tristeza infinda
Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?”
_ Quando no coração nossa colheita finda,
Viver é um mal. Ninguém ignora este segredo,

Uma dor muito simples, nada misteriosa,
A todos familiar, como tua alegria.
Nada queiras saber, minha bela curiosa!
E, embora a voz te seja afável, silencia!

Cala-te, tola! alma de tudo embevecida!
Boca de riso ingênuo! Ainda mais do que a Vida,
A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.

Deixa-me o coração confiar no que suponho,
Dentro em teus olhos mergulhar como num sonho,
E dormir longo tempo à sombra de teus cílios!

REVERSIBILIDADE

Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se o senhor?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor?

Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em seu passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler o esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora nos saciou a gula triste?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste?

Ó anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!

 A BELA NAU

Eu quero te contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheia de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

Eu quero te contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário,
Teu colo vitorioso é como um belo armário,
Cujos claros gomos convexos
Como os broquéis capturam rútilos reflexos;

Provocantes broquéis de agudas pontas rosas!
Armários cheios de iguarias tão preciosas:
Vinhos, perfumes e licores
Que o coração e a mente inundam de torpores!

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheia de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

As nobres pernas, sob os folhos que se amassam,
Os maus desejos atormentam e espicaçam,
Quais duas bruxas que, ao acaso,
Um negro filtro vão mexendo em fundo vaso.

Teus braços, que aos titãs enfrentam nas porfias,
São sólidos rivais das víboras sombrias,
Feitos para o fatal abraço
E para o amante eternizar em teu regaço.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

 A UMA DAMA CRIOULA

No inebriante país que o sol acaricia,
Sob um dossel de agreste púrpura bordado
E a cuja sombra nosso olhar se delicia,
Conheci uma crioula de encanto ignorado.

A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.

Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,
Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,
Tu que és digna de ornar os solares altivos,

Farias, ao abrigo das sombras discretas,
Mil sonetos brotar no coração dos poetas,
Que de teus olhos, mais que os negros, são cativos.

MOESTA ET ERRABUNDA
(N. do T. “triste e erradia”)
Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola,
Fugindo ao negro oceano da imunda cidade,
Em busca de outro oceano que jamais se estiola,
Profundo, claro, azul, tal como a virgindade?
Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola?

O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!
Que duende deu ao mar, jogral de áspero canto
Que acompanha o feroz e imenso órgão dos ventos,
Essa função sublime e sábia do acalanto?
O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!

Carrega-me, vagão! batel, leva-me embora!
Bem longe! aqui do nosso pranto faz-se o lodo!
_ Será que de Ágata a alma às vezes não implora:
Para além do remorso, do crime, do engodo,
Carrega-me, vagão, batel, leva-me embora?

Como estás longe, paraíso perfumado,
Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega,
Onde tudo o que se ama faz por ser amado,
Onde à pura volúpia o coração se entrega!
Como estás longe, paraíso perfumado!

E o verde paraíso das frágeis meninas,
As fugas, as canções, os beijos que roubamos,
Os violinos vibrando por trás das colinas,
Com cântaros de vinho, à tarde, sob os ramos
_ E o verde paraíso das frágeis meninas,

O inocente jardim dos prazeres furtivos,
Já estará mais distante do que a Índia e a China?
Evocá-lo se pode em gritos pungitivos,
Ou talvez animá-lo com voz argentina,
O inocente jardim dos prazeres furtivos?

SPLEEN – LXXVI

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.

Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
_ Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
_ Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!

Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.
(François Boucher (1703-1770), pintor e gravador francês. Autor de cenas pastoris, religiosas, mitológicas e alegóricas, cujas cores desmaiadas lembram pastéis. Parte de sua obra está no Louvre.)

SPLEEN – LXXVII

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entendia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes.
(Em gr. Léthe, um dos rios do Inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela bebessem.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31858/17/charles-baudelaire-e-flores-do-mal-parte-2