“o que ocorre é uma dissolução de responsabilidades”
No Brasil, como já dito nesta coluna, o impacto da falha de segurança da CrowdStrike foi menor. Primeiro, o baixo acesso do Brasil e de outros países da América Latina aos serviços da CrowdStrike se deve a este ser caro, tendo um custo de até dez vezes do que o de um antivírus normal. Portanto, grande parte da história de atuação da CrowdStrike se deu nos Estados Unidos, com prestações de serviços ao governo norte-americano. Por sua vez, a CrowdStrike ficou conhecida por ter agido na detecção de ataques de grupos cibercriminosos da China e da Rússia.
No Brasil, o baixo impacto da falha global da CrowdStrike, então, foi devido a presença de outras empresas de segurança cibernética que atuam por aqui. O mercado brasileiro tem a presença de marcas como a IBM, ISH, Logicalis, Accenture, estas sendo as empresas mais consolidadas por aqui. Por conseguinte, o nível de digitalização do Brasil em comparação a países desenvolvidos como os Estados Unidos ainda é baixo, com grande parte dos negócios ainda fora do mercado de nuvem, por exemplo. Portanto, há uma baixa adesão a serviços de proteção para redes corporativas e provedores de nuvem aqui no Brasil, sendo esta a especialidade da CrowdStrike.
O colapso provocado pela CrowdStrike foi de tal dimensão que trabalhadores de aeroportos tiveram que recorrer a práticas analógicas de registro, tal como a emissão de bilhetes de modo manual. O grau de dependência civilizatória em relação à tecnologia traz também, em seu bojo, a discussão sobre as responsabilidades implicadas tanto nesta dependência, como em seu agravamento, que é a concentração do mercado de tecnologia, o que dificulta uma relação madura entre civilização e o sistema de internet global.
A questão da transferência de responsabilidades em relação a este sistema veio à tona com a falha global da CrowdStrike, uma vez que a pergunta que surgiu foi a de quem era a responsabilidade pelos danos produzidos a partir de uma “falha do sistema”. Ou seja, nos acostumamos com este eixo no qual as responsabilidades individuais, pessoais, empresariais e institucionais podem ser subsumidas num todo chamado sistema, em que um erro com efeito cascata é responsabilidade do … sistema?
Sim, estamos diante de um dilema da infantilização civilizatória da divisão do trabalho, de tarefas etc, que surgiu desde a primeira revolução industrial, quando a cadeia de produção foi dividida e o trabalho, em consequência, também, substituindo o antigo artesão, que dominava todas as etapas de uma dada produção, por especialistas que dominam fragmentos de conhecimento aplicado ao mundo do trabalho e da produção de uma dada mercadoria. Por conseguinte, isto reflete no consumo desta produção, nos bens e seus usos, e que passam por um grau de ignorância e, portanto, dependência de socorro, a cada problema surgido deste dito “sistema”.
A necessidade de uma abordagem geoestratégica para uma avaliação da extensão e profundidade do fenômeno tecnológico da digitalização em escala planetária se torna evidente, portanto, na crítica desta vulnerabilidade como algo que expõe toda a mágica da aceleração da realidade mediante este chamado regime de informação que, se sofre qualquer falha, pode ruir numa fração de segundos, colocando o rei nu, isto é, todo o sistema da internet global.
A civilização coloca seus dados dentro deste sistema que, por outro lado, pode colapsar com qualquer vento que sopre de um lapso, falha, erro etc. Esta pulverização geográfica, isto é, o derretimento do espaço e da distância pela comunicação remota instantânea, plantou uma metacidade deslocalizada, desterritorializada, em que vira um regime de informação que domina os destinos da civilização, que é este governo concentrado por big techs.
Por conseguinte, o que ocorre é uma dissolução de responsabilidades, que leva a qualquer falha ser dada ao “sistema”, tirando a autonomia civilizatória de soluções e a infantilizando num campo em que ela, a civilização, ao invés de criar complexidade, se acostuma a este cercadinho de palha das big techs, bem vulnerável ao sopro de um lobo mau que pode ser um hacker ou um lapso acionado automaticamente.
O fato deste cercadinho de palha, desta metacidade pretensamente mágica e acelerada, ter sido colapsada tão facilmente pela falha da CrowdStrike, coloca novamente a discussão sobre a resiliência do sistema, a desvantagem de sua simplificação, e a necessidade de novos players no mercado para a sua complexificação e robustez, uma vez que, neste caso, plataformas alternativas, da filosofia de software livre, como a Linux, por exemplo, não foram atingidas por este colapso da CrowdStrike.
Se quisermos ir mais longe, e o diagnóstico sobre a dependência, infantilização, imbricamento, vulnerabilidade, etc, entre civilização e sistema, tiver ainda uma esperança em relação ao que pode ser uma utopia do software livre e de um sistema de internet global de nova geração resiliente e com players criativos e diversos, dando fim à concentração do sistema, seja via medidas semelhantes às anti-truste que foi aplicada à Standard Oil, por exemplo, ou combate de monopólios e duopólios, recuperando a livre concorrência como num liberalismo de laissez-faire em sua versão de iniciativas digitais e tecnológicas, temos uma perspectiva de superação desta fase do sistema para uma outra fase, se possível, do software livre, de código aberto etc.
No entanto, se diante do diagnóstico, for preponderante o prognóstico baseado no niilismo e no pessimismo antropológico, estaremos diante de um sistema condenado, diante do qual se possa apenas prever a sua implosão por entropia, autofagia, mega-concentração, um sistema afeito ao colapso, potencialmente autodestrutivo, tomado por hackers, bandidos e robôs, uma terra de ninguém, abandonada.
O colapso final do sistema seria a produção de cidades fantasmas em que bots falam com bots indefinidamente. Um sistema capturado e zumbificado pela deep web, por psicopatia, crimes sexuais, financeiros, de crackers virtuais, incels, ressentidos, párias, vingativos de toda espécie, de chans cheios de avatares distorcidos que cometem bizarrices, alimentados num povoado de teorias conspiratórias, de fake news, com fóruns que viram cidades virtuais tomadas pela bandidagem e por uma grande maioria de bots, na criação de um simulacro dominado por fantasmagorias tecnológicas em ruínas abandonadas e sombrias. Um fracasso civilizatório, por fim.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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