PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 11 de novembro de 2012

SADE E A LIBERTINAGEM

   Marquês de Sade, aristocrata e escritor francês que viveu entre os séculos XVIII e XIX, teve sua obra literária sempre marcada pelo que se chama de libertinagem. Tal ideia de vida tinha cunho filosófico e sempre foi eivada de muita polêmica, Sade usou este artifício para construir as suas estórias, seja no apelo ao grotesco, como aparece na sua forma mais exagerada na obra Os 120 Dias de Sodoma, ou como tese filosófica, na obra A Filosofia na Alcova, ou como as vicissitudes ou desditas da virtude, na figura de mulheres virtuosas humilhadas, tais como nas obras Justine ou na engenhosa A Divina Marquesa.
   Sade passou muito tempo preso na Prisão da Bastilha, e foi perseguido tanto pelo Antigo Regime, como pelos revolucionários iluministas de 1789, e também por Napoleão Bonaparte, tendo terminado seus dias no Hospício de Charenton, período que foi romantizado pelo filme Contos Proibidos do Marquês de Sade, onde o mesmo é idealizado em cenas como escrever na própria roupa com sangue por não ter pena e nem papel para escrever as suas obras. Outros filmes foram também inspirados em Sade e nas suas obras como a polêmica película Saló ou os 120 Dias de Sodoma de Pier Paolo Pasolini.
   Sua obra mais polêmica, Os 120 Dias de Sodoma, objeto de muita estima pelo próprio autor, foi julgada perdida por Sade, pois o rolo em que fora escrita havia sumido após a retirada de Sade da Bastilha às pressas, logo antes da Revolução de 1789, obra que foi recuperada e então publicada no início do século XX, uma espécie de Decamerão da libertinagem, citando Boccaccio. O sumiço do rolo fez Sade se desesperar e verter lágrimas de sangue segundo o próprio, Sade que então tentou pelo resto da sua vida imprimir o espírito de tal obra em seus outros escritos por esta perda inconsolável, a qual foi sanada muito depois de sua morte e se tornou na História o seu escrito mais polêmico, “a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe.”
   Sade faz nesta obra uma enumeração exaustiva de inúmeras paixões da libertinagem, um elenco da filosofia lúbrica que vai nortear todo este escrito, em seus excessos, sua justiça um tanto egoísta que cerca os quatro cavalheiros libertinos Durcet, o Presidente de Curval, além dos irmãos Duque de Blangis e Bispo de .... (o nome aparece assim no início e depois será apenas denominado Bispo). O total são seiscentas paixões em 120 dias, o que são 4 meses de libertinagem com 4 classes de vícios (as paixões simples, duplas, criminosas e assassinas).
   Os quatro cavalheiros aristocratas citados acima vão organizar uma orgia jamais vista, talvez, em toda a literatura, ou na sua forma radical e apelativa ao grotesco como se vê nesta obra de Sade. Pois tais cavalheiros vão realizar todas as suas devassidões e licenciosidades, as chamadas paixões libertinas, tudo justificado filosoficamente (tal filosofia muito mais presente em A Filosofia na Alcova, aqui em Os 120 Dias de Sodoma como um paroxismo do que esta representa e é capaz de realizar) na sua forma a mais grotesca e iníqua possível. Os personagens da obra são reunidos num castelo de luxo, são vários personagens que são divididos em diversas classes e que numa matemática exaustiva segundo um regulamento rígido com sanções também rígidas, organiza as sessões orgiásticas de que a obra é repleta, ou melhor, do que unicamente Os 120 Dias de Sodoma é composto.
   Crianças e jovens, sejam do sexo masculino ou feminino, são raptados de suas famílias e levados para um castelo de difícil acesso do qual ninguém tinha como fugir, putas já com idade avançada fazem o papel de narradoras, incidentes do castelo são intercalados com suas histórias, principalmente na primeira parte, as das paixões simples, em que a prostituta Duclos narra as suas aventuras de quando mais jovem, o que excita e inspira as fantasias dos quatro libertinos comandantes das orgias do castelo, as outras partes são mais resumidas, algumas pontuações de Sade revelam que a obra não estava completa, mas Os 120 Dias de Sodoma, se a contar das paixões simples, já rende uma estória extremamente bem escrita, uma forma escorreita num conteúdo grotesco, esta é a fórmula que compõe esta obra de Sade, pois todos os seus escritos tem uma forma bela de expressão, com o paradoxo de exibir com esta bela forma as paixões libertinas que são em sua substância, elementos de fealdade para uma moral conservadora.
   Pois a impressão que vem da leitura de Os 120 Dias de Sodoma, é a de que Sade leva ao paroxismo sua intenção de chocar a sociedade, o que em sua época pode ter sido necessário e muito importante, num mundo que ainda tentava se libertar da moral rígida do Cristianismo, por exemplo, e talvez apoiada por uma emancipação de um pensamento ateísta e materialista, e de uma obediência aos impulsos da natureza que são a grande filosofia libertina de Sade, mas que hoje podem ser confundidas com um pastiche, pois o humor negro de Sade, que era contestatório na sua época, pode ser entendido hoje não como choque e enfrentamento, mas como pura piada. O que se vê em Os 120 Dias de Sodoma, também, é uma manipulação dos personagens da obra ao bel prazer por Sade, como se grande parte dos personagens que ali aparecem não tivessem autonomia ou poder de reação, as manipulações sexuais parecem se compor de objetos e não também de pessoas, Durcet, o Duque, Curval e o Bispo parecem os únicos personagens vivos da estória, junto com Duclos; todos os outros se tornam entes quase mortos e manipuláveis ao gosto do freguês como objetos sexuais inanimados, talvez seja esta a grande crítica para a obra Os 120 Dias de Sodoma do Marquês de Sade, além de personagens demais, são personagens em sua maioria muito pobres de personalidade ou autonomia, pouco definidos para o que se quer de um romance de fôlego, sem falar nas repetições de ideias e situações, tais como nos enfadonhos trechos sobre cropofagia, e o apelo do grotesco hoje já não tem mais a sua função de contestação, restando do humor negro e dos exageros de Sade, em tal livro, o riso do pastiche, claro que não para corações e estômagos fracos, pois a leitura desta obra requer um estômago e um coração fortes.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
 
  
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