“Talese faz um trabalho de louco de miudezas e enorme de
repórter como ele é.”
VIDA DE ESCRITOR, O
LIVRO
“Vida de escritor” é um dos livros mais controversos de Gay
Talese, pois traz em si um conceito de unidade espalhado, na verdade um
conjunto de fragmentos que foram unificados numa narrativa circular, mas sua
qualidade é que para quem quer entender a vida de um jornalista e escritor,
este livro é um prato cheio. Não se trata de uma narrativa bem-sucedida, o que
poderia se pensar de algo que também possa funcionar como uma autobiografia.
Não há, portanto, o conflito clássico e afetado entre a genialidade e a
incompreensão do mundo “medíocre”, em que o herói romântico triunfa no fim.
A NARRATIVA DO FRACASSO
O livro, e este é seu mérito, não faz concessões ao sucesso,
pois trata com esmero a narrativa do fracasso. Pois começa com um pênalti
perdido na frente de milhões de pessoas, e termina com o mesmo fracasso, o
mesmo fato e imagem, revolvendo-se em sua narrativa circular. Como se diz que
na psicologia a neurose é a repetição, temos com “Vida de escritor” a
reiteração obsessiva do malogro, do fracasso, e isso como um conjunto que se
forma a partir de restos de escritos de Gay Talese que tiveram de se consumar
juntos para tornar-se um livro. “Vida de escritor”, portanto, tem no fracasso a
linha de narrativa e é formada de livros que nunca foram feitos ou concluídos,
isto é, fracassos literários e de reportagem de Gay Talese.
No lado de jornalismo, ao mostrar as frustrações do ofício de
apurar e relatar, Talese fala a verdade sobre grande parte desta profissão, um
lugar em que um literato deve ficar permanentemente insatisfeito, e esse é
também um dos conflitos do perfeccionista Talese e as demandas imediatistas de
seu ofício. E como escreve Mário Sérgio Conti no posfácio ao livro: “Repórter
com pretensões a autor, Talese se achava um estilista rematado. Ou seja: era um
repórter típico. Volta e meia, brigava com os redatores encarregados de
reescrever o que fazia.”
TALESE E O NOVO
JORNALISMO
E tal conflito prossegue no trabalho de Talese no Times, que
era um jornal que tinha como dogmas os parágrafos curtos, objetividade, e uma
negação de narrativas impressionistas e subjetivas. Ou seja, Talese não
conseguia chegar ao clímax de sua forma, pois era incapaz de transmitir a sua
mensagem dentro dos limites estilísticos do jornal, que era nada mais que seu
trabalho árduo que significava nada mais que aquilo que tirava de seus
personagens, nos seus trabalhos de repórter, por ter o desejo de um tempo maior
de apuração que não estava disponível.
Quando deixou o Times, Talese foi trabalhar em revistas, se
adaptando bem à Esquire, lugar em que ele tinha liberdade para ser original,
sendo aí que publicou alguns de seus perfis mais elogiados, como o de Joe
Dimaggio e o de Frank Sinatra. E esse estilo de expressão, a posteriori
batizado de “novo jornalismo”, era um conjunto de pesquisas aprofundadas e
exaustivas, mantendo ao mesmo tempo o rigor com os dados factuais, mas com uma
narrativa que se utilizava de recursos da ficção, notadamente o romance. Por
sua vez, o chamado novo jornalismo era uma nomenclatura de escopo amplo que ia
dos delírios gonzo-alucinógenos de Hunter S. Thompson, assim como também
envolvia o neonaturalismo de Tom Wolfe, e também nomes como Truman Capote.
TALESE E OS LIVROS
Mas, seus trabalhos em revistas foram o antecedente do que
viria a ser seu trabalho com a produção de livros. Pois com Talese dispondo de
tempo suficiente de apuração e com um espaço de centenas de páginas para
preencher, o livro passou a ser seu novo e ideal veículo de trabalho. Lugar que,
contudo, também trouxe desventuras a Talese, repleto de conflitos e falta de
rumo, uma dispersão que só acabou resolvida forçadamente com seu “Vida de
escritor, de 2006, livro de Talese que teve pior recepção nos Estados Unidos, e
no qual o resultado não passou de um pot-pourri com restos de livros que
goraram; num conjunto de narrativa frágil e despedaçada, que teve na
circularidade um modo artificial de encerramento e conclusão.
Dentre os malogros que formaram o livro “Vida de escritor”
temos a extensa apuração da história da jogadora chinesa que perdeu o pênalti,
que não rendeu um livro como ele planejava. Outro fato que não se tornou um
livro foi o escabroso caso de Lorena Bobbit, que cortou o pênis do marido e o
jogou no mato. Com tal texto de Talese sendo recusado com rapidez humilhante
pela diretora de redação da revista The New Yorker, Tina Brown. E por fim, seu
malogro maior, a sua tentativa de transformar em livro a saga do terreno na rua
63, em Manhattan, lugar que tinha todas as condições de abrigar um restaurante
de sucesso e, no entanto, tudo resultou em fracasso.
VIDA DE ESCRITOR
Forma, então, o livro “Vida de escritor”, um conjunto
arbitrário, porém com um requinte por reunir uma boa narrativa, fragmentada,
forçada, mas com o ofício de jornalista de Gay Talese bem exemplificado e com
o título do livro sendo justificado do início ao fim, pois a estrutura de “Vida
de escritor” é um solavanco, não lhe falta a emoção, não tem a calma ou a
solenidade de uma obra clássica. O livro é um labirinto autoquestionador,
fragmentado – sendo moderno por não ser uma narrativa que se condensa em algo
de natural ou automático. Como dito, o livro é mesmo uma construção arbitrária,
um conjunto de sobras para formar um único livro. Sendo a sua unidade o fato de
ser o trabalho verdadeiro de um repórter.
O ESTILO DE GAY TALESE
O início da carreira de Gay Talese é retratada no livro, em
que o autor admite que seu texto “parecia ter uma queda precoce para artifícios
de retórica e circunlóquios”, e que “minha atitude em relação ao jornalismo foi
fortemente influenciada, durante todos os meus anos de secundário, por um
rebuscado romancista chamado Frank Yerby, um negro nascido na Geórgia que mais
tarde se radicou na Espanha e que escrevia prolificamente sobre mulheres de
anquinhas e cobertas de joias, com tantos excessos eróticos que, não fosse o
floreado estilo de sua prosa, seus livros teriam sido censurados em todos os
estados americanos. (...) Além disso, não teria tentado imitar, em minhas
tentativas de encobrir falhas dos atletas da escola, a facilidade de Yerby para
usar eufemismos.” Ou seja, a forma impressionista e rebuscada já despertava os
dotes de Gay Talese para uma narrativa inusual até então para o jornalismo
profissional.
Em junho de 1956 Talese aceita um emprego de repórter no
departamento de esportes do New York Times, já tendo trabalhado lá antes,
recomendado ao jornal por um colega e amigo da universidade, cujo tio de
Mississippi, o jornalista e editor Turner Catledge, se tornara diretor de
redação do Times em 1951. Foi ele quem mais tarde propôs que Talese trabalhasse
na editoria de esportes, que, segundo o autor “ele criticava abertamente devido
ao que considerava uma tendência para cobrir eventos esportivos do mesmo jeito
sério e enfadonho que na época o Times dispensava a todos os demais assuntos.”
Catledge escolheu a editoria de esportes como a primeira a
ser reformada, dando a entender que os textos ali poderiam ser mais leves,
originais e mais divertidos. E Talese afirma nesta altura: “Não obstante, como
jovem e ambicioso jornalista esportivo, continuei a ler e ser influenciado
principalmente por ficcionistas, embora meus gostos já se afastasse da
literatura licenciosa que havia esquentado meus hormônios no curso secundário.
No Alabama, eu havia lido romances e contos de escritores como William
Faulkner, Thomas Wolfe e outros autores sulistas. Como agora eu estava lendo
suplementos literários e assinando a revista The New Yorker, começava a
perceber que mesmo alguns ficcionistas de renome de vez em quando tratavam de
eventos esportivos e de atletas em seus romances e contos. Ao ler exemplos
dessa literatura, eu sempre tinha em mente que estava ante um texto que tinha
sido imaginado, que aqueles textos eram, afinal, classificados como “ficção”.”
GAY TALESE E SEU MÉTODO
No entanto, Gay Talese era um jornalista esportivo, e não um
ficcionista, mas se conseguisse se aproximar o suficiente de alguns daqueles
atletas, obtendo deles a confiança para ter suas confidências, talvez poderia
escrever reportagens pessoais factualmente corretas, mas muito reveladoras,
sobre atletas de primeira linha e usando seus nomes reais, e depois conseguir
que essas histórias fossem publicadas no convencionalíssimo New York Times, já
que Catledge estava tentando tornar mais solta a área em que Gay Talese
trabalhava. E Gay Talese diz, neste contexto: “Além disso, sem falsear os
fatos, minha postura jornalística seria ficcional, com muitos detalhes
pessoais, ambientação, diálogos e uma completa identificação com os personagens
escolhidos e com seus conflitos.”
E Gay Talese ganha seu estatuto de escritor, segundo o próprio:
“depois de deixar o Times em 1965, para trabalhar como colaborador freelance de
revistas e escrever livros,”, em que ele exemplifica seu périplo: “passei
grande parte do tempo entre meados da década de 1960 e parte da de 1970 morando
em hotéis e apartamentos em várias cidades da Califórnia: em Beverly Hills,
para fazer um perfil de Frank Sinatra em seus anos outonais; em San Francisco,
para escrever sobre Joe DiMaggio, então com 51 anos e ainda de luto por Marylin
Monroe e também perplexo com o que estava acontecendo com os Yankees; em San
José, onde completei a pesquisa para um livro sobre a exilada família Bonanno,
expulsa de Nova York por grupos rivais da Máfia em fins dos anos 60., e em
Topanga Canyon, perto de Malibu, no condado de Los Angeles, onde várias vezes
passei algum tempo, entre 1971 e 1973, a fim de entrevistar nudistas
livre-pensadores e casais adeptos do amor livre, numa comunidade chamada
Sandstone, que foi um dos locais que utilizei para pesquisar e escrever um
livro sobre as tendências históricas e sociais que, acredito, tornaram os
Estados Unidos, na década de 1970, um país bem mais permissivo e menos pudico
que nos tempos de minha juventude, depois da guerra e antes da Playboy.”
GAY TALESE E SEU
LABIRINTO
Mas, Talese também se coloca como pesquisador malogrado, um
jornalista que, invariavelmente, juntava informações e se perdia numa falta de
foco que o levava por vezes a verdadeiros labirintos de coisas inacabadas, em
que ele diz que seu tempo é utilizado “para procurar e reunir informações, que
obtive em bibliotecas, arquivos privados e públicos e com várias pessoas que
procurei e entrevistei. Creio que o contato face a face é necessário porque
desejo não somente um diálogo, como também uma sensação visual dos traços
pessoais e maneirismos dos entrevistados, além da possiblidade de descrever a
atmosfera do local em que se deu o encontro. Apesar de importantes, as ideias e
informações obtidas dessa maneira muitas vezes custam-me quantias consideráveis
em transporte e diárias de hotel, assim como em jantares e vinho para as
fontes, e com frequência o que é dito e visto nessas entrevistas não contribui
com absolutamente nada para o avanço do livro.”
Talese tinha a vontade de se aprofundar em tudo que abordava,
mas sua pesquisa era fragmentária e várias vezes errática, própria de um
jornalista que considera tudo a sua volta, e daí a sua sofreguidão de repórter,
como ele testemunha sobre si mesmo: “É importante reconhecer que durante os
quarenta anos de minha carreira como escritor-pesquisador eu investi
pesadamente na perda de tempo. Já gastei semanas negociando entrevistas com
pessoas recalcitrantes que, quando finalmente resolveram falar comigo, nada
revelaram de interessante. Já viajei centenas e milhares de quilômetros
seguindo pistas que por fim não me levaram a parte alguma. Das informações que
recolho de pessoas, 80% terminam na cesta de lixo. Ainda assim, eu não teria
conseguido descobrir os 20% úteis sem abrir caminho através dos outros 80%. Que
acabam virando lixo.” Talese, portanto, reúne uma infinidade de inutilidades
para tirar suas pepitas que podem, talvez, virar livro. Ou seja, Talese faz um
trabalho de louco de miudezas e enorme de repórter como ele é.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/30307/17/gay-talese-em-vida-de-escritor-e-um-reporter-parte-1