“Tal contradição, por conseguinte, será a marca do homem
seiscentista e barroco”
Gregório de Matos Guerra, embora tenha produzido muitos
poemas, não publicou um único livro em vida. Sua produção foi dispersa, entre
manuscritos, cópias estropiadas de admiradores, sendo questionada autoria e
autenticidade, em uma época que escritos de diversas origens circulavam sem
autoria comprovada.
A produção poética de Gregório se conhece, na História, pelo
traslado que se deu entre manuscritos organizados em códices que, contudo, eram
contraditórios ou divergentes entre si.
Num esforço feito por Afrânio Peixoto, a Academia Brasileira
de Letras conseguiu reunir os poemas de Gregório em seis volumes, que foram
então compilados com o título de Obras Completas. Já em 1969 temos novos poemas
entrando no espólio e então James Amado faz uma versão da produção de Gregório
agora em sete volumes. E que se tornou dois volumes em 1992 sob o título Obras
Poéticas, já fundamentada em maior número de códices.
A produção poética de Gregório, em sua temática, temos a sua
divisão principal entre poemas religiosos e poemas profanos. Temos, por
conseguinte, em seus poemas religiosos, uma unidade maior em características,
tendo então esta poesia um caráter que não necessitava de novas divisões.
Por sua vez, na poesia profana de Gregório, dada a sua
diversidade maior de características, podemos situá-las entre poemas amorosos,
encomiásticos, satíricos e de circunstância.
Essa divisão da poesia de Gregório retrata também a divisão
anímica do homem barroco, entre a metafísica e a carnalidade, entre os anseios
espirituais e os impulsos naturais, que na poesia de Gregório vai se dar entre
temas religiosos e profanos, como dito. Tal contradição, por conseguinte, será
a marca do homem seiscentista e barroco.
POEMAS :
A CHRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE
SUA VIDA. : O poeta, em franco drama e derramamento barroco, se encontra aqui
entre a vida e a morte, e também entre o pecado e a salvação, no que segue : “Meu
Deus, que estais pendente em um madeiro,/Em cuja lei protesto de viver,/Em cuja
santa lei hei de morrer” (...) “Neste lance, por ser o derradeiro,/Pois vejo a
minha vida anoitecer,/É, meu Jesus, a hora de se ver/A brandura de um Pai manso
Cordeiro./Mui grande é vosso amor, e meu delito,” (...) “Esta razão me obriga a
confiar,/Que por mais que pequei, neste conflito/Espero em vosso amor de me
salvar.”. O poema é uma prece ou pedido do poeta diante da divindade que lhe
proporcione o descanso dos justos e não o tormento infinito reservado aos
pecadores no inferno. O poema ganha esta tensão que será bem comum na poesia
religiosa de Gregório.
AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO : Segue aqui um dos
trechos de versos mais célebres da pena gregoriana, no que temos, em júbilo : “Pequei,
Senhor, mas não porque hei pecado,/Da vossa piedade me despido,/Porque quanto
mais tenho delinquido,/Vos tenho a perdoar mais empenhado/Se basta a vos irar
tanto um pecado,/A abrandar-vos sobeja um só gemido,/Que a mesma culpa, que vos
há ofendido,/Vos tem para o perdão lisonjeado.”. O poeta se volta aos céus em
sua contradição espiritual de poeta pecador e despido, no que segue : “Eu sou,
Senhor, a ovelha desgarrada/Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,/Perder na
vossa ovelha a vossa glória.”. O poeta anseia pela glória, de ser uma ovelha
que a divindade não quereria perder ao abismo da morte e da maldade.
AO SANCTISSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR. : O poema
mais uma vez revela a contradição do homem barroco e seiscentista, encarnado
aqui no poeta Gregório, que se bate entre céu e inferno, e temos : “Tremendo
chego, meu Deus,/ante vossa divindade,/que a fé é muito animosa,/mas a culpa
mui cobarde.” (...) “Como comerei de um pão,/que me dais, porque me salve?”.
Anseio de salvação que torna aqui em estro metafísico, poema religioso, pois,
no que segue : “de um pão, que é tão formidável/vendo, que estais todo em tudo,/e
estais todo em qualquer parte?”. E a especulação se volta aos desígnios
divinos, no que tem : “Senhor, eu não vos entendo;/vossos preceitos são graves,/vossos
juízos são fundos,/vossa ideia inescrutável.” (...) “só sei, que importa
salvar-me.”. E o poema segue então diante dos anjos do Senhor, em louvação e
glória em que o poeta tenta acudir os brutos em sua oração e poema, e até aos
montes e vegetais, numa louvação universal, no que temos, por fim : “Os Anjos,
meu Deus, vos louvem,/que os vossos arcanos sabem,/e os Santos todos da glória,/que,
o que vos devem, vos paguem./Louve-vos minha rudeza,/por mais que sois
inefável,/porque se os brutos vos louvam,/será a rudeza bastante./Todos os
brutos vos louvam,/troncos, penhas, montes, vales,/e pois vos louva o sensível,/louve-vos
o vegetável.”
CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRÁVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS
: O poema aqui se configura com a natureza terrena do humano que, contudo,
tenta alcançar a glória do céu como seu destino, e não a terra que lhe forma e
que lhe dá o caráter mortal de pó, no que temos : “Que és terra Homem, e em
terra hás de tornar-te,/Te lembra hoje Deus por sua Igreja,/De pó te faz
espelho, em que se veja/A vil matéria, de que quis formar-te./Lembra-te Deus,
que és pó para humilhar-te,”. E o poema finaliza entre salvação e natureza
terrena, no que tem : “Todo o lenho mortal, baixel humano/Se busca a salvação,
tome hoje terra,/Que a terra de hoje é porto soberano.”
AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS
QUANDO APPARECEO. : O poema vai entre a parte e o todo, no
que faz então um tipo de teoria poética sobre a divindade, no que vem : “O todo
sem a parte não é todo,/A parte sem o todo não é parte,/Mas se a parte o faz
todo, sendo parte,/Não se diga, que é parte, sendo todo./Em todo o Sacramento
está Deus todo,”. E Jesus aqui é todo e não parte, o sacramento se dá inteiro,
e então temos : “O braço de Jesus não seja parte,/Pois que feito Jesus em
partes todo,/Assiste cada parte em sua parte./Não se sabendo parte deste todo,/Um
braço, que lhe acharam, sendo parte,/Nos disse as partes todas deste todo.”.
MOTE 13 : O poema pinta bem a paixão do Senhor, e temos em
versos delicados um trajeto que deseja a luz divina, no que temos :“Já
requintada a fineza/nesse Pão sacramentado/temos, Senhor, ponderado/vossa
inaudita grandeza :” (...) “Permiti por vossa cruz,/por vossa morte, e paixão,/que
entrem no meu coração/os raios da vossa luz :/clementíssimo Jesus/sol de imensa
claridade,/sem vós a mesma verdade,/com que vos amo, periga;/guiai-me, porque
vos siga,/Ó divina Majestade.”. E Deus se fez Homem, a imagem do cordeiro então
humaniza a divindade, e finaliza o poema, com júbilo : “na forma rendida/de um
cordeiro a Majestade/aos olhos da humanidade/melhor a potência informa,/sendo
cordeiro na forma,/Que sendo Deus na verdade.” (...) “que sendo Deus infinito,/Sois
também Pão na aparência.”.
CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E
VIDA RELAXADA. : O poema clama contra a morte em pecado que pode roubar a
salvação do poeta, no que temos : “Ai de mim! Se neste intento,/e costume de
pecar/a morte me embaraçar/o salvar-me, como intento?” (...) “Valha-me Deus,
que será/desta minha triste vida,/que assim mal logro perdida,/onde, Senhor,
parará?”. O poema segue seu rumo e teme pelo assédio diabólico, no que temos : “Que
desculpa posso dar,/quando ao tremendo juízo/for levado de improviso,/e o
demônio me acusar?” (...) “Nome tenho de cristão,/e vivo brutalmente,” (...) “Sempre
que vou confessar-me,/digo, que deixo o pecado;/porém torno ao mau estado,/em
que é certo o condenar-me :”. O poeta faz confissão, mas retorna ao seu próprio
mal, no que temos : “Mas se tenho tempo agora,/e Deus me quer perdoar,/que lhe
hei de mais esperar,/para quando? Ou em qual hora?/que será, quando traidora/a morte
me acometer,/e então lugar não tiver/de deixar a ocasião,/na extrema condenação/me
hei de vir a subverter.”. A subversão e a condenação são o temor deste poema
inteiro, pois.
POEMAS :
A CHRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE
SUA VIDA.
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme, e inteiro.
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor, e meu delito,
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na sacra história :
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
AO SANCTISSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR.
Tremendo chego, meu Deus,
ante vossa divindade,
que a fé é muito animosa,
mas a culpa mui cobarde.
À vossa mesa divina
como poderei chegar-me,
se é triaga da virtude,
e veneno da maldade?
Como comerei de um pão,
que me dais, porque me salve?
um pão, que a todos dá vida,
e a mim temo, que me mate.
Como não hei de ter medo
de um pão, que é tão formidável
vendo, que estais todo em tudo,
e estais todo em qualquer parte?
Quanto a que o sangue vos beba,
isso não, e perdoai-me :
como quem tanto vos ama,
há de beber-vos o sangue?
Beber o sangue do amigo
é sinal de inimizade;
pois como quereis, que o beba,
para confirmarmos pazes?
Senhor, eu não vos entendo;
vossos preceitos são graves,
vossos juízos são fundos,
vossa ideia inescrutável.
Eu confuso neste caso
Entre tais perplexidades
de salvar-me, ou de perder-me,
só sei, que importa salvar-me.
Oh se me déreis tal graça,
que tenho culpas a mares,
me virá salvar na tábua
de auxílios tão eficazes!
E pois já à mesa cheguei,
onde é força alimentar-me
deste manjar, de que os Anjos
fazem seus próprios manjares :
Os Anjos, meu Deus, vos louvem,
que os vossos arcanos sabem,
e os Santos todos da glória,
que, o que vos devem, vos paguem.
Louve-vos minha rudeza,
por mais que sois inefável,
porque se os brutos vos louvam,
será a rudeza bastante.
Todos os brutos vos louvam,
troncos, penhas, montes, vales,
e pois vos louva o sensível,
louve-vos o vegetável.
CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRÁVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS
Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,
Te lembra hoje Deus por sua Igreja,
De pó te faz espelho, em que se veja
A vil matéria, de que quis formar-te.
Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,
E como o teu baixel sempre fraqueja
Nos mares da vaidade, onde peleja,
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.
Alerta, alerta pois, que o vento berra,
E se assopra a vaidade, e incha o pano,
Na proa a terra tens, amaina, e ferra.
Todo o lenho mortal, baixel humano
Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é porto soberano.
AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS
QUANDO APPARECEO.
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.
MOTE 13
Ó divina Onipotência!
Ó divina Majestade!
que sendo Deus na
verdade
sois também pão na
aparência.
Já requintada a fineza
nesse Pão sacramentado
temos, Senhor, ponderado
vossa inaudita grandeza :
mas o que apura a pureza
da vossa magnificência
é, quererdes, que uma ausência
não padeça, quem deixais,
pois que partindo ficais,
Ó divina Onipotência.
Permiti por vossa cruz,
por vossa morte, e paixão,
que entrem no meu coração
os raios da vossa luz :
clementíssimo Jesus
sol de imensa claridade,
sem vós a mesma verdade,
com que vos amo, periga;
guiai-me, porque vos siga,
Ó divina Majestade.
Na verdade esclarecida
do vosso trono celeste
toda a potência terrestre
de compreender-vos duvida :
porém na forma rendida
de um cordeiro a Majestade
aos olhos da humanidade
melhor a potência informa,
sendo cordeiro na forma,
Que sendo Deus na verdade.
Cá neste trono de neve,
onde humanado vos vejo,
melhor aspira o desejo,
melhor a vista se atreve :
aqui sabe, o que vos deve
(vencendo a maior ciência)
amor, cuja alta potência
adverte nesse distrito,
que sendo Deus infinito,
Sois também Pão na aparência.
CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E
VIDA RELAXADA.
Ai de mim! Se neste intento,
e costume de pecar
a morte me embaraçar
o salvar-me, como intento?
que mau caminho frequento
para tão estreita conta;
oh que pena, e oh que afronta
será, quando ouvir dizer :
vai, maldito, a padecer,
onde Lucifer te aponta.
Valha-me Deus, que será
desta minha triste vida,
que assim mal logro perdida,
onde, Senhor, parará?
que conta se me fará
lá no fim, onde se apura
o mal, que sempre em mim dura,
o bem, que nunca abracei,
os gozos, que desprezei,
por uma eterna amargura.
Que desculpa posso dar,
quando ao tremendo juízo
for levado de improviso,
e o demônio me acusar?
Como me hei de desculpar
sem remédio, e sem ventura,
se for para aonde dura
o tormento eternamente,
ao que morre impenitente
sem confissão, nem fé pura.
Nome tenho de cristão,
e vivo brutalmente,
comunico a tanta gente
sem ter, quem me dê a mão :
Deus me chama co perdão
por auxílios, e conselhos,
eu ponho-me de joelhos
e mostro-me arrependido;
mas como tudo é fingido,
não me valem aparelhos.
Sempre que vou confessar-me,
digo, que deixo o pecado;
porém torno ao mau estado,
em que é certo o condenar-me :
mas lá está quem há de dar-me
o pago do proceder :
pagarei num vivo arder
de tormentos repetidos
sacrilégios cometidos
contra quem me deu o ser.
Mas se tenho tempo agora,
e Deus me quer perdoar,
que lhe hei de mais esperar,
para quando? Ou em qual hora?
que será, quando traidora
a morte me acometer,
e então lugar não tiver
de deixar a ocasião,
na extrema condenação
me hei de vir a subverter.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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