“no momento histórico em que vivia ele não podia alcançar o
reconhecimento que merecia”
CESÁRIO VERDE – O HOMEM
E A OBRA
BIOGRAFIA
Numa praça em Lisboa temos um busto de bronze que tem no
pedestal a inscrição: “Cesário Verde – Poeta.” É o reconhecimento ao poeta que
teve a sua qualidade de poeta recusada pelos seus contemporâneos, tal que é a
compensação pela posteridade que desmentia sua queixa em carta a um amigo: “Literariamente
parece que Cesário Verde não existe.”
A biografia de Cesário Verde não possui uma vastidão de
informações, pois tanto envolve um breve tempo de vida de 31 anos, como o
prosaísmo de sua atividade profissional, uma vez que era um modesto caixeiro
que trabalhava na loja de ferragens de seu pai, na Rua dos Fanqueiros, aonde aviava
fregueses, e fazia a escrita ou se encarregava da correspondência comercial, numa
vida de um cotidiano comum, com a gente sem história que o poeta iria apresentar
em seus poemas. Também Fernando Pessoa exerceu uma atividade profissional
apagada, mas este, ao contrário de Cesário Verde, integrou-se e participou dos
círculos intelectuais do seu tempo, na história das lides culturais com as
ideias que comungou na geração de Orfeu de que fazia parte. O que não aconteceu
com Cesário, a quem os contemporâneos ignoraram.
O ambiente familiar de Cesário Verde era marcado por um
grande espírito positivo e prático, no que não se tinha espaço para expansões
idealistas que normalmente se ligam à poesia, pois Eduardo Coelho, por exemplo,
que foi o fundador do Diário de Notícias, fora, também ele, empregado de José
Anastácio Verde, o pai do poeta Cesário, nos tempos da sua adolescência. E Eduardo,
no contexto deste trabalho, vira-se obrigado a abandonar a loja de ferragens por
via da oposição que o patrão fazia à sua atividade literária, oposição que
tinha uma justificação muito simples: “Versos não dão dinheiro.”
Será também esse espírito positivo, pragmático e utilitarista,
que provocará na família de Cesário Verde a ausência de religiosidade, numa
atitude de hostilidade face ao fenômeno religioso dominante na sociedade, no
que teremos um poeta anticlerical e republicano, que nos deixa alguns
testemunhos dessa atitude ao longo dos versos que escreveu. À atividade de
produtor juntava-se também a de exportador das frutas da fazenda. E, se o poeta
não deixa de se entusiasmar pelo trabalho, revela também um tipo de consciência
muito esclarecida dos aspectos concretos dessa atividade, o que refletirá em
seus versos um estro com boa dose de prosaísmo.
Comerciante, Cesário Verde nunca conseguiu ser aceito como
poeta pela geração de intelectuais seus contemporâneos, estando então vedado o
seu acesso às capelas literárias onde se forjam os mitos. E como a sua poesia
apresentava traços de novidade, no momento histórico em que vivia ele não podia
alcançar o reconhecimento que merecia, no que a crítica foi impiedosa ao
apercebê-la impressa em folhas periódicas. A publicação em 1874 no Diário de
Notícias do poema “Esplêndida” é acolhida por Teófilo Braga e Ramalho Ortigão,
dois pontífices das letras daquele tempo, com ironia e sarcasmo. Ramalho
aconselha o jovem autor (ao tempo com 19 anos) a tornar-se “menos Verde e mais
Cesário” – uma boa maneira de indicar o abandono da atividade literária. Mais
tarde, Teófilo Braga ignorá-lo-á por completo na organização do Parnaso
Português Moderno, onde nenhum poema de Cesário Verde foi incluído.
Outro incidente desagradável deu-se com o Diário Ilustrado
que, ao transcrever do Diário de Notícias o poema “Em petiz”, não se conteve de
comentários ignóbeis, mais dignos do panfleto do que da crítica. Ali se dizia
que cada verso do poema era “simplesmente um vomitório”.
Todas estas contrariedades pesaram fundo na alma do poeta, e
o poema “Contrariedades” parece ditado justamente por estas desilusões. Ali se
tenta um diagnóstico das causas que poderiam estar na base da rejeição de que
era vítima. Donde se conclui que os obstáculos que encontrava para singrar nas
letras provinham da sua independência, da sua marginalização relativamente aos
círculos de literatos. De qualquer modo, não é de crer que a confiança do poeta
no seu próprio talento fosse tal que o isentasse de uma sombra de dúvida quanto
à qualidade da sua produção literária. E isso explicará por um lado a escassez
do que nos deixou e o fato de não ter em vida publicado qualquer livro, embora
já em 1874 essa publicação se anunciasse “para breve”.
POEMAS:
CRISE ROMANESCA
DESLUMBRAMENTOS: O poema, da crise romanesca, que
Cesário Verde impõe com estro apaixonado, dirige-se com deslumbramento, e a sua
milady é um perigo, que aparece no poema então como a clássica contemplação do
poeta; “Milady, é perigoso contemplá-la,” (...) “Quantas vezes, seguindo-lhe as
passadas,/Eu vejo-a, com real solenidade,/Ir impondo toilettes complicadas! .../Em
si tudo me atrai como um tesoiro:”. O poema tem seu tesouro, e o poeta está em
fascinação: “Ah! Como me estonteia e me fascina .../E é, na graça distinta do seu
porte,/Como a Moda supérflua e feminina,/E tão alta e serena como a Morte! ...”.
As rimas fluem, e o estro arde em êxtase: “O seu olhar possui, num jogo
ardente,/Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;”. Anjos e demônios surgem na
contemplação, que tem no olhar de sua milady a mira de Cesário Verde: “E enfim
prossiga altiva como a Fama,/Sem sorrisos, dramática, cortante;”. A fama
precípua é de cortante drama, e o luxo surge então nas estradas: “E um dia, ó
flor do Luxo, nas estradas,/Sob o cetim do Azul e as andorinhas,/Eu hei-de ver
errar, alucinadas,/E arrastando farrapos – as rainhas!”. E assim milady supera
as rainhas que se arrastam aos farrapos, glória suprema do poeta e seu
deslumbramento.
HUMILHAÇÕES: O poema tem da humilhação ao
ambiente do teatro o desdém e os salões que o ignoram, este poeta que em versos
sem reconhecimento, se perde com estro pela noite destes salões: “Esta aborrece
quem é pobre. Eu, quase Job,/Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;/E
espero-a nos salões dos principais teatros,/Todas as noites, ignorado e só.”.
No poema o teatro tem a presença feminina como um salto: “Na representação dum
drama de Feuillet,/Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,/Quando a mulher
nervosa e vã que me deslumbra/Saltou soberba o estribo do coupé.”. E sua
passada é firme, como uma marcha: “Como ela marcha! Lembra um magnetizador,/Roçavam
no veludo as guarnições das rendas;/E, muito embora tu, burguês, me não
entendas,/Fiquei batendo os dentes de terror./Sim! Porque não podia abandoná-la
em paz!”. O poeta tonteia de terror, embora com sua visão extática não pudesse
sair dali e ficar em paz: “Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;/Via-a
subir, direita, a larga escadaria./E entrar no camarote. Antes estimaria/Que o
chão se abrisse para a abater.” O poema então termina com um súbito drama
final, em que o sujo e infecto se dá como um pedido final, um cigarro: “De
súbito, fanhosa, infecta, rota, má,/Pôs-se na minha frente uma velhinha suja/E
disse-me, piscando os olhos de coruja:/_ Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?
...”.
NATURAIS
CONTRARIEDADES: O poema se dá na contrariedade de
Cesário Verde com o seu tempo, ele está cruel, revoltado, incompreendido, o
poema tem este azedume típico de uma alma canora que tem seu canto cortado: “Eu
hoje estou cruel, frenético, exigente;/Nem posso tolerar os livros mais
bizarros./Incrível! Já fumei três maços de cigarros/Consecutivamente./Dói-me a
cabeça. Abafo uns desesperos mudos:/Tanta depravação nos usos, nos costumes!”.
O poeta aparece aqui em sua face decadente: “O obstáculo estimula, torna-nos
perversos;/Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,/Por causa dum jornal me
rejeitar, há dias,/Um folhetim de versos./Que mau humor! Rasguei uma epopeia
morta/No fundo da gaveta. O que produz o estudo?/Mais duma redação, das que
elogiam tudo,/Me tem fechado a porta.”. O poeta vê todas as portas fechadas, e
tem a ideia sabotadora de queimar seus escritos, num rompante: “Juntei numa
fogueira imensa/Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa/Vale um desdém solene.”.
A imagem poética é destruidora, o poeta está em convulsão, seus poemas não
estão em evidência, resta aos amigos seu mundo particular de poeta histórico
póstumo: “Eu nunca dediquei poemas às fortunas./Mas sim, por deferência, a
amigos ou a artistas./Independente! Só por isso os jornalistas/Me negam as
colunas./Receiam que o assinante ingênuo os abandone,/Se forem publicar tais
coisas, tais autores./Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores/Deliram
por Zaccone.”. O poeta aqui aparece como o injustiçado, o ressentido, como se
ele próprio não tivesse que alçar sua poesia na evidência que ele deseja
ardentemente, o que nem sempre é possível, mas que não pode ser objeto de
lamento a quem se propõe tamanho empreendimento: “Perfeitamente. Vou findar sem
azedume./Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,/Conseguirei reler essas
antigas rimas,/Impressas em volume?/Nas letras eu conheço um campo de manobras;/Emprega-se
a reclame, a intriga, o anúncio, a blague,/E esta poesia pede um editor que
pague/Todas as minhas obras ...”. E o poeta está impotente, no aguardo de um
editor que lhe pague a fortuna crítica de seu trabalho imenso.
POEMAS:
CRISE ROMANESCA
DESLUMBRAMENTOS
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e anormal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas! ...
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina ...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte! ...
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!
HUMILHAÇÕES
De todo o coração – a Silva Pinto
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ela marcha! Lembra um magnetizador,
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!
Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
_ Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.
Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria.
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para a abater.
Sai; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo, irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
_ Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá? ...
NATURAIS
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar; morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas ...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras exceções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas.
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos
Os meus alexandrinos ...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova,
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a reclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras ...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia ...
Que mundo! Coitadinha!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/33054/17/o-livro-de-cesario-verde-parte-1-1