PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

DUPLA FACE

Teme o rio o andar do poema.
Tal rio que ondula e para,
ao rio a alma corre.

Deambula poema cai inerte.
Inerme tal rio poema corre.
Às altas madrugadas
o desfecho quer desenlace
e não fecha como abre.

Paz quer o poema à forma pura.
Guerra tem o poema à forma bruta.
Forma de força e de fraqueza,
tal é o poema álacre e taciturno,
noturno em aurora,
amanhece.

Qual fundo crepúsculo
à dor dorme,
e à noite vinda,
desperta
em boêmia,
de ponta a ponta,
qual fuga
de se encontrar.

04/10/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

CORPO DE MULHER

Força-motriz, fabrica o meu desejo.
Carne que é nua e tem tez.
Mora em outro lugar
vedado aos homens,
mulher que é mais que corpo,
é corpo em cabeça,
outro reflexo
do sinal que recobre
seu sexo.

Aos homens causa febre e morticínio,
aos homens outros transmuta-se
em delicada flor.
Aos homens canta dor
e seu amor é indolor.

À paixão corusca o meu terror.
Que a mulher é a chave
do desejo,
que à mulher a carne
é tida da alma
a forma perfeita,
e na ode ou hino
paz emula
dando dela
o corpo e a alma.

04/10/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

PELO CAMPO DA SAUDADE

Dentre os olhos que se calam,
eu entro em alma no caos da barca.
Feneço aos vinhos da esquadra,
e entendo o dorso da lâmina,
corta o meu sangue que coagula
ao frio de todas as horas do pranto.

Fecho os olhos,
caio em tudo
como um dançarino
na dor de enterrar
poemas pelos cantos
e sombras que
jazem no campo
da saudade.

Me aquieto pela manhã,
na noite me espanto.

Do canto do pássaro
soa o sinal.
Eu tenho o poema
qual vitral
na noite
do amor
que é toda a cor
que é brilho
do ardor
de minha pena.

01/10/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ESCRITA PONTUADA

Prensa da escrita, qual fuga
no pranto, corta e recorta.
Dá ao susto o frio com suor.
Ferve o tal néctar do poema no muro.

Piche na parede,
o muro de cal
que cobre a vista
é o mesmo muro
que se vê em toda carne
que sustenta o verso.

Pintei este muro de sonho,
pintei as caras no carnaval.

Escrita que se apressa e apresenta.
Tal é o ritmo que se fia de flor em drama.

Ditado da cor em penumbra que é sangue.
Cor da esfera que é o tempo que dança.

Qual é a fuga do espanto que escreve?
O poema faz silêncio
e fala de si
como quem na arte
evita a morte
em sua vida
de pó e estrela.

01/10/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

domingo, 29 de setembro de 2013

EVTUCHENKO, AUTOBIOGRAFIA PRECOCE

"Deve-se atingir, segundo Evtuchenko, na poesia e na vida, um grau inimitável, reflexo fiel de cada um."

   O poeta Eugênio Evtuchenko, nascido na Rússia, na verdade, viveu a maior parte de sua vida no cenário histórico de uma União Soviética dominada pelo regime stalinista, donde o poeta tirou sua crença comunista. Foi neste contexto, que Evtuchenko repensou suas convicções acerca, sobretudo, da figura de Stalin, que teve por grande período da História, um culto de sua personalidade, na então União Soviética. Tal delírio stalinista, não foi nada muito diferente do que ocorrera, concomitantemente, no fascismo italiano de Mussolini, ou no surto psicótico nazista de Hitler na Alemanha.
   No seu livro Autobiografia Precoce, Evtuchenko traça seu perfil de poeta, e isto é feito dentro deste contexto histórico do comunismo soviético. Seus questionamentos são gerados neste embate entre poesia e política, de um poeta político, herdeiro da grande tradição de poetas russos, e de uma das literaturas mais poderosas do mundo, uma Rússia que já havia gerado Pushkin, Pasternak, Maiakovski e, principalmente, o vulto Dostoievski e o messiânico Tolstoi. E é bom lembrar do símbolo idealizado da poesia e do poeta russo, nada parecido em outras nações. O poeta, na nação russa, tem um poder e influências bem mais proeminentes nesta nação de grandes artistas e escritores.
   A autobiografia de Evtuchenko é o retrato de uma nova geração russa de escritores, que surgia naquele contexto de fim da era stalinista, para uma abertura e revisão da experiência soviética com Stalin, para um novo período em que tudo é revisto, e que provoca o embate do poeta Evtuchenko com os velhos dogmáticos da esquerda stalinista.
   Evtuchenko ganha uma nova posição de reflexão sobre o comunismo na era pós-Stalin. Evtuchenko rememora seus passos de poeta, no seu estudo, na sua luta de divulgação de seu trabalho, nos saraus, e nas suas andanças pelo cenário literário e político daquela época.  Enfim, este jovem poeta russo declara seu comunismo, e, ao mesmo tempo, entra num confronto político de questionamento dos rumos da nação. A luta contra os dogmáticos se torna ferrenha, e Evtuchenko, entre poesia e política, ou melhor, numa poesia política e engajada, entra no coração soviético de luta por ideais que estavam em plena efervescência e renovação, após a morte do ditador Stalin.
   Mas, no início de sua autobiografia, Evtuchenko declara que a autobiografia de um poeta são seus poemas, "o poeta tem o dever de se apresentar aos leitores com seus sentimentos, atos e pensamentos de coração aberto", ou ainda, "se entregar, impiedosamente, à sua verdade." E, num ato de ir além de seus poemas, escreve esta obra autobiográfica, o que não contradiz a abertura da própria obra, pois sua vida coadunava com seus poemas, não haveria, portanto, em Evtuchenko, o problema visto em alguns poetas, de uma poesia que não refletiria a vida do poeta.
   Pois então, Evtuchenko, em sua vida de embate poético e politizado, dá a ideia da Rússia soviética do século XX, coloca historicidade profunda no seu relato, e mescla seu percurso e evolução na poesia, entre os conflitos de uma nação. O vulto da literatura russa, num contexto comunista, que é, por si só, um exercício de política prática constante, e na sua referência à tradição de Maiakovski, e o nascimento de uma nova geração, uma geração engajada, reflexo de um povo único, e de escritores e poetas de alta estirpe, faz a descrição, através deste escrito de Evtuchenko, de uma nação que tem na literatura e na política, dois poderes fantásticos. Evtuchenko reúne em seu relato autobiográfico todos estes elementos que formam a ideia e a prática de um povo, de uma nação, numa arte que está imbricada com a práxis política, e uma poesia que é colocada no panteão de uma identidade que faz a Rússia, e que se coloca como um dos símbolos mais fortes desta nação russa.
   O reestabelecimento leninista do XX Congresso, onde novos paradigmas entravam como uma superação do que se tornou o processo de devassa do período stalinista, apavorou os que Evtuchenko chamava de "dogmáticos", de suas cadeiras de couro, bem arrumados em cargos políticos, estes tremiam diante da nova realidade e da revelação das atrocidades do período stalinista, onde o culto da personalidade de Stalin escondia um monstro sanguinário e vingativo.
   Sob o governo de Kruchev, todas as barbáries do período stalinista são colocadas às claras, e Stalin passa de figura central do comunismo soviético, a um homem abjeto que condenou o leninismo inicial de uma Rússia soviética, para um delírio semelhante às loucuras do fascismo e do nazismo. Stalin desce de uma idealização mítica e sofre uma revisão crítica de seus atos, após a sua morte. Uma nova União Soviética se erguia, recuperando o leninismo, e passando por uma intensa reinterpretação do fenômeno Stalin. E Evtuchenko, que também nutriu admiração por Stalin, refaz seu comunismo, e entra em confronto com os velhos dogmas de um país que, neste momento, já havia mudado.
   A poesia no plural, tal o "nós" de uma poesia nascente no comunismo, é a poesia política que Evtuchenko tematiza em sua obra autobiográfica. Ele entende que há uma separação entre verdadeiros poetas, que falam de uma vida autenticamente poética, mergulhada no fenômeno da vida coletiva, o que é um nascente "nós" de uma poesia política e comunista, e os estereótipos de uma poesia superada, que não tem vigor biográfico e nem político. E é aí que Evtuchenko encontra sua voz poética, na trilha da tradição de um Maiakovski, e meio que postergando a sua relação com o "eu" de Pasternak, poeta que demora a chamar a sua atenção.
   A nova poesia soviética tenta colocar, e isto, em Evtuchenko, e na sua autobiografia, fica claro, é que toda a vida do poeta, e aqui se fala da vida dos poetas russos, e que, na figura de Evtuchenko, e nesta obra, ganham significado forte, é que não se pode ter em si o direito de uma expressão estereotipada, que não reflete a vida autêntica. Deve-se atingir, segundo Evtuchenko, na poesia e na vida, um grau inimitável, reflexo fiel de cada um, onde a poesia ganha a vida, e não mais somente uma pura expressão calculada. A unidade do pensamento com a vida devem guiar toda a poesia, e tudo o que possui beleza, não deve estar a serviço de um estetismo vazio, mas de uma estética fundada como expressão da vida, e não como um enfeite literário.
    A vida pulsa em Evtuchenko, em sua autobiografia. A poesia russa e a imagem do poeta russo ganham significado maior. Evtuchenko coloca a vida em primeiro plano, e sua poesia política enfrenta o mundo como ele é, com todos os seus enganos, revisões e ideais, com todo o sangue de que a poesia se nutre, e como imagem perfeita de uma nação que ele representa, a nação russa.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/13131/14/evtuchenko-autobiagrafia-precoce