PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

BLACK BLOCK

   Ele, aos 15 anos, virou punk, começou a ler Bakunin e Kropotkin, ficou sabendo das histórias de Ravachol e Louise Michel, ficou fascinado, leu Proudhon, ficou extasiado com Malatesta. Ia a shows dos melhores estilos camisa negra com tachinhas, brigava na roda de pogo com vontade, começou a entrar em gangues contra carecas, era anarquista e contra alguns skins que se diziam neonazis, aprendeu a tática black block aos 16 anos, sonhava com um dia ver a revolução acontecer, estourou a boiada em junho de 2013, ele foi lá na Presidente Vargas, enfrentou os policiais. Com sua máscara, decidiu quebrar uns bancos, quase foi encurralado na Candelária, mas fugiu pra Lapa chorando de ardência de gás lacrimogêneo.
   Os protestos arrefeceram, ele foi para São Paulo novamente, depois de um semestre no Rio de Janeiro. Voltou à sua gangue anarquista, releu Kropotkin, dizia que iria escrever um livro de estratégia urbana em protestos. A coisa estourou novamente, agora ele, já em São Paulo, no meio da confusão, jogou um coquetel molotov numa Brasília azul, ele não tinha visto, mas tinha um senhor de idade com a filha dentro da Brasília, os dois morreram queimados. No dia seguinte, a televisão russa revelou as imagens, ele estava mascarado. Resolveu fugir no mesmo dia que tacou fogo na Brasília, foi para Cubatão.
   Logo, os jornais do Brasil já diziam que ele estava sendo procurado. Ele encontrou outro amigo anarquista, em Cubatão, e se escondeu em sua casa. Pipocavam manifestações de opinião sobre o cara que tinha matado pai e filha numa Brasília azul incendiada. Ele estava com medo, não sabia o que iria fazer depois. Pensou que a poeira iria baixar, que ele tava mascarado e ninguém iria identificá-lo. Ele ficou cinco dias na casa deste amigo em Cubatão. Resolveu ir ao Rio de Janeiro. Os comentários nos jornais e nas páginas de opinião variavam entre: "tem que punir este assassino" pela mídia dita nativa, e de outro lado, intelectuais progressistas, tentando justificar a tática black block, dizendo que aquilo não refletia todos que se vestiam de preto ou usavam máscaras em protestos. Como tudo era maniqueísta, entre latidos de ambos os lados, e com, agora, a polícia federal no encalço dele, e toda a mídia falando no mascarado assassino, ele foi para a rodoviária de Cubatão, e no dia seguinte, pela manhã, já estava no Rio de Janeiro.
 Ele acabou sendo caguetado neste mesmo dia por uma testemunha que fez seu retrato falado. Neste mesmo dia, já de noite, no bairro do Flamengo, ele andava pelo aterro e foi espancado por uma gangue de direita de justiceiros. O confundiram com um marginal da área. Ele foi amarrado num poste, todo ensanguentado.
   Logo, os direitistas disseram: "pegaram mais um, bandido bom é bandido morto!" Intelectuais progressistas disseram: "esses jovens justiceiros têm que pagar!" O black block foi identificado, no dia seguinte, como o mascarado que tinha matado pai e filha na Brasília.
   Opiniões variaram. Uns que tinham dito que o black block que tinha que ser preso, não deveria ter sido espancado por justiceiros, e amarrado num poste. Os de direita, que eram contra a violência do black blocks, eram a favor da violência dos justiceiros do bairro do Flamengo. Outros, ao contrário, saudaram a violência simbólica dos black blocks, mas acharam um horror os justiceiros do Flamengo. Outros ainda, comentando em sites de notícias, gritaram, meio perdidos: "Petralhada! Privataria!" Ele foi preso, os justiceiros também, e todos tentaram ser coerentes, mas já era tarde.

19/02/2014 Crônica (Gustavo Bastos)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

CRÔNICAS DE CAIO FERNANDO ABREU

"Caio F. tem uma fala fácil, contudo, nada superficial"

   Caio Fernando Abreu nasceu no Rio Grande do Sul em 1948, e morreu por complicações da AIDS em 1996, já consagrado como contista e cronista. Dentre alguns de seus livros de contos estão Morangos Mofados e O Ovo Apunhalado. Caio F. também atuou como jornalista, tendo contribuído para as revistas Nova, Manchete, Veja e Pop, e para os jornais Correio do Povo, Zero Hora, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo. Caio F., na sua lida com o jornalismo, revelou seus dotes de cronista.
   Fiz a leitura de um recente lançamento de parte das crônicas que Caio F. publicou no jornal Estado de São Paulo. Tais crônicas estavam, até então, inéditas em livro, e abrangem os períodos de 1986 a 1988, e de 1993 a 1996. Este livro saiu em 2012 pela editora Nova Fronteira, e foi intitulado A vida gritando nos cantos. Numa dicção própria a Caio F., temos um bom material de crônicas que foram reunidas nesta edição. Temas variados percorrem os escritos de Caio F., seu olhar humano é bem refletido em suas crônicas, o que também não deixa de passar por um humor elegante e ácido, ao mesmo tempo. Alguns trechos são de uma crítica cortante, e tudo isto com pérolas de humor inteiramente compreensíveis para qualquer leitor. Caio F. tem uma fala fácil, contudo, nada superficial, seu cotidiano entra em todas as crônicas, e o contexto cultural de anos como 1986 e 1987, por exemplo, são um bom exercício de anamnese para os dias atuais. Tentei me projetar naqueles anos que também vivi. Em 1986, eu tinha 4 anos, e foi bom me colocar de maneira mais ampla naqueles anos, saber da cultura de tal época, e reviver o que passou na inconsciência de uma infância primeva. Entre os flashes difusos de minha memória infantil, fiquei com a noção atual daquele tempo recuperada, em parte, com as leituras destas crônicas dos anos 80.
   Na página 17, na crônica "Para machucar os corações", Caio F. questiona o tempo, e diz: "Eu não estou certo se essas lembranças serão boas. Ou se seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela memória e refletido no tempo presente - agora -, parece sempre melhor. E terá sido mesmo?". Caio F., nesta crônica, faz tal introdução, para depois falar de um disco ao vivo de John Lennon, gravado no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Sua questão passa pelo fim da era hippie, "flower-power is dead", já que o herói Lennon já estava morto, tudo que se acreditou foi ridicularizado pelos fatos, e fica a pergunta temporal, deste passado, o que era bom acabou-se, e a perspectiva do atual em relação ao passado também muda, independente do momento em que se deu e como se deu. Neste tempo, algo acontece depois e tudo muda, para o melhor ou o pior. Há uma cisão entre a reflexão e o tempo vivido, os quais se tornam duas coisas que podem se excluir mutuamente em seus sentidos. A morte do "flower-power" era o fim do mundo melhor. Ou seja, tudo que passou, se foi bom, não é mais, pois, foi derrotado pelo tempo presente.
   Caio F. tem um texto que seduz tanto pelo humor como por reminiscências interessantes, que ligam os aspectos culturais de uma época, e os colocam, nesta ligadura, como fontes de uma mistura autobiográfica com os temas que lhe são caros: Seus amores por Caetano e Rita Lee, suas admirações por vários conhecidos, e também textos que deixam em evidência uma cultura musical, cinéfila e até telenovelista, que são achados de tempos que são remapeados com a leitura de tais crônicas. O jogo é feito com os paradoxos do tempo, e suas conclusões são fatalidades que nos surpreendem ou nos confirmam algo do que existiu ali, com o tempo de Caio F. e sua cultura em torno. Diga-se: anos 80 e 90, neste livro.
   Na crônica "Meu Deus, são estrelas demais!", (páginas 21 e 22), sua verve cinéfila se depara com o desfile de celebridades nacionais dos idos de 1986, figuras de seu sonho que julgava intocáveis, num misto de perplexidade e reverência, e que culmina com a pergunta final, que fecha com chave de ouro a sua reflexão: Alguém lhe pergunta: "__ Caio, a Brigitte Bardot também faz cocô?" Ao que Caio F. responde, encerrando a crônica: "Até hoje, eu juro que não."
   A crônica "Lamúrias com chantili", (páginas 49 e 50), Caio F., respondendo algumas cartas, se justifica perante uma crítica de que era negativista em suas crônicas: "Ô meu senhor, não quero isso não. Queria outro mundo, outra ordem social, outras relações humanas - e me sinto um tanto idiota tentando explicar o que me parece óbvio." E continua, no fim: "Qualquer coisa que qualquer pessoa razoavelmente normal quer. Mesmo um punk, só que o jeito de querer do punk é do avesso. E o avesso é um jeito tão bom quanto qualquer outro. Além disso, não tem só cara e coroa. Tem cara, coroa - e quina também." O mesmo raciocínio é exemplificado na crônica "Caetano, caetanagem" (páginas 61 e 62), que começa pela chamada da crônica: "O problema de Caetano são as tietes. E as antitietes. Mas eu, tu, ele: todos caetaneiam". E nesta crônica, Caio F. diz: "Odiar Caetano, adorar Caetano - não há meio-termo." Caio F. diz que, independente de gostar ou não, se deve prestar atenção quando Caetano fala. Mais uma vez, ele diz que é para olhar para o próprio Caetano, e não os caras e coroas do ame ou odeie, mas também as quinas, aonde se amplia o olhar e se sai das ciladas maniqueístas. Certo é este raciocínio, nestas duas crônicas citadas neste parágrafo, pois, essa posição de Caio F. me remete ao meu protesto contra o sistema binário (o sim ou não cibernético), que há muito, faz parte das reflexões que faço, tanto em literatura como em filosofia. Caio F., por seu lado, é fã incondicional de Caetano Veloso, e tenta chamar o leitor para a relevância desta figura. Neste caso, Caio F. é tiete de Caetano, com certeza.
   Na hilária crônica-protesto "Um prato de lentilhas" (páginas 80 e 81), Caio F. vocifera contra os governantes do Brasil, os senhores do poder, e que tem como centro a figura do presidente da época, José Sarney. Caio F. sai dando as suas mais que justas estocadas na geleia geral da nação, estamos no ano de 1987: "Seu Zé Sarney, senhores poderosos - sempre tive nojo de política, de poder, de economia. Até hoje, não tenho a menor ideia do que raios seja uma OTN, e me sentiria muito mais à vontade dentro de um OVNI do que diante de um formulário de imposto de renda." E segue a estocada: "Nunca fui fiscal de Sarney, jamais acreditei naquela visão em economês de Pollyanna chamada Plano Cruzado" ... e depois de citar Brecht, Caio F. esbraveja: "Tem mais: QUERO escolher meu presidente. Exijo." Fica aí uma das imagens mais ácidas da época que foi o governo Sarney, sua burocracia e seus absurdos, concluindo com a vontade de democracia, que só seria consumada no ano seguinte, com a Constituição de 1988, e com as eleições para presidente de 1989. (Não aprofundando aqui a tragédia que foi a Era Collor, que é outro assunto).
   Na crônica "Nos trilhos do tempo" (páginas 94 e 95), Caio F. demonstra uma bela imagem da vida, ao se deparar com a queixa de uma amiga ao telefone, que disse a ele: "Tenho vinte e sete anos e descobri que, , até agora, tenho me alimentado de migalhas." Ao que Caio F. saca de súbito: "Mas será que isso que você chama de migalhas não será, afinal, o próprio pão?" Sua bela imagem da vida vem então com toda a força: "aos quinze anos, você espera um bolo coberto de chocolate, recheado de frutas; aos vinte e cinco, você até dispensa o recheio de frutas, mas ainda espera a cobertura de chocolate; aos trinta e cinco - ah, um pão doce mesmo serve; aos quarenta e cinco, pode ser pão comum, desses de água e sal, desde que fresquinho; aos cinquenta e cinco, o mesmo pão, só que não tem muita importância se for amanhecido - e assim por diante, até chegarmos às migalhas. Que, se você tiver uma boa cabeça, pode receber como se fosse uma daquelas tortas Martha Rocha (uma fatia para quem lembrar das tortas Martha Rocha, famosas nos anos 50)." Caio F. diz da passagem do tempo e de seu exercício de expectativas nem sempre bem-sucedidas, as desditas podem ser muitas e imensas, desde que se tenha a maturidade de ver que nem tudo é perfeito ou sai ao gosto de coisas grandiosas, embora grandezas aconteçam, mas o pequeno dia comum é o que toma a maior parte do tempo, e tudo fica mais claro na humildade desses dias.
   Por fim, cito uma última crônica, com o nome de "Venha ver os dragões" (páginas 152 e 153), que é um lamento sobre a situação dos escritores no Brasil, o ano é 1988: "Os escritores brasileiros andam meio em transe. Há um mês, em entrevista amarga ao JB, Ignácio Loyola Brandão anunciava que está parando de escrever e acusava a nova geração literária de não contestar as anteriores. De Campinas, Hilda Hilst também avisa que, após a publicação do novo livro (O caderno rosa de Lori Lamb), também para de escrever: está desiludida." Segue: "Outro dia, falando em cinema, eu dizia aqui mesmo que cada filme brasileiro é uma vitória." Em seguida, Caio F. faz seu lamento: "Escrever (e publicar) também é uma vitória. Às vezes, de Pirro. Porque não acontece nada, ou vêm críticos ... e descem a lenha ... Todos insatisfeitos, cobrando a produção de uma grande obra. Como se fosse possível, neste país onde, para (sobre) viver, o escritor precisa também ser jornalista, tradutor, bancário, roteirista, revisor, publicitário, e arrancar míseros feriados, fins de semana e noites escassas algo do "porte", digamos, de Os Buddenbrooks ou Crime e Castigo. Pode?" E, então, Caio F. anuncia sua nova publicação: Os dragões não conhecem o paraíso. Esta crônica é bem crítica das ocupações para além da escrita que povoam a rotina de vida de um escritor no Brasil. Até hoje, em 2014, não são todos os escritores que vivem só do que fazem em literatura, aliás, quase ninguém no Brasil vive de literatura, a realidade é que o sacrifício maior fica sempre para os inéditos ou "não-consagrados". Publica-se muita gente morta, e sempre foi assim.
   Recomendo, por fim, a leitura desta edição de crônicas A vida gritando nos cantos de Caio Fernando Abreu. Tais escritos são um dos exemplos da escola fabulosa de cronistas que este nosso país já produziu, gênero literário-jornalístico que se consumou como esporte nacional pelas mãos de nossos cronistas. Fica a sugestão, livro de leitura fácil e que é um excelente documento de cultura dos idos dos anos 80 e 90, uma bela viagem no tempo, eu garanto.  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/15442/14/cronicas-de-caio-fernando-abreu