PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A PESTE

O mundo em convulsão com o surto de Wuhan, das feiras animais o que abre a besta-fera viral que se espalha ininterruptamente. Os corpos se infectam desta tosse que cai do pulmão e tapa a respiração, a tragédia mundial em sua escala tectônica.

O surto, seu nome : pandemia. Na China que entra em sua convulsão mais intensa, a morte começa sua caminhada em Wuhan, os dias parecem ser ainda tranquilos, as notícias não fazem alarde, tudo corre no ritmo do mundo que labora dia a dia, ainda estamos vendo a normalidade fazendo a sua rotina, não há sinal da devastação.

Vamos ao mundo em seu tear, no entanto, a doença se instala, como um cancro, pela Europa, a vida tenta seguir, em vão, a Itália cai em sua densidade e Bérgamo sofre como num ritual macabro, estamos vendo algo histórico, a pandemia é oficial, não há mais a tranquilidade que imaginávamos de algo que ficasse quieto como um pequeno surto local.

Caem mais corpos, a doença se espalha, os rostos ficam contritos, o coração gela, a doença é fatal, a fatalidade toma todo o campo e todo o ar, o ar nos falta, vamos para casa, não há nada além do quarto, a distância vira um imperativo, não é inédito, as pestes são seculares, mas é chocante, um mundo distópico é visto como nos romances ficcionais.

Mais corpos caem, o cheiro de morte toma o plano e o noticiário é cada vez mais tétrico, a distopia é o delírio real desta morte viral, o mundo convulsiona com toda a sua dor, as famílias enfrentam o sofrimento, a prova de resiliência mundial vê na palavra esperança a mais pura forma de superação, diante do inominável, e lidando com o imponderável.

O poema é o susto, o poema é o surto, a História será contada com toda a sua dor dos que se foram sem poderem respirar, I can`t breathe! O poema não pode respirar, ele é solidário com os mortos, a tragédia vem com toda a sua força imensa de destruição, a pandemia nos toma a rotina e o pensamento, a prova de vida vem por cada dia vivido.

A saída para respirar este ar que nos falta, a pandemia fecha a respiração de todos, em seu isolamento, em seu distanciamento, a tragédia não nos deixa respirar, o ar é poluído pelo cheiro de morte, o poema não silencia, tenta respirar em meio da tragédia, as palavras tentam capturar o sentido, mas não faz sentido, o frio cego do acaso leva estes corpos, estas vidas, estas histórias, uma faca cega que corta e que ceifa, sem podermos prever a dimensão exata de seu termo.

I can`t breathe, diz George Floyd, e os respiradores tentam dar ar aos que estão internados, não há mais o que fazer a não ser precaver, esperando a vacina, lidando com as fake news que se multiplicam, os remédios falsos que são vendidos como panaceia, e o ridículo dos poderes em meio ao caos.

A doença se espalha como rastilho de pólvora, a pandemia toma a vastidão dos países, vi nestes noticiários o choro incontido dos que perderam seus entes queridos, a dor vira a rotina de um enfrentamento humano, há um tipo trágico de comunhão da pandemia, a humanidade na mesma lida diária, a doença que ceifa vidas de forma bruta e constante, as estatísticas assustadoras e a proporção gigantesca de uma coleção de mortes com nomes e histórias.

Não existe a luz da sabedoria que nos conduza a um oásis, é uma tragédia, os nomes e as histórias se vão, e tudo parece congelado esperando um novo momento de liberdade, o mundo está sob um gelo espesso em que ninguém se move, tudo em suspenso, para lidar com a saída que será a nova liberdade depois da pandemia. O poema também está congelado, sob o gelo espesso da tragédia.

A tecnologia tenta contornar com seus movimentos este gelo, a vida tenta lutar em suas saídas possíveis, as vidas possíveis da pandemia, em seu isolamento que se move em meio ao gelo terrível da morte que nos paralisa, tudo em suspenso, na verdade, e esta verdade é a pandemia que mata cada dia e os que gritam de dor, podem ser ouvidos, mas o grito é seco, também congelado, num velório estranho e distante.

A pandemia não escolhe seus mortos, não há escrita coerente da carga viral, todos estão expostos, o caminho é brutal, pedregoso, acidentado, as mutações e caminhos são tortuosos, o mecanismo aleatório do vírus em seu caminho de morte e infecção é imprevisível, o imponderável é a noção mais gritante de lidar com uma pandemia, sabermos que existe algo que nos ultrapassa e que nos exige ação inteligente. A tragédia, por sua vez, não é uma lição do universo, é a natureza que age por suas próprias leis, como quando um vírus sai de uma feira e mata meio mundo.

O poema é este, e que a sobrevida da pandemia vire muita vida nesta nova liberdade que virá.

 

Poema em prosa – 28/12/2020 – Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, LIVRO DE ANGÉLICA FREITAS

“uma visão sobre sexualidade e o feminino numa perspectiva bem esperta e leve”

O segundo livro de poemas de Angélica Freitas, “Um útero é do tamanho de um punho”, lançado em 2012, tem um humor inteligente, uma visão sobre sexualidade e o feminino numa perspectiva bem esperta e leve, indo além de convenções poéticas viciadas, uma poesia renovada, contemporânea com propriedade, com estilos misturados, uma comunicação direta que descreve e também coloca uma realidade dinâmica da própria vida em evidência, ler Angélica é estar num mundo real de uma experiência viva, não se trata somente de uma invenção poética, aqui a gente lê o mundo real.

Na escrita poética de Angélica, temos a ausência completa de pontuação e de letras maiúsculas, criação de uma língua do “i”, ditados, cantigas populares e invenção de onomatopeias, e Angélica coloca o leitmotiv do útero, e neste centro envolve toda a poesia de seu livro, no questionamento da submissão feminina em relação ao útero, em seu sentido simbólico, a significação que este órgão, esta imagem, este signo, tem em seu poder sobre o feminino.

As sete seções do livro giram neste tema de uma violência normalizada sobre o feminino, esta violência naturalizada sobre a mulher, as seções são : “Uma mulher limpa”, “Mulher de”, “A mulher é uma construção”, “Um útero é do tamanho de um punho”, “3 poemas com auxílio do Google”, “Argentina” e “O livro rosa do coração dos trouxas”. 

O poema que dá nome ao livro é um poema extenso, e o útero aparece aqui numa tensão em que esta imagem pode se voltar contra a própria mulher, mais uma vez, o feminismo, no livro inteiro, aparece numa abordagem pessoal, os ecos biográficos neste livro são sutis, mas ao mesmo tempo evidentes, uma poesia de vivência, e o feminino que é narrado com a naturalidade da própria vida, sem atavios de uma poesia mais clássica, numa linguagem direta que mostra o mundo em forma instantânea, aqui, o mundo da mulher e o leitmotiv do útero, que aprofunda, como órgão e como signo, a questão do feminino.

Os estereótipos femininos são muito bem trabalhados neste livro, e numa chave de humor própria aos temas estereotipados, e sempre num mecanismo de série, como se fosse uma enumeração destes estereótipos, para criar um tipo de extensão de significado e reflexão, Angélica faz este caminho em que estas imagens, estes estereótipos, são colocados em sua perspectiva própria e até em seu ridículo, como um tipo de retrato fiel de uma realidade crua e direta.

Angélica Freitas nasceu em Pelotas (RS) em 1973, e tem publicações como a sua estreia em poesia, Rilke Shake, também podemos citar a HQ Guadalupe. O livro “Um útero é do tamanho de um punho” foi escolhido como melhor livro de poesia de 2012 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A poeta também teve poemas publicados em revistas como Poetry, Granta, Diario de Poesía e Modern Poetry in Translation.

POEMAS :

uma mulher limpa

1 : O poema nos diz da mulher limpa que é a mulher boa, e da mulher suja, que é braba, que ladrava, no que temos : “porque uma mulher boa/é uma mulher limpa/e se ela é uma mulher limpa/ela é uma mulher boa” (...) “há milhões, milhões de anos/pôs-se sobre duas patas/a mulher era braba e suja/braba e suja e ladrava” (...) “porque uma mulher braba/não é uma mulher boa/e uma mulher boa/é uma mulher limpa”. O poema então volta ao ponto que começou, e seu looping conclui este poema no que diz na abertura, a repetição aqui é o próprio tipo de humor de Angélica neste poema.

alcachofra : O poema conta a história de um contraste absurdo, o casal formado por Amélia, aquela da música, e a mulher barbada, uma conjuntura inaudita, no que temos : “amélia que era mulher de verdade/fugiu com a mulher barbada/barbaridade/foram morar num pequeno barraco/às margens do arroio macaco/em pedra lascada, rs”. O lugar em que elas moram começa como um muquifo que não tem nada, no que vem : “primeiro a solidão foi imensa/as duas não tinham visitas/nem televisor/passavam os dias se catando/pois tinham pegado piolho/e havia pulgas no lugar” (...) “”somos livres” dizia amélia/e se atirava no sofá/e suspirava/a mulher barbada também suspirava/e de tanto suspirar/já estava desesperada”. A mulher barbada falava pouco, a relação era pouco discutida, mas um dia Amélia mandou a mulher barbada se sentar para ter uma conversa, no que temos : “a mulher barbada simplesmente não sentia/aquela necessidade de discutir/cada coisa do dia a dia/e amélia ficava grilada, então/além das pulgas e dos piolhos/era inseto pra caramba” (...) “”vivo com uma desconhecida”/disse amélia, certo dia, no barraco/”eu vou comprar cigarros”/disse a mulher barbada/”tu não vais a lugar nenhum”/disse amélia, “senta a tua bunda/peluda no sofá/que eu quero conversar”/a mulher barbada bufou/mas fez o que mandou a companheira”. Amélia questiona, aponta problemas, e a mulher barbada vai zarpar, amélia provavelmente é esfaqueada, é o que indica a coda irônica? Vejamos : “misteriosos pontinhos pretos/invadiram o espaço aéreo/dos olhos de amélia/e amélia disse : “chega, tu não me valorizas”/e ainda “levanta essa bunda peluda do sofá,/faz alguma coisa”/então a mulher barbada levantou a sua bunda peluda/do sofá e fez uma coisa : pegou um navio de bandeira grega/o kombustaun spontanya, e zarpou pra servir/na marinha. Virou o cabo seraferydo/dele ou dela não se teve mais notícia/amélia voltou para pinta preta/onde foi perdoa ... promovi ... esfaquea ...”.

mulher de

mulher de vermelho : O poema evoca a imagem clássica da mulher de vermelho, no que temos : “o que será que ela quer/essa mulher de vermelho/alguma coisa ela quer”. O poeta, a poeta, seja lá, é o alvo da mulher de vermelho, um arraso : “ela escolheu vermelho/ela sabe o que ela quer/e ela escolheu este vestido/e ela é uma mulher/então com base nesses fatos/eu já posso afirmar/que conheço o seu desejo/caro watson, elementar :/o que ela quer sou euzinho/sou euzinho o que ela quer/só pode ser euzinho/o que mais podia ser”.

mulher de valores : Aqui o retrato de uma mulher e sua família, ela é a personagem principal, o eixo de tudo, no que temos : “era bem de sagitário/e o primeiro que fazia/era dar bom dia, dia/à janela/depois acordava os filhos/e ao marido lhe dizia/deus ajuda quem madruga/seu madruga/despachava a família/e ligava o notebook/conectava-se à bolsa/de valores”. A descrição cotidiana aqui é riquíssima, no que vem : “e quando chegavam os filhos/e chegava o marido/eles comiam congelados/da sadia/às onze os despachava/e abria o notebook/pra jogar o seu mahjong/descansada/mal podia esperar/que chegasse a manhã/e reabrisse a sua bolsa/de valores/de valores/de valores”.

a mulher é uma construção

a mulher é uma construção :  A construção aqui se dá de forma geral, a mulher, e também se refere à poeta Angélica, no que temos : “a mulher é uma construção/deve ser” (...) “a mulher basicamente é pra ser/um conjunto habitacional/tudo igual/tudo rebocado/só muda a cor” (...) “particularmente sou uma mulher/de tijolos à vista/nas reuniões sociais tendo a ser/a mais malvestida” (...) “digo que sou jornalista”. E a descrição aqui ganha contorno corporal e simbólico, ao mesmo tempo, no que vem : “(a mulher é uma construção/com buracos demais/vaza” (...) “(você gosta de ser brasileira?/de se chamar virginia woolf?)” (...) “a mulher é uma construção/maquiagem é camuflagem” (...) “toda mulher tem um amigo gay/como é bom ter amigos” (...) “neste ponto, já é tarde/as psicólogas do café freud/se olham e sorriem” (...) “nada vai mudar -/nada nunca vai mudar -/a mulher é uma construção”. A coda reforça o recado, esta mulher de que Angélica fala não é um objeto ou sujeito acabado, está em construção.

ítaca : O poema empreende a viagem da odisseia em perspectiva ou versão de turista moderno, uma viagem nova, no que temos : “se quiser empreender viagem a ítaca/ligue antes/porque parece que tudo em ítaca/está lotado/os bares os restaurantes/os hotéis baratos/os hotéis caros/já não se pode viajar sem reservas/ao mar jônico/e mesmo a viagem/de dez horas parece dez anos” (...) “toda a vida você quis/visitar a grécia/era um sonho de infância”. Aqui o poema dá indicações, a poeta vira uma espécie de catálogo de turismo, e o poema, talvez adrede, nos dá esta sensação : “bem se quiser vá a ítaca/peça a um primo/que lhe empreste euros e vá a ítaca/é mais barato ir à ilha de comandatuba/mas dizem que o azul do mar/não é igual” (...) “mande fotos digitais/torre no sol/leve hipoglós/em ítaca compreenderá/para que serve/o hipoglós.”.

metonímia : O poema segue em sua análise irônica das figuras de linguagem, e este meio do poema representa algumas indicações, e se atém à leitura de um poema, de como ler um poema, no que temos : “alguém quer saber o que é metonímia/abre uma página de wikipédia/se depara com um trecho de borges/em que a proa representa o navio” (...) “a parte pelo todo se chama sinédoque” (...) “eu não queria saber o que era/metonímia”. A leitura, esta leitura, contudo, reside numa linguagem fluida, e também sutil, que não se conclui, não é um texto teórico, o sentido aqui escapa, desliza, metonímia e seu estado de fluidez semântica, no que temos : “não queria fazer uma leitura/equivocada/mas todas as leituras de poesia/são equivocadas” (...) “queria escrever um poema/bem contemporâneo/sem ter que trocar fluidos/com o contemporâneo” (...) “como roland barthes na cama/só os clássicos”.

um útero é do tamanho de um punho

E aqui temos o poema que dá título ao livro, no que temos : “um útero é do tamanho de um punho/num útero cabem cadeiras/todos os médicos couberam num útero/o que não é pouco/uma pessoa já coube num útero/não cabe num punho”. Aqui temos o reforço do título do poema, e tudo que cabe num útero, que é um mundo : “um útero é do tamanho de um punho/num útero cabem capelas/cabem bancos hóstias crucifixos”. A mulher tem um útero, a poeta Angélica afirma que tem um útero, e aqui temos a decorrência de tudo isso, no que vem : “repita comigo : eu tenho um útero/fica aqui/é do tamanho de um punho/nunca apanhou sol”. E aqui um útero livre, com seu sentido feminino, mas com uma chave irônica como se fosse livre para circular nos espaços físicos, numa viagem com passe livre nos estados schengen, por exemplo, no que temos : “apresento-lhes/o útero errante/o único/testado/aprovado/que não vai enganchar/nas escadas rolantes/nem nas esteiras/dos aeroportos/o único/com passe livre nos estados schengen”. E, por fim, o útero como palavra, e suas variações : “monossílabos empregados/em literatura sobre o útero :/um/dissílabos : feto, cérvix, pélvis, parto/trissílabos : útero, vagina, falópio/outros polissílabos : mamíferos, mesométrio/a 36 graus/em ante-verso-flexão/i piri qui”.

O LIVRO ROSA DO CORAÇÃO DOS TROUXAS :

Aqui este livrinho diz a que veio, e não tem peias, no que temos : “1 – eu quando corto relações/corto relações./não tem essa de/briga de torcida/todos os/sábados./é a extinção do estádio.” (...) “tudo é provocação?/então embrulha/tua taquicardia/num sorvete de amêndoas,/reza que derreta.”.

Aqui o poema se dá com uma subversiva em chave bem humorada, lógico, no que temos : “11 – não devias te casar/com uma subversiva/que usa mauser/debaixo do poncho” (...) “que vê um godard/e arrota coca-cola/que anota em/canto de página/de compêndios poéticos/das edições gallimard/”lindo” ou/”how true!”.

Aqui o poema faz senões novamente e finda com os dados da poeta Angélica, no que temos : “12 – não devias te casar/com ela,/ponto final./susana thénon,/filha de neurologista,/morreu de tanto/cérebro./se a história se/repetisse, toda/nanica e irônica,/as filhas das freiras/nunca se casariam,/fariam bem-casados/mas não fariam/sentido.” (...) “e a família de/angélica freitas/por fim convidaria/a sociedade/pelotense para/o enlace/de suas filhas/angélica & angélica/na catedral/são francisco/de paula/às 17 horas do/dia 38-39 (brasil)/40 (europa).”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/um-utero-e-do-tamanho-de-um-punho-livro-de-angelica-freitas

 

 

sábado, 26 de dezembro de 2020

A NAU DOS INSENSATOS

Na Stultitia Navis tinha um governo meio anárquico, o capitão levava o leme, na descrição de Foucalt, em sua História da Loucura, muitos pegavam os insanos perdidos nas cidades e jogavam neste navio, esta embarcação errava pelos mares, por toda a Europa, pouco depois da Idade Média, no começo do período renascentista. Também temos a metáfora platônica para nos retratar a loucura em sua origem poética e filosófica.

A nau dos insensatos que aqui se descreve, foi uma das embarcações que circulavam desde 1502, existia este capitão, e os marinheiros, e mais um amontoado de gente suja, agressiva, dissipada e maltrapilha, um mundo de imundície se abria entre pessoas, ratos e carne podre, o governo, portanto, naquele ambiente, existia na imaginação de seus tripulantes.

A embarcação em questão tinha sido construída em 1500, começou a navegar por um capitão naquela época para colher os loucos na península itálica, começaram a colher os insanos de Roma quando a embarcação adentrou o Reno, foram muitos, um grupo de insanos tagarelas, uma leva de insanos depravados, uma outra leva de insanos delirantes de grandeza, um outro grupo heterogêneo que reunia perfis como de fascinados, animalescos, agressivos, anestesiados, mudos, aparvalhados, arrogantes, viciados em luxúria, piores dos que os simples depravados, os que xingavam sem parar, os que diziam estultícias e faziam piadas sem nexo, os fragmentados, os que se imaginavam imperadores, e por fim, os insanos que roubavam e cometiam crimes, todos foram colocados nesta embarcação em 1501.

O reino da insanidade, então, depois de muita disputa de poder, agora tinha na figura do capitão, seu grande líder, ele se considerava imperador, era um do grupo de insanos que se imaginavam imperadores, neste grupo, este capitão era César, Imperator, ele tinha visões e alucinações, e tinha a certeza absoluta de ser uma reencarnação de Calígula. Neste grupo tinha um insano que tentara tomar o poder do leme que se dizia Nero, e sempre pensava em delírios de piromania, lutava contra uma fogueira imaginária enquanto via diante de seus olhos a sua velha Roma em chamas.

Nero discutia com um insano depravado, numa destas tardes em que a Nau navegava pelo Adriático, o capitão sempre imaginava conduzir bem o leme, o fato é que o navio estava desgovernado, entrava água no convés, os ratos pulavam entre as comidas e as carnes podres, pois ninguém naquele caos sabia manejar comida ou preparar o que fosse, havia uma convenção de bruxas reunida, estas que haviam escapado de uma sanha medieval, eram cinco velhas e três moças, os depravados corriam atrás das três moças insanas, uma dava para Nero que nem uma cabrita, os depravados ficavam com inveja, pois nenhuma daquelas moças queria saber deles.

César liderava a grande viagem pelo Adriático, as ondas cresciam, o ar marinho lhe enchia os pulmões de empolgação, sua visão da península itálica era magnífica, em seu delírio ele via com a sua ideia de imperador o desenho de um império que cobria todo o mundo antigo conhecido, ele pensava que aquelas três moças teriam que ser curradas pelo grupo dos viciados em luxúria como punição aos senadores que competiam com o seu poder e sua soberania, Nero, de outro lado, ria, com a sua bruxinha que também gargalhava e achava que o capitão não tinha mais juízo e que o leme estava na mão de um louco.

Tinha 12 marinheiros que deviam obediência ao capitão, este novo Calígula achava que eles eram seus senadores e que eram casados com as velhas e as três moças, como Nero não largava a sua bruxinha particular, o comando da tarde seguinte foi amarrar ao mastro as outras duas das moças que acabaram sendo curradas pelos viciados em luxúria por cinco tardes seguidas, uma delas desmaiou depois que um deles começou a gritar de orgasmo e saiu cambaleando como um bêbado saciado, logo se encerrou aquele horror. O capitão, Imperator, César, se deu por satisfeito e começou a provocar, desta vez, o grupo de parvos que não faziam nada o dia inteiro, e não ser ficarem cuspindo no mar como um tipo de brincadeira de crianças doentes.

Depois desta semana caótica de orgias, o capitão, Imperator, César, colocou o grupo de arrogantes para limpar a sujeira que os viciados em luxúria tinham deixado em todo o mastro, neste meio estavam os anestesiados, caídos no caminho, enquanto o grupo de insanos arrogantes chutavam estes pobres diabos para o lado, num misto de raiva e sentimento de humilhação, pois o capitão, apesar de ser um insano sem juízo, tinha um tipo de conduta que sempre colocava este grupo de insanos arrogantes em situações vexatórias, principalmente depois de ordens delirantes como esta desta simulação de orgia romana de um pseudo-Calígula.

Os estultos que diziam piadas sem nexo começaram a caçoar destes insanos arrogantes, que tentavam limpar o mastro entre estes estultos que zombavam de tudo o tempo todo, e os anestesiados que caíam pelas tabelas, desabando contra o mastro, que se encontrava imundo e de fato havia ali um cheiro deplorável de sêmen morto. O capitão, Imperator, César, por sua vez, se divertia entre os estultos, num tipo de festa das bacantes improvisada em que o teatro trágico renascia e logo se transfigurava numa peça zombeteira de Aristófanes.

Aquela peça de Aristófanes, de dar engulhos em almas sensíveis, foi uma ressaca da bacanal dos viciados em luxúria que, naquela tarde em que o grupo de arrogantes sofria mais uma humilhação de seu imperador, dormiam uma siesta embriagada como corpos saciados de um impulso primitivo e irrefletido, sem método, só feito pelo uso da força e da obsessão doentia, algo que lhes levara àquela insanidade deplorável que assustava até mesmo os coitados dos depravados, que eram mais sexistas do ego que de um vício impulsivo.

De repente, em meio à sujeira que os arrogantes lutavam para limpar, começou uma discussão barulhenta entre os insanos que xingavam sem parar e os insanos que imaginavam febrilmente que eram imperadores, mesmo que já houvesse um imperador no navio, e um outro que dizia que era Nero. Os xingadores começaram uma altercação furiosa contra estes imperadores, que davam ordens para exércitos imaginários para matar aqueles insanos que os xingavam de plebeus e nomes impublicáveis. César, Imperator, desceu de seu leme, furioso, não contra os xingadores, mas contra estes que se diziam imperadores, e chamou o grupo de insanos tagarelas para recolher com baldes enormes água do mar, o trabalho foi rápido, em questão de alguns minutos estes loucos tagarelas invadiram a briga e jogaram água do mar na cara e na cabeça destes imperadores, que se acalmaram e, pior, continuaram ouvindo xingamentos obsessivos destes insanos que gritavam para o júbilo de César, que gostava daqueles xingadores, era o seu grupo favorito naquele governo náutico e imaginário.

César, Imperator, agora estava sofrendo uma conspiração, pois Nero e sua bruxinha se juntaram aos falsos imperadores, dentre os xingadores, que idolatravam César, havia uma rixa eterna contra estes dementes que pensavam ser imperadores. Dos outros grupos de insanos, tínhamos os arrogantes, que desejavam se vingar de César, os tagarelas e os depravados apoiavam César, os viciados em luxúria idolatravam César, os estultos que falavam piadas sem nexo adoravam César, por sua vez, havia grupos que precisavam ser cooptados, tirando os anestesiados, que eram incapazes de se posicionar.

Nero cooptou os agressivos e animalescos, os aparvalhados achavam César engraçado e o apoiavam, os mudos eram tão inúteis quanto os anestesiados, pois ninguém entendia suas gesticulações, os delirantes de grandeza e os fascinados apoiavam César, os fragmentados ficavam indecisos, pois suas mentes caóticas alternavam num tipo de inda e vinda insana, e os insanos que roubavam e cometiam crimes desejavam matar César e também Nero para dominar a embarcação.

Nero intitula a sua bruxinha um tipo de rainha de Sabá, os arrogantes fizeram a corte do que seria um tipo de ritual, o barco navegava e já se aproximava de Ancona, já tinham se passado seis meses que os tripulantes da nau dos insensatos não viam terra firme, perdidos no Adriático, em movimentos irregulares de uma embarcação sem destino. César, Imperator, tinha certeza de seu poder, mal sabia da conspiração que estava sendo montada por Nero e pelos insanos arrogantes que estavam com sede de vingança depois que tiveram que limpar o mastro do barco de toda a sujeira que os viciados em luxúria haviam deixado ali.

A embarcação cambaleava num mar bem longo, ainda longe do porto de Ancona, mas já próximo de sua periferia, o leme ficava ao deus-dará, o imperador que se achava um Calígula não fazia ideia de como conduzir tudo, um marinheiro lhe ajudava e recebia ordens ríspidas de um líder que não sabia nada, só mandava. Nero pensava em cooptar mais insanos, dos que seriam colhidos em Ancona, pois ele queria tomar o leme para si e jogar César, Imperator, no mar, para afogá-lo.

Nosso pseudo-Calígula começou a ter sintomas de grandeza e queria ver Nero morto, não sabia de nada que lhe cercava, segurava seu leme cada vez mais alheio da realidade, recebendo apoio dos delirantes de grandeza, o grupo de insanos que alimentava o seu ego que vivia numa espécie de transe imperial, como se estivesse perdido na antiguidade, pensando que dominaria o mundo com uma simples embarcação. Nero, por seu turno, era tão louco e insano quanto o pretenso imperador de Roma, mas estava avançando em suas cooptações e a estadia em Ancona era para ele estratégica, pois um marinheiro já informara que lá teriam que recolher dois grupos de insanos, um de depravados e outro de estultos que contavam piadas idiotas.

O fato é que estavam gestando uma guerra que logo ocorreria dentro da embarcação, esta chega então ao porto de Ancona, lá um dos marinheiros desce para conversar e negociar com um atravessador, perto dele se encontravam acorrentados dois grupos de insanos, primeiro foram recolhidos os depravados, neste podia se ver alguns que tinham um tipo de olhar perturbador em que brilhava uma faísca de insanidade, depois o atravessador pegou o outro grupo que estava num estado assustador, eram completos idiotas que falavam besteira sem parar e que nada do que diziam fazia qualquer sentido, eles conversavam entre si e com anjos imaginários que lhes respondiam sobre Deus e o diabo com a mesma facilidade com que se faz um cálculo aritmético simples. Estes idiotas julgavam ter a chave da filosofia, quando na verdade faziam piadas de péssimo gosto.

Em Ancona havia tanto este atravessador, uma espécie de faz-tudo e traficante de pessoas, havia o comandante do porto, que ordenou que se recolhesse logo aquela gente infame de Ancona e que aquele barco partisse logo para sua viagem sem destino e sem futuro. César agradece ao atravessador, que percebe que estava falando com um louco, logo César teve surtos de imperador, os grupos novos de insanos entraram no barco, César, Imperator, ele fazia galimatias, acabou expulso do porto pelo comandante, que o mandou queimar no inferno junto com aquele bando de loucos e dementes, o atravessador, por fim, obedecendo as ordens do comandante, enxotou César daquele porto, este que era imperador apenas em seu barco, no porto não passava de um rebotalho indesejado.

A embarcação, depois de uma tensa estadia de três horas, durante uma tarde, no porto de Ancona, deixa rapidamente aquele lugar, depois da pressa do comandante e do atravessador de se livrar daquela massa humana de insanos, César, Imperator, volta a dar ordens à sua tripulação, enquanto Nero já se encarregava, junto com a sua bruxinha, de cooptar aqueles novos insanos que adentraram a sujeira daquele barco, logo aqueles depravados, famintos, se empanturraram de carne podre, entre um mundaréu de moscas que voavam em volta de suas cabeças.

César, Imperator, convoca os insanos xingadores, por sua vez, para dar uma geral na embarcação, e estes percebem movimentações estranhas e conversas enviesadas, o grupo dos insanos arrogantes estavam irados, mal disfarçavam sua porfia, eles descontavam uma certa raiva nos mudos e nos anestesiados, enquanto isso os insanos criminosos tinham um plano próprio de instaurar o caos naquela embarcação e se livrarem destes imperadores postiços e deixar aquele lugar tomado pela anarquia.

Neste ínterim, os agressivos e animalescos, que apoiavam a conspiração de Nero, começaram uma altercação e logo uma briga de socos com os tais xingadores que apoiavam César, o grande imperador estava em seu leme, sem saber para onde ia, tendo seu marinheiro direcionado o barco agora para Pescara, para pegar mais três grupos de insanos, com os quais alguns daqueles marinheiros ganhariam algumas moedas de ouro, pois o porto de Pescara queria se livrar daqueles estorvos que emporcalhavam a cidade de Pescara.

Os animalescos, nesta briga com os xingadores, pareciam cachorros loucos, uns uivavam como lobos, num tipo de licantropia imaginária, uns tipos que babavam e davam guturais como lobisomens no cio, sendo sacaneados pelos viciados em luxúria que apoiavam César. Neste ponto, ainda não havia uma guerra, César, em seu leme, estava completamente alheio ao que se passava na embarcação, seu fascínio pelo mar e pelo horizonte o deixavam numa bolha de existência feita de maresia e miragens.

Os tagarelas que apoiavam César, se juntaram aos xingadores, a coisa ficou tão insuportável, que os animalescos ficaram mais surtados do que já estavam e caíram numa posição fetal patética como se rolassem pelo chão da embarcação como pequenos bichos que urravam de dor, enquanto os agressivos, que tinham socado vários daqueles xingadores, ficaram horrorizados com o avanço daqueles insanos tagarelas e saíram para um outro canto da embarcação, exaustos com aquela babel verbal daqueles chatos de galochas.

César se juntou aos delirantes de grandeza, e fez uma festa, logo os aparvalhados ficaram fazendo momices em volta de César, que ria e se dirigia a Nero com uma ironia, sem perceber os olhares que lhe cercavam naquele momento, aquela festa era temporária, o barco agora ia com um dos marinheiros em direção de Pescara, pois a loucura era uma espécie de tráfico de pessoas, e os marinheiros da nau dos insensatos, que habitavam a embarcação, mas não eram insanos, faziam escambo de gente o tempo todo, era uma malandragem, por isso dependiam de um tipo de rei louco, para simular uma ordem que eles, os marinheiros, eram os que manipulavam, os verdadeiros donos da situação e da embarcação.

A festa demencial de César e dos delirantes de grandeza, junto com os aparvalhados que comemoravam achando que estavam com um imperador divino durou a noite toda, varou a madrugada, desde aquela tarde em que a embarcação havia deixado Ancona para trás em direção de Pescara, pois os marinheiros estavam juntando moedas de ouro par fazer um pé de meia e depois abandonar aqueles loucos à própria sorte, a nau dos insensatos estava num misto esquizofrênico de festas e rixas no mesmo espaço.

Estranhamente, César e Nero, no dia seguinte, pela manhã, levaram uma conversa amigável de uma hora, nada que mudasse a situação, uma bomba poderia explodir a qualquer momento naquela embarcação insana que rumava na direção irresistível do caos. Os marinheiros já sabiam da movimentação, e também sabiam que aquilo seria benéfico para seus interesses particulares, pois ver aqueles loucos se engalfinhando facilitaria ainda mais o domínio oculto que eles exerciam naquela embarcação, com um rei palhaço que segurava um leme sem fazer absolutamente nada, a não ser, eventualmente, disparar ordens insanas como um tipo de perversidade infantil.

César não fazia ideia da conspiração de Nero, sua ingenuidade era hilária, ao passo que Nero era um tipo de perverso que sabia antecipar movimentos como um jogador de xadrez, ele só não sabia que havia um ar maléfico em volta, que eram os insanos criminosos, estes sim, dispostos a matar e fazer o diabo pelo poder, os marinheiros sabiam que o único grupo de insanos que eles deveriam prestar atenção e temer era aquele grupo de marginais doidos e sem escrúpulos, e que viam a vida como algo que poderia ser ceifado com um golpe de martelo.

Os marinheiros sabiam sobre a esperteza daqueles criminosos, ao passo que Nero se esquecera de ver esta sua retaguarda em seu jogo de xadrez, os mestres ali, ao fim, eram os marinheiros, que buscavam um jeito de se livrar dos marginais que povoavam aquele barco, mas ainda não tinham descoberto como. Nero dominava a situação com César, os criminosos estavam para tentar dar um contragolpe em Nero, e por fim a fatura poderia ser mesmo dos marinheiros, que traficavam pessoas, eram os donos de tudo, pois não eram insanos como todos que ali habitavam.

Depois do dia, no meio da madrugada, cinco dos criminosos insanos foram até um dos quartos da embarcação, acordaram os mudos e os anestesiados, eles amarraram ao mastro dois dos mudos, os espancaram e os deixaram sangrando com uma carta com o nome de Nero, jogaram três dos anestesiados ao mar, estes morreram afogados, no dia seguinte, César vê tudo e dá ordens de amarrar e surrar Nero, foi o que os xingadores fizeram, no que começou uma confusão por toda a embarcação.

Os agressivos começaram a socar os xingadores, e sorrateiramente, acabou que depois da confusão havia anestesiados e mudos que tinham sido esfaqueados, ninguém tinha visto nada, mas era obra dos insanos criminosos. Nero, por fim, estava desmaiado, amarrado ao mastro, acusado por César de agressão aos anestesiados, que eram como mortos-vivos e não podiam se defender.

César tenta dar um novo golpe de Estado dentro da embarcação e, tomado pela fúria, manda um dos marinheiros matar Nero, este, amarrado ao mastro, acordando, pede clemência, em vão, um dos marinheiros saca uma machadinha e crava na cabeça de Nero, que morre na hora, sua companheira, a bruxinha, não resiste ao choque, e se joga ao mar, ela nada em direção de um horizonte incerto até morrer afogada.

César ainda não sabia da conspiração feita pelos insanos criminosos, que eram muito espertos, no pior sentido, e muitos dos que apoiavam Nero acabaram sendo cooptados por estes bandidos loucos, e eles sabiam que teriam que lidar com os marinheiros, pois estes exerciam um tipo de poder mental, pois tinham o tesouro da embarcação e guardavam toda a documentação do mesmo com eles, nisto César dava ordens gritando para a embarcação seguir imediatamente para Pescara.

Chegando em Pescara, César desce junto com um dos seus marinheiros, este negocia com o atravessador, sob o olhar impaciente do chefe do porto, neste ponto César delira alheio à negociação espúria que ocorria entre seu marinheiro e o atravessador, era um grupo grande de acorrentados, um conjunto de insanos paranoides e insuportáveis, que lotariam mais uma parte daquela embarcação decadente, o marinheiro fecha negócio e embolsa uma pequena fortuna sem César perceber, ele achava que eram mais súditos para o seu império romano imaginário, este Calígula patético que agora se vangloriava de ter matado Nero.

Em meio da carne podre, os paranoides matam a fome, os agressivos ficam perturbados, um grupo destes paranoides começam a delirar contra vários dos insanos da embarcação a esmo, num tipo de alucinação coletiva, estes paranoides começam a ver insetos por toda a parte invadindo a embarcação, um destes era um velho que tinha tomado um chá alucinógeno e nunca mais voltara ao normal, este era o líder do grupo e sugestionava todo o resto e logo estes começam a ver aranhas e lacraias percorrendo a embarcação.

Os agressivos, que agora se juntavam aos insanos criminosos, se revoltam com aquele circo e resolvem fazer mais uma carnificina, doze dos paranoides são espancados e jogados ao mar, já entrava a noite, a embarcação já deixara Pescara há algumas horas, e o mar estava particularmente revolto, caía uma tempestade, uns insanos tagarelas se penduravam no mastro como se estivessem em meio de uma festa macabra, os xingadores gritavam contra os agressivos mais uma vez, e esta noite tempestuosa gerou mais uma pequena guerra em que os insanos criminosos começavam a ver meios de tomar o poder na embarcação que agora seguia para Bari, os marinheiros ficavam quietos, cuidavam do tesouro e contavam dinheiro em meio da confusão.

Em Bari, os marinheiros planejavam fazer uma grande negociação, pois o mais experiente deles pretendia vender parte de uns tecidos que estavam guardados na embarcação e ele conhecia um mascate que ficara rico em Bari e estava disposto a comprar a embarcação para usufruto dos marinheiros que trabalhariam para ele depois que os loucos da embarcação fossem descartados, e o plano para o tal mascate era a cargo dos marinheiros, eles teriam que vender estes loucos em outro país ou simplesmente se livrar desta carga humana como fosse, pois o mascate queria que a embarcação fosse usada para venda e compra de víveres por todo o mar Adriático.

De Pescara até Bari, a embarcação navegou por doze dias, neste ínterim, César tinha surtos de grandeza e de poder, os insanos criminosos começaram então a encher o ego e a cabeça de César de sonhos delirantes, de que todos ali ficariam ricos, mas dependia de César dar ordens para matar os seus marinheiros, os criminosos manipularam César até Bari, os marinheiros perceberam a movimentação estranha e um cheiro de intriga no ar, o mais experiente dos marinheiros logo ligou o alerta de que entre a venda da embarcação em Bari e a solução para tirar os loucos desta teria que ser rápida, ele então pensou em navegar a embarcação até a Dalmácia para tentar vender os loucos para serem escravizados por mercenários. Os insanos criminosos, no entanto, já tinham atentado que havia um tesouro dentro da embarcação e começaram a caçá-lo toda madrugada enquanto todos dormiam, o que fizeram por doze noites até Bari sem êxito.

A embarcação, depois de doze dias de navegação tumultuada, em meio de muitas tempestades, duas quedas em que um insano anestesiado e outro mudo caíram ao mar e se afogaram, chega ao porto de Bari, lá esperava o mascate junto com o atravessador e o comandante do porto, ali havia um punhado de dez insanos tagarelas que tinham sido expulsos da cidade pelo prefeito de Bari por perturbação pública, claramente insuportáveis, e que o atravessador, irritadíssimo, teve que segurar estes tagarelas acorrentados por dez dias seguidos de sol a pino no porto de Bari, e agora poderia se ver livre daqueles estorvos com a tal nau dos insensatos.

A embarcação então leva este pequeno grupo de tagarelas insuportáveis e o marinheiro, à revelia de César, que se encontrava cada vez mais delirante e alheio da realidade, toma o leme ao passo que César imaginava comandar tudo, e este marinheiro então segue até a Dalmácia, viagem que duraria um mês, e dizia a César que a embarcação seguia de volta à Roma para a sua coroação e retorno a seu império continental. César se empolga, e começa a ver seu reino de Roma novamente, ele imaginava a sua suposta vida passada como Calígula, e delira fatos históricos que nunca ocorreram.

A embarcação enfrenta novas tempestades, e dois dos insanos criminosos, no meio de uma madrugada, finalmente encontram o tesouro que os marinheiros guardavam e embolsam tudo em panos e lençóis improvisados e amarram com cordames que sobraram do soerguimento do mastro na construção da embarcação. Na manhã seguinte, um dos marinheiros dá falta do tesouro e diz aos outros marinheiros que eles tinham sido roubados e que tinham perdido tudo, eles desconfiam do grupo de criminosos, mas ficam com medo de enfrentá-los, e preferem esperar a chegada à Dalmácia para se livrar daquela gente e amealhar novamente alguma pequena fortuna vendendo massa humana para ser escravizada por mercenários.

Os insanos criminosos agora queriam matar César, e um dos marinheiros então faz um acordo final com este grupo, em que estes receberiam uma quantia na Dalmácia, fortuna que ficaria entre os marinheiros e eles, os criminosos, com a condição de deixar César vivo e não provocar o caos, pois toda aquela gente suja da embarcação seria vendida para mercenários e que a embarcação agora era propriedade do mascate que estava no porto de Bari, e eles usariam esta para vender e comprar víveres diversos, uma vez que a nau dos insensatos seria aposentada, o mascate disse aos marinheiros que eles teriam uma nova fonte de renda, pois era uma solução para os marinheiros se livrarem daquele trabalho caótico de tomar conta de loucos dentro de um navio para juntar fortuna.

A viagem agora vinha de um cheiro de carne podre cada vez mais insuportável, os insanos tagarelas ainda devoravam aquele misto de carne com mosca e gordura velha, já apareciam mais ratos na embarcação, tudo estava cada vez mais sujo, os marinheiros já sentiam engulhos frequentes e quando chegassem na Dalmácia, além de se livrarem daquele bando de insanos sujos e maltrapilhos, teriam que limpar tudo e jogar aqueles restos de carne de boi podre que estava há meses na embarcação e que era alimento destes infames delirantes que não sabiam o que comiam, apenas matavam a fome.

Os insanos agressivos disputavam com os ratos os nacos de carne, tudo parecia cada vez mais caótico, a presença abstrata de César era a única fonte virtual de ordem, mas não era nada, pois César piorava seu estado de demência e não conseguia mais ordenar uma frase inteira coerente, o marinheiro traduzia falsamente as suas falas para os insanos da embarcação, para tentar manter um mínimo de paz naquele cenário que desabava.

A tempestade estava cada vez mais forte nas madrugadas seguintes, cinco insanos anestesiados se afogaram no mar Adriático naquele intervalo, os marinheiros tentavam domar o leme e direcionar o mastro, o plano deles e dos criminosos tinha apaziguado uma possível guerra dentro da embarcação, e César delirava ser agora o dono dos mares, filho de Netuno, e que Éolo soprava o seu vento na direção de seu destino glorioso em Roma como o imperador do mundo, Calígula em uma versão requentada e patética, sem reino e sem seu palácio, com uma embarcação decadente e cheia de vermes, carne podre e loucos sem destino e que poderiam terminar na mão de mercenários.

César era um rei oco, tinha a dimensão existencial de um anão sem visão nenhuma, era um palhaço involuntário que só não era notado como tal por quem era tão insano como ele, os marinheiros o tinham na conta de um idiota fracassado e que cairia que nem uma jaca em seu sonho de esponja, não sobraria nada de sua empáfia imaginária de um rei de hospício. E o mascate já tinha dado ordens de que este César chato e insuportável seria despachado para os mercenários da Dalmácia junto com toda aquela plebe rude de insanos e desvairados.

Um dos marinheiros, que conduzia o leme de fato, levava a embarcação cada vez mais rápido na direção da Dalmácia, neste lugar sujo e com carne podre começavam a aparecer cada vez mais ratos, os insanos animalescos começaram a se misturar a estes ratos, uma porcaria imensa, enquanto os insanos viciados em luxúria voltavam a currar as duas moças que agora se encontravam num estado de torpor.

César delirava, no entanto, numa tarde de sol, com o mar Adriático relativamente calmo, ele sai de seu leme, desce até uma outra parte da embarcação que estava infestada de ratos, começa a remexer na carne podre que ali havia e, no meio dos ratos e das carnes, aparece uma serpente, que pula e dá o bote em César, ele leva três picadas seguidas bem na cara, esta incha, ele começa a ter a pele gangrenada, em dez minutos ele morre envenenado.

A embarcação agora estava sem governo, logo todos ficam sabendo da morte de César por picada de serpente, os insanos criminosos isolam esta serpente no mar, que some na imensidão do Adriático, e decidem que o marinheiro que comandava o leme era o novo líder da embarcação que, a esta altura, se aproximava da Dalmácia.

O cheiro de podre se misturava à maresia, o mar Adriático brilhava na aurora de um dia que seria de céu limpo, a embarcação enfim chega na Dalmácia, lá o grupo de marinheiros desce da embarcação, e um dos marinheiros que dominava o turco começa uma conversa com membros do porto da Dalmácia, lá eles ficam sabendo aonde estavam alojados os mercenários.

A embarcação estava ancorada no porto, com os insanos dentro achando que tudo estava bem, mas logo aparecem um grupo enorme de mercenários que invadem a embarcação e fazem todos aqueles insanos de prisioneiros para serem escravizados, todos saem acorrentados com violência, muitos apanham, no meio da confusão, uns morrem com golpes de adaga e cimitarra, dois são decapitados com cimitarra, as moças são estupradas e mortas pelos mercenários, os marinheiros embolsam uma fortuna e dividem o butim com os insanos criminosos.

Na manhã seguinte a embarcação deixa o porto da Dalmácia para seguir de volta a Ancona para comprar víveres para revenda em Roma, o mascate, que estava em Bari, já tinha orientado tudo e sabia de todas as mercadorias e preços, e o que estes marinheiros teriam que comprar.

Quando a embarcação deixa então o porto da Dalmácia, os mercenários seguem com os insanos escravizados até o Império Otomano, lá eles são revendidos, uns morrem de fome num trecho de deserto, e ao fim, já em meio a um outro grupo de mercenários, estes otomanos, os insanos que haviam sobrado são mortos e esquartejados, sendo jogados para os urubus numa praia abandonada.

A embarcação, agora comandada pelos marinheiros e pelos insanos criminosos, segue até Ancona, uma semana depois, numa madrugada, os insanos criminosos acabam matando todos os marinheiros e dominam a embarcação, ficam com todo o butim obtido com os mercenários da Dalmácia, passam mais cinco dias, e numa noite gelada e tempestuosa, o mar Adriático se agita ferozmente e a embarcação, a antiga nau dos insensatos, naufraga, e os insanos criminosos, que agora dominavam a embarcação, todos morrem afogados, era o fim desta a aventura de loucos.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Contos Psicodélicos – Volume II – conto pronto em 26/12/2020

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CUARASSY GUARÁ

“A vida vivida e espontânea que nos guiava, este era o tipo de conhecimento comum do qual compartilhávamos”

Meu primo era uma pessoa fácil de gostar, conhecia muita gente, com ele aprendi e, certamente, ele também aprendeu comigo. Nos dávamos bem, sua vida foi marcada, no entanto, por uma tragédia em seu começo, o câncer que matou sua mãe, minha tia, e agora este assassinato covarde que ceifou a sua existência aqui conosco na Terra.

Me faz pensar, ou melhor, perceber, que a Vila de Itaúnas se encontra em franca decadência, lugar de que ele tanto gostava e em que aconteceu seu assassinato por um cara esquisito que nunca tinha ouvido falar.

Este cara esquisito não é músico, é assassino, e que tinha comprado uma arma recentemente, e num enfrentamento físico com meu primo, logo sacou esta arma de fogo e efetuou os disparos, nas costas, que não deram chance de reação ou sobrevivência nesta última noite de sexta-feira, 18 de dezembro de 2020.

A família Medeiros e a família Del Nery estão em choque, no meu caso é a segunda vez que passo por uma tragédia familiar resultante de morte por assassinato por arma de fogo, pois meu irmão mais novo, Alex, morreu de tiros num assalto no Rio de Janeiro, em 8 de janeiro de 2015.

E agora recebo mais esta notícia chocante e revoltante, meu irmão tinha 24 anos, meu primo tinha 39 anos, vou fazer 39 e penso em como tudo é tão frágil e delicado. De como o mundo ainda é povoado por alguns covardes que causam tanta dor. Este assassino está para ser preso e espero que seja assim, que tudo seja feito dentro das regras do Estado de Direito.

Na família Medeiros, perdemos nosso segundo jovem adulto, primeiro foi minha tia Luciana, bem nova, de câncer, agora seu filho, Cuarassy, de 39 anos, num lapso, tudo muito rápido. Eu disse que não ia ver o tal vídeo, mas acabei vendo uns trechos sem querer, ao conferir uma reportagem de televisão pelo WhatsApp.

Conheço aquilo tudo, andei muito pela vila, lugar em que não piso nunca mais, não pelos moradores, mas pela memória que isto pode me suscitar daqui para a frente. A certeza é de que não vou mais para Itaúnas, é o terceiro homicídio na vila em poucos dias. É preciso atenção do poder público.

Disse que era fácil gostar de Cuarassy, e eu era um dos que me dava bem com ele, uma vida intensa, sem paradeiro, mas que estava em todos os lugares. Meu primo sabia viver, a capoeira foi sua escola, junto com a rua, nós nos juntávamos e formávamos uma amálgama.

Nossa relação se completava na identidade de família e de algumas semelhanças que nos unia, o sorriso frouxo dominava, algumas noites, algumas praias, a vida vivida e espontânea que nos guiava, este era o tipo de conhecimento comum do qual compartilhávamos.

Um dia vou te ver lá no céu, isso de certa forma me deixa sereno. Em meio de uma tragédia, esta imaginação fértil sobre a vida após a morte que me dá esperança de que nada tem fim.

Link de música : Legião Urbana : Vento No Litoral : https://www.youtube.com/watch?v=OR1_dmqAoGY

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/cuarassy-guara

 

 

 

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

DESCARTES E A MACONHA – FINAL

“seria menos grave para a grandiosidade francesa admitir que Descartes veio à Holanda experimentar maconha”

Descartes estava distante de uma França governada pelo cardeal-ditador Richelieu, onde a liberdade intelectual estava comprometida, desfrutando com seus amigos na Holanda de sua liberdade. No livro de Pagès temos novamente a posição de Tobie sobre o filósofo.

Na descrição de Pagès, temos : “Um ar de liberdade com algumas nuvens de fumaça ... Que efeito fazia sobre Descartes e seus amigos, esse “tabaco”, que pronunciavam “tabak”, como se usava naquele século? Tobie, o expatriado, diz que os colocava em um estado “estupefaciente””. No parágrafo seguinte, Pagès especula : “Não vejo ao que ele faz alusão. Procuro e me lembro de uma passagem da “Primeira Meditação” : “Meu espanto é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.”

Aqui coloco o trecho em que o autor Pagès refaz o percurso de Descartes na sua descoberta clássica do cogito : “Noto que essas Meditações Metafísicas, escritas em 1641, contam uma curiosa história. Um homem decide cortar progressivamente todo contato com a realidade exterior ao ponto de duvidar da existência das coisas. A obscuridade invade progressivamente sua consciência. Depois, de repente, um flash, uma iluminação, uma deliciosa certeza : eu existo. A revelação de um ponto fixo.”

Segue Pagès : “Lembro que meus mestres ensinaram que Descartes era o “filósofo da consciência” mas sem indicar com precisão qual. Consciência modificada ou consciência vigília? A do cogito é muito agitada.

É uma cena de teatro, com efeitos de ilusão, e mesmo sedutores (o Gênio Esperto enganador) onde o herói surge da sombra como uma faísca. Não precisa esperar Hegel e sua fenomenologia. Em Descartes a consciência é um drama, dividido em episódios. Seis atos, seis meditações ... Essa consciência tem sua história, sua aventura, suas “sombras” e suas iluminações.”

Pagès refaz a cena do quarto, em que Descartes fez as suas meditações : “Sei que avanço em terreno inimigo. Estupefação, iluminação ... Ainda estamos no campo do racional? Mas não posso deixar de pensar na célebre cena do quarto aquecido. Descartes conta esta história no Discurso, no início da segunda parte, porém muito brevemente : “Eu estava então na Alemanha ... Permaneci o dia todo trancado sozinho num quarto aquecido, onde tive todo o tempo de me entreter com meus pensamentos”.

Ora, esse dia de clausura não foi nada de sossegado, como permite supor este trecho. Uma tempestade! Um transe místico! É o que na realidade aconteceu. Sabemos disso por uma narrativa pormenorizada que Descartes faz desse dia numa obra da sua juventude intitulada Olympica, hoje perdida, mas que conhecemos graças a Baillet e Leibniz, que a leram.”

Pagès segue este relato impressionante desta iluminação de Descartes : “Que noite a de 10 de novembro de 1619! Nosso fidalgo alugou, nos arredores de Ulm, um “poêle”, quer dizer um quarto aquecido “à moda alemã”. Um fogão de faiança alimentado do exterior por um cômodo intermediário assegura um calor constante, sem fumaça, nem corrente de ar, e sem que o hóspede seja perturbado pelos criados carregados de lenha.

Naquela noite – pois a aventura é noturna - , Descartes teve visões, sonhos, alucinações : “Ele se cansou de tal forma que o fogo subiu-lhe ao cérebro, e ele caiu numa espécie de entusiasmo que afetou sua mente abatida e o colocou em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões”, conta Baillet.”

Na narração de Pagès, foi nesta tempestade cerebral ou mental que Descartes encontrou a sua nova filosofia, a sua ciência admirável, aqui tal espírito cartesiano é praticamente um daimon, pode ser um djinn, um espírito da floresta alemã, o filósofo neotomista Jacques Maritain chamava esta noite de Descartes de “Pentecostes da razão”. Leibniz, contudo, não fez cópias deste Olympica de Descartes, pois uma obra de razão originada de um evento completamente irracional talvez lhe incomodasse.

Pagès então conhece uma filósofa belga, de nome Bonnie S., amiga de Tobie, e vem a conversa sobre Descartes e sua descoberta meditativa, depois que Pagès expôs seus argumentos, temos o seguinte : “Bonnie escutava fumando um cigarro; Tobie, fechando os olhos, querendo me fazer acreditar que dormia. O que não era verdade, pois me interrompeu quando evoquei o “estupor” descrito nas Meditações.

_ Sabe que, ao duvidar da existência dos homens que ele vê passando na rua e se perguntar se não se tratam de manequins de chapéu, Descartes tem o mesmo raciocínio dos psicóticos? Evitei a digressão e continuei minha exposição. Quando expliquei que Descartes tinha provavelmente fumado tabaco mas que, quanto a maconha, ainda era preciso encontrar provas, os olhos de Tobie piscaram com um clarão mefistofélico : _ Você está perdido! Caiu na ratoeira! À partir do momento em que admite que Descartes fumou tabaco, está admitindo que ele fumou maconha!”

Pagès segue então a obsessão de Tobie, e nos narra : “Tirou do bolso um livro intitulado L`Embarras des Richesses, abriu-o numa página já marcada e leu o seguinte : “O costume que tinham os cervejeiros de adicionar aos seus produtos substâncias alucinógenas ou suscetíveis de provocar transes, tais como as sementes de memendro preto, de beladona a maçãs espinhosas, remonta pelo menos ao fim da Idade Média ...

Roessingh, o historiador da indústria holandesa do tabaco, não afasta a possibilidade de que uma parte da mercadoria poderia ser “temperada” com Cannabis Sativa, bem conhecida dos holandeses, que tinham viajado ao Oriente e à Índia.” Esse trecho foi extraído de um livro respeitado e sério, concluiu mostrando-me a capa do livro de Simon Schama.”

Pagès segue ao final de sua narrativa, nas palavras da filósofa belga, que lhe diz : “Gosto de Descartes, pois escrevia só ocasionalmente. Vocês censuram sua obra por ser fragmentária. De fato, ele não perdeu seu tempo construindo um sistema e estava com razão. A posteridade se encarregou disso.

Compreendo sua saída, seu adeus àquela mundanidade parisiense que engole o intelectual e o transforma em saltimbanco. A liberdade de pensamento não é somente aquela concedida pelo Estado, mas aquela que você mesmo toma em relação a si mesmo, a seus mestres, a seus semelhantes.

A partir de um certo nível de notoriedade, não se pensa mais. O sucesso faz bem ao ego mas prejudica o cérebro. Prestamos serviço pós venda. O pensamento que precisa de amadurecimento e de solidão é impossível na sua ilustre balbúrdia. Os intelectuais que se deixam fascinar por Paris devem abandonar toda e qualquer esperança.”

Então Tobie se dirige a Pagès : “_ No final, ao fazer as contas, seria menos grave para a grandiosidade francesa admitir que Descartes veio à Holanda experimentar maconha. Quando se procuram outras razões, é mais desastroso ainda.”

(FIM)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/descartes-e-a-maconha-final 

 

 

 

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

MILÍCIAS ARMADAS NOS ESTADOS UNIDOS

“Os Proud Boys enfrentaram antifas em muitos protestos violentos nestes últimos dois anos.”

Nos EUA, o movimento paramilitar é avalizado pela Segunda Emenda da Constituição. Ratificado em 1791, o texto diz : “Sendo necessária uma milícia bem ordenada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo a possuir e portar armas não poderá ser violado.”

WOLVERINE WATCHERS

Este grupo foi o que fez o fracassado plano de sequestrar e derrubar a governadora democrata do Estado de Michigan, nos Estados Unidos, Gretchen Whitmer, que foi impedido e desbaratado pelo FBI (polícia federal americana), em que esta milícia buscava nisto um movimento civil maior, uma guerra civil.

O FBI relata que seis homens dos treze detidos planejavam realizar um julgamento por traição contra Whitmer, que virou alvo dos negacionistas do coronavírus, pois a governadora tinha estabelecido medidas rigorosas de controle e mitigação da pandemia, medidas estas que acabaram sendo derrubadas por decisão de um juiz.

Segundo o FBI, o Wolverine Watchers discutia a derrubada de governos estaduais que, segundo eles, violavam a Constituição dos Estados Unidos. De acordo com o FBI, a milícia queria reunir 200 homens para invadir o prédio do Capitólio local e fazer reféns, incluindo a governadora, e tal plano se daria antes das eleições presidenciais norte-americanas. A milícia também tinha planejado ataques com coquetéis molotov contra policiais, e compraram uma arma de choque, também levantando fundos para obter explosivos e equipamento tático.

Os acusados do plano contra a governadora de Michigan tinham realizado treinamento em vários Estados, usando armas, e tentando criar bombas. A procuradora-geral de Michigan, Dana Nessel, disse que, eles não são acusados apenas de sequestro, mas também de afiliação a gangues e que davam apoio material a terroristas. A expectativa principal destes milicianos, por fim, era estabelecer uma guerra civil.

PROUD BOYS

A milícia Proud Boys foi fundada em 2016 pelo militante de extrema-direita canadense-britânico Gavin McInnes, como um grupo de extrema direita, contra os imigrantes e com integrantes exclusivamente masculinos, realizando um histórico de violência contra grupos de esquerda, ganhando fama em confrontos políticos, usando de violência, sobretudo, contra ativistas negros. Os Proud Boys enfrentaram antifas em muitos protestos violentos nestes últimos dois anos.

O nome Proud Boys se refere a uma citação que aparece no musical Aladdin, da Disney. Eles usavam as camisas polo Fred Perry e bonés vermelhos com a inscrição "Make America Great Again", slogan da primeira campanha de Trump à presidência dos Estados Unidos.

Os Proud Boys elaboraram uma plataforma que inclui propostas como fechar fronteiras, armar a população norte-americana, acabar com as políticas de bem-estar social. Depois de diversos incidentes, o Facebook, Instagram, Twitter e YouTube baniram o grupo de suas plataformas, com o grupo migrando para redes sociais menores.

A Fred Perry, marca inglesa, por sua vez, anunciou que decidiu eliminar a peça mais conhecida de seu catálogo após vendê-la por mais de 50 anos. A icônica camisa polo preta com duplas de faixas amarelas na gola e nas mangas se tornou desde 2016 uma espécie de uniforme informal dos Proud Boys.

REDNECK REVOLT

O Redneck Revolt é um grupo político norte-americano de extrema esquerda, e que é composto por membros que vêm sobretudo da classe trabalhadora branca, que defende o porte de armas, e seus membros usam armas ostensivamente, com posições contra o capitalismo, e são também antirracistas. O grupo foi fundado no Kansas em 2009, como um desdobramento do John Brown Gun Club, um projeto de treinamento de armas de fogo e defesa da comunidade que foi fundada em Lawrence, Kansas em 2004. O membro fundador é Dave Strano.

O site do grupo inclui declarações contra o capitalismo, o Estado-nação e a supremacia branca. O site também defende a necessidade de revolução. O grupo inclui anarquistas, comunistas, libertários e republicanos. Não há uma declaração do grupo nem como liberal e nem como parte da esquerda, a definição dada é a da prática de um socialismo libertário, não se considerando um grupo antifa.  

NOT FUCKING AROUND COALITION

Not Fucking Around Coalition (NFAC) é uma organização paramilitar dos Estados Unidos, uma milícia supremacista negra, e o grupo nega a sua associação tanto com os Panteras Negras, como com o movimento Black Lives Matter. O grupo tem a liderança reivindicada por John Jay Fitzgerald Johnson, conhecido como Grand Master Jay.

O NFAC tem a sua primeira aparição documentada num protesto em 12 de maio de 2020, perto de Brunswick, Geórgia, sobre o assassinato em fevereiro de Ahmaud Arbery, mesmo que tenham confundido o grupo com os Panteras Negras. Em 4 de julho de 2020, a mídia local informou que cerca de 100 a 200 membros da NFAC, em sua maioria armados, marcharam pelo Stone Mountain Park perto de Atlanta, Geórgia, pedindo a remoção de um monumento confederado. Em 25 de julho de 2020, por sua vez, foi informado que mais de 300 membros do grupo estavam reunidos em Louisville, Kentucky, para protestar contra a falta de ação contra os oficiais responsáveis pelo tiroteio de março de Breonna Taylor.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/milicias-armadas-nos-estados-unidos

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

MARÍLIA GARCIA EM SEU DESLOCAMENTO POÉTICO

“A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições, reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv vertiginoso”

O trabalho poético de Marília Garcia tem um caráter híbrido de uma prática formal bem elaborada e um instinto experimental, um misto de domínio do código linguístico com um universo de colagens e transposições, como, por exemplo, colocar notícias reais em perspectiva poética e realizar um verdadeiro jogo com estes elementos tão objetivos.

Em Câmera Lenta, Marília retoma um acabamento estético presente em seu livro inaugural, e mantém a pesquisa ou caminho teórico e empírico de seus livros posteriores. Neste livro Câmera Lenta, agora, Marília estabelece um diálogo intenso com referências internacionais, e ainda com a escrita não criativa de Kenneth Goldsmith, e na poesia brasileira, seu diálogo evidente é com Ana Cristina César, como disse em textos anteriores, tendo também ecos de Manuel Bandeira.

Numa contemporaneidade que rompe com uma realidade constante e homogênea, agora num espaço fragmentado e em que reina a descontinuidade, o híbrido criado entre estas transições do mundo real e do mundo virtual, feita numa velocidade vertiginosa, opera uma nova percepção da realidade que, na poesia de Marília, aparece como a mediação dos dispositivos eletrônicos nesta modificação da percepção e da velocidade dos acontecimentos.

Os poemas de Marília Garcia, em seu livro Câmera Lenta, tem uma voz lírica que monta e remonta discursos próprios e de outros, operações de colagens, deslocamentos, transposições, fazem uma geografia acidentada e metódica, ao mesmo tempo, nesta construção poética deste livro, uma usina que parece o mecanismo de uma indústria, imagens duplicadas, uma percepção da realidade em modo vertiginoso e numa espécie de looping para ficar tonto.

Esta voz lírica de Câmera Lenta coloca repetições, formulações inéditas de estrutura, reiterando a liberdade de pesquisa da poesia atual, como nunca houve na História, e o mosaico criado em Câmera Lenta reverbera, como uma câmara de ecos, rebatendo palavras e situações, recursos heterogêneos de composição poética operando numa complexidade que tenta espelhar de modo metódico e fragmentado, ao mesmo tempo, a realidade contemporânea.

Nesta prática poética de Marília, portanto, além do tema das máquinas e da velocidade, aparecem pequenas imagens obsedantes, como a hélice, por exemplo. A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições, reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv vertiginoso. Um cenário particular ganha densidade de percepção, e as ideias de lugar e de deslocamento também são os caminhos da obsessão temática de Marília Garcia.

POEMAS :

EPÍLOGO

ESTRELAS DESCEM À TERRA (DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE UMA HÉLICE)

1. : Marília inicia este poema imenso, feito em várias partes, já colocando em evidência o tema e a obsessão particular que será demonstrada, a hélice, e tudo que isto implica, no que temos : “queria terminar falando de uma hélice/que eu vi na semana passada” (...) “era uma hélice grande demais/para o tamanho do avião e eu nunca/tinha visto na vida um avião de hélice”. Marília objetiva a sua curiosidade, no que vem : “uma hélice serve para deslocar/mas uma hélice pode paralisar” (...) “quando vi a hélice na semana passada/eu pensei nas nuvens de verdade/e num poema do carlos drummond de andrade”. A relação da hélice com a memória de Marília remete a um poema de Drummond, no que a poeta segue em sua reflexão poética : “naquele dia eu estava indo/para um festival em juiz de fora/e eu ia ler um poema chamado/“malaysia airlines”. O poema que Marília irá ler remete a uma notícia, aí é que começam as suas colagens e transposições, que vão dar o caráter de sua dicção neste poema vertiginoso, no que temos : “ao chegar na pista do aeroporto/vi a hélice e na mesma hora pensei :/“não posso entrar nesse avião”/eu congelei e não podia mais/me deslocar” (...) “e eu queria essa hélice em movimento/cruzando o céu e levando a gente/para a frente/mas nem sempre” (...) “então começo com um trecho do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/chamado “malaysia airlines””.

 2 . : Marília segue, e agora enuncia o poema que é uma notícia, no que temos : “no dia 16 de julho de 2014,/um boeing 777 da malaysia Airlines/saiu de amsterdam para kuala Lumpur/com 298 pessoas a bordo./ele estava em voo cruzeiro/quando caiu na vila de grabovo/no leste da ucrânia.”. Marília segue nesta notícia fria que irá se tornar uma ideia poética, no que vem : “os enormes pedaços do boeing 777/da malaysia Airlines/se espalharam por um campo de trigo.”. O acidente aéreo não é apenas uma notícia insular, aqui logo aparece o contexto político, e a complexidade natural de todo fato, no que temos : “o leste da ucrânia estava sob controle/de separatistas pró-rússia e desde março/o espaço aéreo sobre a ucrânia estava fechado.” (...) “suspeita-se que o boeing 777/tenha sido abatido por um míssil/quando atravessava em voo cruzeiro/o espaço aéreo ucraniano.”. E, como fato, tem consequências, no que temos : “a chanceler da alemanha disse/que era necessário um cessar-fogo/no leste da ucrânia.” . E aqui entra o concurso de sua memória, Marília finaliza a enunciação do que diz ser o começo de seu poema e se transporta para juiz de fora, e o tema da hélice que aparece neste influxo do acidente aéreo, no que vem : “esse era o começo do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/mas na hora em que vi a hélice do avião/na pista do aeroporto viracopos” (...) “lembrei do final do poema/que dizia assim :/“um dos comissários do voo MH 17/só estava trabalhando naquele dia/porque tinha trocado de voo com um colega./a esposa deste comissário/- também comissária da malaysia airlines –/tinha feito uma troca parecida/alguns meses antes e tinha folgado/num dia em que deveria estar voando/no voo MH370, desaparecido no oceano índico.” (...) “no momento da queda do voo MH17,/um avião levava o presidente putin/do brasil para a rússia.” (...) “a aeronave presidencial/fez uma rota semelhante/à do voo da malaysia airlines/e as duas aeronaves cruzaram/o mesmo ponto e o mesmo corredor/com menos de uma hora/de diferença.”. Os mistérios do acaso, e como ele evita uma tragédia e provoca outras, eis o enigma do acontecimento, os deslocamentos particulares de corpos e vidas neste mistério que envolve um acidente do qual uns escapam e outros morrem, o jogo real do poema.

3 . : O poema evoca a hélice, o diálogo com um amigo, e a ideia nevrálgica da impossibilidade de se deslocar, a angústia de Marília em seu poema, no que vem : “quando vi a hélice/na semana passada/me lembrei de uma pergunta/que um amigo tinha me feito/na véspera da viagem/ele se referia a um poema em que eu contava/que não tinha conseguido embarcar num voo/porque meu passaporte estava quase vencido/ele fez a seguinte pergunta :/será que eu não estaria falando na verdade/sobre a impossibilidade de deslocar?” (...) “ao escrever eu estava preocupada/com o deslocamento”. O deslocamento evoca uma geografia, no que temos : “ao escrever é possível pensar/em termos geográficos :/a gente constrói uma cartografia/e pouco a pouco/vai desenhando e/descrevendo linhas/formas curvas montanhas acidentes/caminhos e superfícies”. O deslocamento se faz na linguagem, poesia, no que temos : “o que era de fato/deslocar/na linguagem?/será que eu estava deslocando/ou só falando em deslocar?” (...) “nesse momento de superfícies abertas/como lidar com a impossibilidade/de sair do lugar?” (...) “seria mesmo o mundo/plano? ou em vez disso/uma superfície acidentada/cheia de barreiras/muros comportas fronteiras/e linhas demarcadas/que podem conter/o fluxo?”. A impossibilidade de se deslocar aqui se confronta com linhas de demarcação, fronteiras, a tentativa de movimento e suas contingências fazendo o objeto de angústia deste poema.

4 . : O poema opera novamente com deslocamentos e as obra do acaso, no que vem : “na semana passada/eu ia para um festival em juiz de fora/e tinha de me deslocar :/no aeroporto de congonhas/eu tomaria um ônibus rosa/da empresa azul/para ir até o aeroporto de campinas/em campinas eu tomaria um avião/para o aeroporto zona da/mata/que fica a uma hora de juiz de fora”. As constatações, no que segue : “antes de sair de casa olhei no mapa/para ver onde tomar o ônibus em são Paulo/cheguei lá em cima da hora/e o ônibus estava vazio/depois de dez minutos nada” (...) “fui ao guichê da empresa/dentro do aeroporto/e descobri que o lugar onde eu estava/não era o ponto de ônibus/e sim o estacionamento de ônibus/e que o ônibus que eu ia pegar já tinha/saído”. O lapso de Marília, que opera aqui como um tipo de gancho poético, no que segue : “disse para o funcionário da empresa/que o mapa do site estava/errado” (...) “o funcionário abriu o mapa no site/e me mostrou que não tinha/nada errado/eu me enganara ao ler o mapa/o ponto ficava no lugar oposto/ao que eu tinha imaginado”. A desorientação, produto de um erro de percepção cartográfica, eis o jogo de Marília e tudo o que isto implica na geografia intensa deste poema, no que vem : “ele me disse/que eu estava achando/que o leste era o oeste – ou o norte era o sul/já não fazia diferença/eu tinha perdido o ônibus” (...) “porque não soube ler o mapa” (...) “mas naquele momento/eu ainda não sabia que o avião tinha hélice”. E a pergunta obsedante sobre a hélice, como o leitmotiv deste poema imenso dividido em várias partes.

5 . : O poema, a imagem da hélice, e novamente um poema de Drummond vem à memória da poeta Marília, no que vem : “quando vi a hélice/na semana passada/lembrei de um poema/do drummond chamado/“a morte no avião””. A ideia de movimento e sua relação direta com ação, a poeta Marília coloca a sua reflexão dentro do poema, no que vem : “eu queria falar/sobre movimento e ação :/queria pensar em como o deslocamento/da linguagem/caso da colagem e da citação/poderia nos levar a ver as coisas de forma diferente”. A colagem e a citação também como deslocamentos e transposições do poema, o movimento aqui numa operação de linguagem, no que temos :  “eu queria falar aqui/sobre movimento/mas só consigo pensar na hélice que paralisa” (...) “eu queria contar/de um sonho recorrente” (...) “que era assim :/eu estava voando numa/máquina voadora/e de repente ela caía/como no poema do drummond". A queda da máquina voadora e esta imagem evocando mais uma vez um poema de Drummond, no que temos :  (...) “despencava do alto/furando as nuvens/na vertical” (...) “ a cada sonho/era capaz de uma hora/furar o chão/e provocar uma catástrofe”. A catástrofe da queda, furando em vertical o ar, eis o encerramento desta parte do poema sobre a hélice.

6 . : Marília fala de seu poema sobre a empresa de aviação novamente, e a notícia aciona de novo o leitmotiv, o deslocamento todo do poema se dando pela hélice, tema obsedante deste poema imenso, e a colagem de uma notícia de acidente aéreo e suas inúmeras relações temporais e de lugares com todos os seus enigmas, no que temos : “o poema “malaysia airlines voo MH 17”/tinha sido escrito a partir de notícias/tiradas do site G1/assim recortei o texto do site/inseri quebras de verso/excluí informações/trocando algumas coisas de lugar” (...) “durante o processo/tentava entender o acidente/a partir do tom frio das notícias” (...) “também queria ver algo/que para mim/não estava claro/queria olhar de outro lugar/mudar o foco”. As colagens da notícia, feitas por Marília, agora a levam à reflexão do próprio poema e sobre a linguagem, no que vem : “seria possível deslocar as palavras/de modo a produzir alguma coisa/que eu não estava vendo?”. Este deslocamento da linguagem como um deslocamento da própria percepção, no que temos : “eu tentava reaprender a ver :/recortar e colar selecionar/uma palavra para colar em outro ponto/como numa ilha de edição”. E a poeta Marília se debruça sobre o poema, e se coloca a escrever, no que vem : “ao escrever o poema/tentava repetir os gestos que fazemos/ao escrever nas várias telas hoje :/deslocar com a mão” (...) “e eu fiquei tentando escrever um poema/com a mão                     e eu fiquei tentando pensar/no que vai acontecer” (...) “com esses deslocamentos            de agora/entre tantas telas”. O deslocamento aparecendo em seu caráter obsedante aqui para Marília, produto de toda a sua reflexão poética.

7 . : A poeta Marília evoca agora um livro sobre a poesia, e este coloca o tema da fala-aventura, aqui, para Marília, mais um mote dela para seu grande poema sobre o deslocamento, sobre a hélice e o movimento, encarado aqui no mundo real e no mundo da linguagem, isto é, como tema poético, no que temos : “lendo um livro da silvina rodrigues Lopes/anotei uma citação que dizia o seguinte : “para a poesia continuar/é preciso construir falas-aventuras/que abram caminho através do desconhecido”. Tais modos da fala-aventura serve para abrir caminhos, a respiração aqui se dá como poesia e ação, no que vem : “um dia fui falar este texto que vocês estão lendo/em um evento chamado/poesia e ação/depois fui falar este mesmo texto/em um evento chamado/cinema-ao-vivo/e depois em outro evento chamado/em obras”. Os eventos se sucedem e seus temas estão interligados numa mesma ideia, a ideia de Marília para o seu grande poema, no que segue : “e eu não sabia como desenvolver a tópica da aventura/esqueci de dizer que quando apresento/este texto ao vivo vou projetando/várias imagens enquanto leio” (...) “vocês podem pensar na imagem que quiserem/enquanto prosseguimos/mais ou menos assim :/cada pedaço de texto como este/deve ter uma ou mais imagens número/correspondentes”. E a notícia do acidente aéreo, aqui como proposta de tema para a poesia, ideia da poeta Marília, no que temos : “para o acidente/da malaysia Airlines/basta digitar no google o número do voo/e pegar alguma imagem” (...) “de todo modo/depois dessas apresentações/encontrei enfim o texto da silvina rodrigues Lopes/e voltarei a ele na parte 14”.

8 . : Marília reflete então se esta notícia sobre um acidente aéreo tinha produzido de fato um poema, no que temos : “quando enviei o poema da malaysia airlines/para uma revista que tinha me encomendado/um texto não consegui chamá-lo de “poema”/expliquei aos editores que era/uma “aventura”/o tema da revista era o amor fati/amor que se tem ao fado           ao destino/e a pergunta que eu queria fazer sobre o acidente era :/como aceitar na vida o imponderável?”. O poema era, na verdade, uma aventura, e o amor fati tem seu confronto com o imponderável, o senhor das situações, no que temos : “de um jeito ou de outro/eu estava tentando explicar e justificar/o que estava fazendo/sentia um desconforto duplo :/um pouco pelo texto            um pouco pela expectativa/que temos do que é um poema”. A expectativa de um poema nem sempre dá em um poema, e a pergunta que aparece, enfim, é do que se trata um poema : “afinal/do que falamos quando falamos de poesia?/ela me perguntou/e eu paralisei”.

9 . : Marília apresenta publicamente o poema sobre o acidente aéreo, e uma pessoa presente no público confunde seu nome por duas vezes, no que temos : “apresentei este texto pela primeira vez/em 2014 depois que terminei a leitura/uma pessoa levantou da plateia e veio me fazer/uma pergunta” (...) “ele foi até o microfone/que ficava em frente ao palco/e perguntou :/qual é o seu nome?/e eu disse/marília/e ele disse como?/e eu repeti/e ele falou/maria” (...) “mas                   voltando à pergunta/mesmo sem poder se dirigir a mim pelo nome/ele seguiu no microfone/e falou :”. O questionamento se dá então em torno da hélice, no que vem : ““você disse que quando vê uma hélice/sente medo/queria saber o que você sente/quando vê uma turbina””. O poema de Drummond aparece, e segue : “eu olhei para ele e fiquei sem ar/eu pensei na hélice do drummond e paralisei” (...) “depois me contaram/que aquele era o ernesto neto um artista plástico/do rio que gosta de pendurar bolas de chumbo/em tules de lycra” (...) “na saída/encontrei a veronica stigger/e ela me disse :/mas a turbina é uma hélice coberta” (...) “e eu fiquei me perguntando/se não ver a hélice fazia alguma diferença”. O que era uma hélice, afinal, encerra o questionamento desta parte do poema.

10 . : O poema segue agora um périplo histórico e o que isto implica na ideia motora do poema de Marília, no que segue : “Em 1912 o artista francês/marcel duchamp foi ao salão de tecnologia aeronáutica/na frança e ficou deslumbrado/quando viu uma hélice contam que ele chegou no salão/olhou para o objeto e disse :” (...) ““a pintura acabou/quem poderia fazer uma hélice assim com mais perfeição?”” (...) “no ano seguinte ele fez o seu/primeiro ready made roda de bicicleta”. O ready made e seu mote, de novo, que se volta para a hélice, no que vem : “e eu fiquei imaginando/como deveria ser a hélice que o marcel duchamp/viu no salão de aeronáutica” (...) “e então eu mesma fui ao salão de aeronáutica/de paris que existe até hoje/e passei um dia andando/entre hélices e drones e máquinas voadoras/e enquanto olhava para os dispositivos de/deslocamento fiquei tentando imaginar/como seria a hélice do duchamp/teria sido uma hélice como aquelas do salão?/uma hélice natural como a da wikipedia?/ou uma estrutura helicoidal como a dos dnas?”. O salão de aeronáutica e a especulação insana em torno da hélice de Duchamp encerram esta parte do poema.

11 . : Segue Marília em suas descrições históricas, agora com o clássico helicóptero do renascentista Leonardo Da Vinci, no que segue : “Em 1480 leonardo da vinci/começou a fazer uma série de desenhos/para máquinas voadoras/uma delas era um protótipo de helicóptero/feito de madeira e tela/ele tinha uma hélice que deveria ser impulsionada/por duas pessoas pedalando juntas”. O questionamento em torno da hélice ganha uma proporção épica, este grande poema é um percurso imenso, e aqui se torna uma vertigem histórica, no que temos : “os helicópteros não têm hélice/o que gira neles se chama rotor/mas a máquina voadora de da vinci/era um helicóptero de hélice/e se chamava “la hélice””. Marília segue, aqui, agora como uma espécie de poeta-historiadora, no que segue : “os helicópteros ainda levariam séculos/para sair do papel e só nos anos 1940/alcançariam a estabilidade/com fins militares” (...) “de todo modo/o primeiro voo de helicóptero bem-sucedido/ocorreu nos anos 1910 na frança/e foi na mesma época/em que marcel duchamp/viu aquela outra hélice/no salão da aeronáutica”. E a coda desta parte faz um arremate histórico retomando Duchamp e o salão de aeronáutica.

12 . : Aqui, nesta parte do poema, Marília opera com o acaso um mistério cheio de significado, uma lógica desconhecida que provoca e evita desastres, dividindo a fronteira entre a vida e a morte, e a poeta Marília se torna, aqui, uma agente deste deslocamento de corpos, e de conservação da vida, no que vem : “Em 2009 eu estava na frança/e minha mãe foi me visitar/meu padrasto comprou a passagem para ela ir/no voo 447 da air france” (...) “ele me ligou/para confirmar os dados do voo :/minha mãe sairia do rio de janeiro/no domingo 31 de maio/e chegaria em paris na segunda-feira 1° de junho”. Eis uma ação pontual, aparentemente banal, mas que opera um deslocamento de sobrevivência e de salvamento, no que segue : “mas eu preferia que ela chegasse/no domingo e não segunda/para ir ao aeroporto buscá-la/então perguntei ao meu padrasto/se ele poderia trocar a passagem por outra/que saísse na véspera” (...) “meu padrasto trocou a passagem/que tinha comprado pra ela no voo 447 da air france/por uma passagem pela TAM saindo do/rio de janeiro na véspera” (...) “minha mãe saiu do rio de janeiro no sábado 30 de maio/e chegou no aeroporto charles de gaulle/no domingo 31 de maio” (...) “o voo 447 da air france/saiu do rio de janeiro como previsto/no domingo 31 de maio/e caiu no meio do oceano atlântico/na madrugada do dia 1° de junho”. O acidente aéreo acontece, e um pequeno milagre do deslocamento coloca o acaso de uma ação na sua misteriosa confluência com forças desconhecidas, a imagem poética aqui coloca o deslocamento, também, como agente de ações milagrosas, no que segue : “dia 1° de junho era feriado na frança/e eu não tive compromissos de trabalho/como imaginei que teria quando pedi/ao meu padrasto para trocar a passagem/da minha mãe”. Uma ação simples da poeta Marília operando na linha demarcatória entre a vida e a morte.

13 . : Marília coloca em dúvida, de novo, o estatuto de poema, este que foi escrito sobre o acidente aéreo, no que vem : “quando enviei para uma revista o poema/sobre o acidente da malaysia airlines/senti um desconforto/porque havia um desencontro entre o que era o texto/e a ideia que a gente tem do que é um poema”. Ela descreve como fez este poema, dá detalhes, no que temos : “durante a escrita/tinha tentado justapor as cenas/de acaso e engano/me fazendo algumas perguntas : engano/será que o avião tinha sido mesmo abatido/por engano? como lidar com o/acaso/como nesta história do comissário que decide voar/num dia em que deveria folgar?/seria possível escrever sobre isso?”. A questão do acaso como uma questão filosófica nevrálgica aparece aqui no poema como um marcador de toda a sua reflexão, junto com esta ideia obsedante sobre o deslocamento, e o fetiche deste grande poema, a hélice, no que temos : “ao ver a hélice no avião que ia para juiz de fora/não podia deixar de pensar/na explosão do avião da malaysia airlines/e no acidente da air france/do qual minha mãe tinha escapado”. Marília propaga suas ideias fixas, e as coloca numa oficina, dando isto ao mundo, no que temos :  “dois meses depois de fazer esse poema/dei uma oficina em salvador e pedi como exercício/um poema feito a partir do recorte/das mesmas notícias tiradas do site do G1”. O exemplo do poema de um aluno de sua oficina literária opera aqui mais um looping, o deslocamento se aprofunda aqui, criando uma nova camada, aqui, em um poema dentro de outro poema, no que temos : “o saulo moreira fez um poema/misturando essas notícias com a morte da carol/prima dele que tinha sofrido um acidente/de carro na semana anterior :/para carol”. Este poema, contudo, é sobre o mesmo tema dominante, mas opera dentro de seu próprio entorno, misturando fatos, no que temos : “carol caiu na ucrânia perto da fronteira com a Rússia/carol ficou sozinha durante quase 17 horas quase 24 horas/numa estrada próxima da casa da minha mãe/minha mãe mora em Itapetinga” (...) “carol amava minha mãe/carol voava normalmente,/sem registros de problemas, até desaparecer do radar/carol não morava em Itapetinga/minha mãe mora em Itapetinga”. A descrição se torna chocante, ao fim : “carol quebrou/o pescoço/ninguém ouviu o barulho dos ossos” (...) “há fatos difíceis de analisar/154 holandeses 43 malaios incluindo tripulantes e 2/Crianças 27 australianos 12 indonésios incluindo uma/Criança 9 britânicos 4 belgas 3 filipinos 1 canadense e/carol”.

14 . : Marília retorna a seu habitat e evoca a hélice em toda a sua intensidade, que é o tema do poema, para além da ideia de deslocamento, no que temos : “apresentei este texto uma vez/em guarulhos cidade ao lado de são paulo/onde fica o maior aeroporto do país” (...) “deve ser um dos lugares com mais hélices e turbinas/do continente essas hélices todas/servem para fazer a gente se deslocar/e esse lugar serve para receber/as pessoas que se deslocam”. O aeroporto de Guarulhos e sua profusão de hélices, lugar que opera deslocamentos brutos e intensos, tanto dos grandes aviões como do som ensurdecedor de suas turbinas, no que temos : “estou querendo falar de guarulhos/para lembrar que há cinco anos eu mesma/cheguei naquele aeroporto para morar/em são paulo e nessa época nunca tinha visto/um avião de hélice”. O enigma do fio invisível que conduz todas as coisas e o deslocamento feito pelas hélices, tudo interligado, e temos : “eu queria falar da hélice quando gira/e produz ação e eu queria falar do caminhão/se deslocando com a mudança/e eu queria falar do poema/caminhando junto com esse fio invisível/que faz mover as coisas”. A ação faz mover as coisas, atuar neste deslocamento é a participação e a ação direta da poeta e de sua poesia, de sua vida, a poeta Marília avança, se movimenta, e reflete sobre estes movimentos brutais de um aeroporto, no que vem : “e do céu repleto de zepelins/em movimento                  e das ondas sonoras/que atravessam o ar”. E retoma a ideia poética da fala-aventura, no que temos : “buscando diferenciar as falas-aventuras/das outras falas/a silvina rodrigues lopes escreve :” (...) ““se aceitarmos que há na vida das pessoas/e na cultura dos povos/aquilo de que não se pode falar/e aceitando que o poemático é uma das manifestações disso/devemos admitir que há uma fala que não fala de” (...) “eu queria que fosse uma fala que fala com/talvez uma fala de aproximação e de encontro”. A fala-aventura encontra e se encontra, o poema se faz como uma coda final deste deslocamento que chega ao seu destino, feito de ação, movimento e hélice.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-em-seu-deslocamento-poetico-1