“tal riqueza e tesouro de Góngora ganha cidadania castelhana
inconteste”
INFLUÊNCIA GONGÓRICA
Na fortuna crítica do escritor Góngora temos autores que iam
aos extremos de aprovação e desaprovação da literatura gongórica, ou seja,
temos críticos e apologetas. Portanto, nunca se ficou indiferente diante deste
escritor, o que sempre foi um ótimo sinal, e isto também diz muito de sua
relevância histórica e de sua influência enorme até em escritores que pela
frente condenavam o gongorismo, mas eram ao mesmo tempo devedores desta
presença desejada e indesejável ao mesmo tempo.
No levantamento que se faz da obra gongórica, temos acusações
e defesas do estilo poético de Góngora. Díaz de Rivas, que o chamava de “Homero
espanhol”, nos esclarece muito acerca de tal literatura e nos aponta muito bem
as motivações da condenação do estro gongórico, o que passava pelas palavras
peregrinas que renovavam o léxico, mas que para um crítico negativo poderia
passar por pedantismo ou afetação, ou ainda artificialismo linguístico, uma
maneira de expressão forçada, rebuscada e no extremo antinatural.
Ainda temos como elementos de suposta condenação de Góngora
tanto os tropos frequentes como as numerosas transposições, resultando num
estilo hermético e de difícil exegese. E Díaz finaliza a sua análise citando
também a dureza metafórica de algumas passagens, a distribuição estilística
muitas vezes desigual e desequilibrada, e ainda temos a mescla extravagante de
termos mundanos ou normais com imagens possuídas de palavras sublimes, e também
temos a repetição ad nauseam de palavras e frases, hipérboles e exageros,
extensão grande de certos períodos, e por fim a redundância ou cópia em demasia
no dizer poético.
Por outro lado, ainda citando a crítica que se teceu em torno
da obra gongórica, esta não é mais de grande valia, em sua maioria, pois se
trata de um domínio crítico que se estendeu pela análise de autores latinos ou
renascentistas, já não fazendo muito sentido para nós contemporâneos, pois
depende de contextos específicos. E aqui lembramos também que já houve a
reabilitação de Góngora, depois de seu período de proscrição até o início do
século XX, como figura histórica de vulto, independentemente do que lhe cabe de
acusação ou apologia.
O que cabe à crítica atual diante de Góngora é mais uma
questão de tornar coerente todos os seus processos de estilo, o que fica mais
evidente, uma vez que estamos diante de obra acabada, portanto, passível de uma
visão mais universal e até menos apologética ou acusatória como em contextos de
polêmica pretérita que tal obra sofreu até em demasia. E uma das chaves agora
utilizadas é a maneira da escrita gongórica, que deriva de Petrarca, o que leva
a considerar o gongorismo, por fim, um petrarquismo espanhol nos princípios do
século XVII.
CULTISMOS
As palavras introduzidas na língua por via culta, chamados de
cultismos, no caso de Góngora, este se utilizou de vocábulos já usados anteriormente.
Temos aqui em Góngora uma riqueza renovadora do léxico que alimentou o vazio de
originalidade da maior parte dos escritores do século XVII, e nem se citarmos
os originais, pois até havia, estes também não saíram do grande círculo de
influência do léxico gongórico, incluindo em tal poder persuasivo até mesmo
escritores inimigos do poeta Góngora.
O mais impressionante é que a influência lexical gongórica
enche a língua literária do século XVII de cultismos, e temos na mudança até
radical de gosto do século XVIII a permanência de uma operação milagrosa do
estro gongórico, isto é, a língua vulgar ganhou potência com um léxico erudito
desta herança gongórica, e mesmo com um rival escandalizado como Quevedo,
também um dos grandes, tal riqueza e tesouro de Góngora ganha cidadania
castelhana inconteste.
Góngora se torna então o cultor do léxico renascentista e que
o leva, como dito, para o que veio depois, salvando do olvido tal erudição e
que se torna corrente até do vulgo. Temos como exemplos de repetição de
metáforas imagens como sóis por olhos, rubis por sangue, ouro por cabelos,
prata ou cristal por água, já comuns na poesia renascentista, que ganham corpo
em Góngora, ao ponto de tais recursos passarem do terreno da metáfora por si
mesma e tendo no estro gongórico uma qualidade de representação real, como
substantivos normais. E temos, por fim, como qualidades precípuas em Góngora
tanto suas metáforas como a sua sonoridade.
POEMAS :
SOLEDADES (FRAGMENTOS)
[Dedicatória] ao duque
de béjar : O ditado da musa revela os passos do peregrino, este torto,
instável, errante : “Passos de um peregrino são errante/Quantos me ditou versos
doce musa :/Em solidão confusa/Alguns perdidos, outros inspirados.” Os gigantes
da fábula despertam as feras e o eco da trompa aqui expõe : “Feras te expõe,
que – no tingido chão/Mortas, pedindo términos disformes –/Espumosos coral
cedem ao Tormes! :”. Segue o poema, o sangue lavado no rio Tormes, no que vem :
“seu metal/Sangue suando, em tempo fará breve/Purpurear a neve –/E enquanto dá
o monteiro serviçal/Ao duro roble, ao pinho levantado/- Êmulos que viventes são
das penhas –/As formidáveis senhas/Do urso que até beijava, atravessado,/A
haste de teu dardo sobranceiro,”. E o Duque é aqui o homem esclarecido, logo
ganha a fama já de Euterpe agradecida, no que temos, por fim : “todo o
majestoso/Do assento à divindade tua devido -./Ó Duque esclarecido!” (...) “Que,
generoso nó, honre não rudo/Liberdade, da sorte perseguida :/Que a tua piedade
Euterpe, agradecida,/Seu canoro dará doce instrumento,/Quando não sua trompa a
Fama ao vento.”
SOLEDADE PRIMEIRA
[O náufrago. Chegada a
uma cabana pastoril] : O poema floresce na estação de Touro, o firmamento aqui
aparecendo em metáfora como campos de safira, no que temos : “Era do ano essa
estação florida/Em que o mentido roubador de Europa” (...) “Luzente honra do
céu,/Em campos de safira pasce estrelas;/Quando o que ministrar podia a copa/A
Júpiter melhor que o jovem do Ida/_ Náufrago e desdenhado, além de ausente _/Lacrimosas
de amor doces querelas/Dá ao mar :”. O mancebo, melhor que Ganimedes, o jovem
do Ida, dá ao mar doces e lacrimosas queixas, e temos em seguida aqui o vento
sul, que é inimigo Noto, e na nau se salva por um pedaço este Arion, que vai
pelo mar, no que vemos : “Do sempre na montanha oposto pinho/Ao inimigo Noto,/Piedoso
membro roto/_ Breve tábua _ delfim no desempenho/Foi para o incauto viajor
marinho/Que a uma Líbia de ondas seu caminho/Fiou, e a vida a um lenho./Pelo
Oceano, pois, antes sorvido/E logo vomitado/Não longe de um escolho coroado/De
secos juncos e de quentes plumas/_ Alga no todo e espumas _/onde de Jove a ave/Achara
ninho, foi ele acolhido.”. Este Arion que é tragado pelo mar e depois
devolvido, temos aqui o náufrago colhido pela ave de Júpiter, a águia, no que
vem : “Quanto em roupa do jovem já despido/Oceano foi bebido,/Ele o faz às
areias devolver;/E ao sol a estende logo,/Que, com só a lamber/Sua doce língua
de abrandado fogo,/A investe lento e, com um agir macio,/A menor onda chupa ao
menor fio.” (...) “Vencido, enfim, o cume/_ Entre o mar sempre soante/E entre o
campo calado/Árbitro igual e inexpugnável muro _ ,/Com pé já mais seguro/Declina
ao vacilante/Breve esplendor de maldistinto lume : Lampião de algum colmado/Que
sobre o ferro está, naquele morto/Golfo de sombras a anunciar o porto.” E o
náufrago enfim descansa na cabana que nos parece ancorada em incerto golfo de
sombras, no que temos adiante o anúncio do porto.
[Presentes que levam os
serranos a umas bodas] : A multidão alegre de serranos diante das bodas , e a
vitelinha, com flores nos chifres, tais como raios do sol (Febo) já serenavam
na sua fronte, no que vem : “Vulgo lascivo errava” (...) “Ao tempo que _ de
flores impedido/O que já serenava/A região de sua fronte novo Febo/_Purpúrea
vitelinha, conduzida/Por sua mãe, não menos enramada,/Entre albogues se oferta,
acompanhada/Por moçada florida.” // Um dos rapazes baixa com galinhas
(cristadas aves), e temos adiante o núncio canoro (o galo), no que vem : “Um
deles as pendentes somas graves/De negras baixa, de cristadas aves,/Cujo
lascivo esposo vigilante/Doméstico é do sol núncio canoro,”. Outro dos rapazes
leva na nuca o peso de muitos cabritos, no que temos: “A cerviz, outro a preme/Com
a cópia manchada/De cabritos os mais retouçadores,/Tão gulosos, que geme/O que
menos roçar consegue as flores/Da grinalda adequada.” // O poema, aqui em
partes, segue o coelhinho se assusta, pois seus iguais são levados aos montes,
e como troféus, por serem despojos, por estarem mortos, e segue o poema, aqui,
enquanto o peru ao deus do casamento é destinado às mesas, no que vem : “Não o
lugar fragoso,/Não o trado torcido, não, da terra/Privilegiou na serra/A paz do
coelhinho temeroso;/Troféu é já seu número num ombro/Que Himeneu a suas mesas
te destina./Se fardo não e assombro./Tu, ave peregrina,/Arrogante _ pois belo
não _ fulgor/Do último Ocidente :/Penda o rugoso nácar dessa frente”. E o poema
segue, nesta parte, seu último ponto, no que temos : “Emulação e afronta/Mesmo
dos berberescos,/Naquela zona de alcantis brutescos.” // A Aurora que chora se
pergunta se é néctar, e a abelha temos aqui que suga flores e chupa cristais (o
orvalho), no que temos : “O que chorou a Aurora/_ Se é néctar o que chora _/E,
antes que o Sol, enxuga/A abelha que madruga/A libar flores e a chupar
cristais,/Em celas de ouro fluente, em favos tais,/O boião exibia/Que um
montanhês trazia.”. E conclui aqui o poema, no que temos : “Que a contragosto
ia,/E com razão : que o tálamo condena/A sombra até de gala tão pequena.”
[Fragmento do discurso
sobre os descobrimentos marítimos; O estreito
de Magalhães e as ilhas da Oceania] : O poema segue ao zodíaco, este aqui que
do pinho (nau) glorioso, pois este percorreu o mar, tal como o carro de fogo do
Sol o céu, temos no poema o estreito de Magalhães abraçador dos oceanos
Atlântico e Pacífico, e a nau Vitória que pende no templo úmido de Netuno, no
que vem : “Zodíaco depois foi de cristal/Ao pinho triunfal/Êmulo vago do carro
de fogo/Do Sol, este elemento/Que havia quatro vezes sido um cento/Dossel ao
dia e leito à noite logo,/Quando encontrou de fugitiva prata/A estreita dobradiça
abraçadora/De um oceano a outro, sempre uno,/Ou as colunas beije ou a
escarlata,/Tapete para a aurora./Esta, pois, nave, agora,/No templo úmido do
deus Netuno/Pende encalhada, e é uma imortal memória,/Por nome de Vitória.”.
POEMAS :
SOLEDADES (FRAGMENTOS)
[Dedicatória] ao duque
de béjar
Passos de um peregrino são errante
Quantos me ditou versos doce musa :
Em solidão confusa
Alguns perdidos, outros inspirados.
Ó tu, que de venablos impedido
- Muros de abeto, ameias de diamante -
Bates os montes que, de neve armados,
Gigantes de cristal medo ao céu dão;
Onde o corno, pelo eco repetido,
Feras te expõe, que – no tingido chão
Mortas, pedindo términos disformes –
Espumosos coral cedem ao Tormes! :
Arrima a um freixo o freixo – seu metal
Sangue suando, em tempo fará breve
Purpurear a neve –
E enquanto dá o monteiro serviçal
Ao duro roble, ao pinho levantado
- Êmulos que viventes são das penhas –
As formidáveis senhas
Do urso que até beijava, atravessado,
A haste de teu dardo sobranceiro,
Ou o sagrado supra do azinheiro
_ O augusto do dossel; ou da nascente
A alta sanefa, todo o majestoso
Do assento à divindade tua devido -.
Ó Duque esclarecido!
Regra em suas ondas tua fadiga ardente,
E, teus membros entregues ao repouso
Sobre o torrão de grama não desnudo,
Deixa-te um instante achar do pé acertado
Que seus errantes passos tem votado
À cadeia real de teu escudo.
Que, generoso nó, honre não rudo
Liberdade, da sorte perseguida :
Que a tua piedade Euterpe, agradecida,
Seu canoro dará doce instrumento,
Quando não sua trompa a Fama ao vento.
SOLEDADE PRIMEIRA
[O náufrago. Chegada a
uma cabana pastoril]
Era do ano essa estação florida
Em que o mentido roubador de Europa
_ Meia-lua nas armas de sua frente
E o Sol os raios do pelame seu _
Luzente honra do céu,
Em campos de safira pasce estrelas;
Quando o que ministrar podia a copa
A Júpiter melhor que o jovem do Ida
_ Náufrago e desdenhado, além de ausente _
Lacrimosas de amor doces querelas
Dá ao mar : que condoído,
Às ondas foi e ao vento
O mísero gemido
Novo e doce de Arion instrumento.
Do sempre na montanha oposto pinho
Ao inimigo Noto,
Piedoso membro roto
_ Breve tábua _ delfim no desempenho
Foi para o incauto viajor marinho
Que a uma Líbia de ondas seu caminho
Fiou, e a vida a um lenho.
Pelo Oceano, pois, antes sorvido
E logo vomitado
Não longe de um escolho coroado
De secos juncos e de quentes plumas
_ Alga no todo e espumas _
onde de Jove a ave
Achara ninho, foi ele acolhido.
A areia beija, e da desfeita nave
Aquela parte pouca
Que o expôs na praia ofereceu à roca :
Deixam-se as próprias penhas
Lisonjear com agradecidas senhas.
Quanto em roupa do jovem já despido
Oceano foi bebido,
Ele o faz às areias devolver;
E ao sol a estende logo,
Que, com só a lamber
Sua doce língua de abrandado fogo,
A investe lento e, com um agir macio,
A menor onda chupa ao menor fio.
Nem bem, pois, de sua luz os horizontes
_ A erguerem desigual, confusamente
E montes de água e pélagos de montes _
Desdourados os sente,
Quando _ o estrangeiro mísero integrado
No que do mar já redimiu irado _
Entre espinhos crepúsculos pisando,
Penhas que até igualara mal, voando,
Ave que brava se ala,
_ Menos cansado que confuso _ escala.
Vencido, enfim, o cume
_ Entre o mar sempre soante
E entre o campo calado
Árbitro igual e inexpugnável muro _ ,
Com pé já mais seguro
Declina ao vacilante
Breve esplendor de maldistinto lume :
Lampião de algum colmado
Que sobre o ferro está, naquele morto
Golfo de sombras a anunciar o porto.
[Presentes que levam os serranos a umas bodas]
Vulgo lascivo errava
_ Ao juízo do mancebo,
O jugo dos dois sexos sacudido _
Ao tempo que _ de flores impedido
O que já serenava
A região de sua fronte novo Febo _
Purpúrea vitelinha, conduzida
Por sua mãe, não menos enramada,
Entre albogues se oferta, acompanhada
Por moçada florida.
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Um deles as pendentes somas graves
De negras baixa, de cristadas aves,
Cujo lascivo esposo vigilante
Doméstico é do sol núncio canoro,
E _ de coral barbado _ não de ouro
Cinge, senão de púrpura, turbante.
A cerviz, outro a preme
Com a cópia manchada
De cabritos os mais retouçadores,
Tão gulosos, que geme
O que menos roçar consegue as flores
Da grinalda adequada.
...............................................................
Não o lugar fragoso,
Não o trado torcido, não, da terra
Privilegiou na serra
A paz do coelhinho temeroso;
Troféu é já seu número num ombro
Que Himeneu a suas mesas te destina.
Se fardo não e assombro.
Tu, ave peregrina,
Arrogante _ pois belo não _ fulgor
Do último Ocidente :
Penda o rugoso nácar dessa frente
No colo teu _ safira de crespor _
Sobre dois ombros larga vara aponta
Em cem aves cem bichos de rubins,
Tafiletes calçados carmesins,
Emulação e afronta
Mesmo dos berberescos,
Naquela zona de alcantis brutescos.
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O que chorou a Aurora
_ Se é néctar o que chora _
E, antes que o Sol, enxuga
A abelha que madruga
A libar flores e a chupar cristais,
Em celas de ouro fluente, em favos tais,
O boião exibia
Que um montanhês trazia.
A orelha não excedia
O chifre pululante
Do gamo vicejante,
Que a contragosto ia,
E com razão : que o tálamo condena
A sombra até de gala tão pequena.
[Fragmento do discurso sobre os descobrimentos
marítimos; O estreito de Magalhães e as ilhas da Oceania]
Zodíaco depois foi de cristal
Ao pinho triunfal
Êmulo vago do carro de fogo
Do Sol, este elemento
Que havia quatro vezes sido um cento
Dossel ao dia e leito à noite logo,
Quando encontrou de fugitiva prata
A estreita dobradiça abraçadora
De um oceano a outro, sempre uno,
Ou as colunas beije ou a escarlata,
Tapete para a aurora.
Esta, pois, nave, agora,
No templo úmido do deus Netuno
Pende encalhada, e é uma imortal memória,
Por nome de Vitória.
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De firmes ilhas não as quedas frotas
Naquele mar descrevo-te de Albor,
Cujo número _ não por seu candor _
Pelo belo, agradável, pelo vário
A doce confusão fazer podia,
Que nos brancos estanques lá do Eurotas
A virginal desnuda montearia,
Fazendo escolhos ou de mármor pário,
Os membros belos, ou terso marfim,
Que Ácteon pode bem ter neles fim.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39457/17/gongora-o-homero-espanhol