PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 26 de março de 2016

STÉPHANE MALLARMÉ, A POESIA NOVA DE VANGUARDA – PARTE II

“A atitude do poeta em uma época como esta, onde ele está em greve perante a sociedade, é pôr de lado todos os meios viciados que se possam oferecer a ele.”
Mallarmé, quando da sua ruptura com a tradição poética, consumada de vez com O Lance de Dados (Um Coup de Dés), ele é representante, como poeta e feitor de poema-poesia, ou certo o responsável por abrir um caminho novo: ele aponta para o futuro. O que é que ele fez? Veja. No cume do processo de evolução histórica da poesia, Mallarmé faz com sua obra tanto uma ruptura como uma denúncia da falácia e das limitações da linguagem discursiva, o Lance de Dados só é o clímax e ponto de chegada de um longo processo individual de um poeta que, ao mesmo tempo, resulta num efeito de processo histórico inovador, que é, nada mais, que um novo campo de relações, sentidos, visual, e possibilidades do uso da linguagem, na convergência, mais ao fundo, da experiência própria da música e da pintura, e que, na sua radicalidade, terá intersecção com os modernos meios de comunicação, do chamado “mosaico de jornal” até o fotograma cinematográfico, ao cabo, por fim, no extremo, na técnica publicitária, o visual que vai ao fim suplantar o prolixo discursivo da poesia silogística tradicional.
Nas palavras de Augusto de Campos: “E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre e entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema.”  O caráter construtivo da poesia de Mallarmé, por sua vez, passa ao largo de conotações negativas da “arte pela arte” ou ainda do clichê da “poesia pura”. O slogan fácil não funciona neste caso, e nem é para tal. Pois, para o poeta, sim, para Mallarmé, ele se define como um poeta em greve, e aqui tomo mais uma vez licença a Augusto de Campos, que nos dá a nota: “É significativo que Mallarmé, para definir o seu marginalismo de poeta, tenha ido buscar não uma metáfora aristocrática como a da torre de marfim, mas uma expressão extraída do vocabulário econômico-social, a palavra greve, emblemática da luta de classes.” E aqui diz Mallarmé: “A atitude do poeta em uma época como esta, onde ele está em greve perante a sociedade, é pôr de lado todos os meios viciados que se possam oferecer a ele. Tudo o que se lhe pode propor é inferior à sua concepção e ao seu trabalho secreto.”
E na questão nevrálgica para muitos escritores ao caso de não prostituir o próprio trabalho literário, isto passa ao largo da crítica comum de cunho sociologizante, à exceção honrosa de Karl Marx, pois na recusa da ordem simplesmente contratual do trabalho literário, isto contém um termo ético de liberdade criativa e de uma noção visionária de quando o escritor está plenamente consciente de que participa de um processo histórico no médio e longo prazo, não podendo, portanto, ser só um ente comercial rendido ao sucesso, pois seu intento é a História e não o comércio por si  mesmo, o que nos leva ao pensamento marxista, quando Karl Marx afirma, por exemplo: “O escritor deve naturalmente ganhar dinheiro para viver, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro”. E acrescenta: “O escritor não considera seus trabalhos, de nenhum modo, como um meio. São fins em si. São tão pouco um meio para ele e para os outros que ele sacrifica a sua própria existência à existência de sua obra, quando necessário, e que, como o pregador religioso, ele se curva ao princípio de obedecer mais a Deus que aos homens, aos homens entre os quais ele próprio está confinado com suas necessidades e seus desejos de homem.” E citando novamente Augusto de Campos: “Nesse sentido, a obra de Mallarmé é exemplar. Na difícil querela sobre a possibilidade de engajamento da poesia, em que Sartre, toma partido recusando a hipótese da participação poética, uma coisa é certa: nenhuma tentativa de engajamento em poesia pode ser válida tomando a linguagem como meio ou instrumento passivo, pois o poeta, antes de mais nada, está engajado com a linguagem, ou para melhor dizê-lo, na perfeita e intraduzível fórmula de Jean Tardieu: le langage l`engage.”
No poema “Outro Leque” (De Mademoiselle Mallarmé) temos trechos como: “Ó sonhadora, por quem plano/Num puro gozo sem timão,/Sabe, por um sutil engano,/Guardar minha asa em tua mão.” E ainda: “Vertigem! Eis que se detém/O espaço como um grande beijo”. E mais: “Sente esse paraíso louco/Como um sorriso que soçobra”. Ou seja, o poema de Mademoiselle Mallarmé não é um poema de amor dentro dos padrões românticos com todos os clichês que vossas imaginações possam conceber, está além do clichê romântico, é uma constatação de um fenômeno mais do que uma declaração de amor, e o poema amorosamente acaricia mademoiselle com seu domínio, ou ainda, a mademoiselle é descrita imageticamente, a sonhadora que, para Mallarmé, guarda a sua asa “em tua mão”, e no jogo espacial dos corpos, aparece o beijo, e que lhe dá vertigem, exclamativamente, sem mais. Abre-se um chão no beijo, a vertigem é o espaço aberto, o infinito além de si no corpo e beijo de mademoiselle, de que tem na interpretação do poeta, pois, a sua percepção fundada de que ela “sente esse paraíso louco”, e é mais uma vez o mundo que se abre, o chão e sua rachadura, “como um sorriso que soçobra.” O amor é vertigem, soçobra, e é paraíso, o leque de mademoiselle faz vento e abre o espaço, Mallarmé treme.
No segundo poema desta série, é um sem título, após as árias, e que tem a simbologia do cisne como ponto condutor, e que tem versos como: “O virgem, o vivaz e o viridente agora/Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve/Duro lago de olvido a solver sob a neve”. E ainda estas trágicas notas: “Lembrando que é ele mesmo esse cisne de outrora/Magnífico mas que sem esperança bebe”. E que culmina: “Fantasma que no azul designa o puro brilho,/Ele se imobiliza à cinza do desprezo/De que se veste o Cisne em seu sinistro exílio.” O cisne, que tem direta associação com a morte em seu canto, no chamado “canto do cisne”, tem neste poema o processo de um cisne (pessoa) que foi da glória ao profundo da decadência, pois da ascensão do voo à queda sem asas, a vida nos dá os dois caminhos simultaneamente, e a escolha é trágica ou feliz, dando ao fado apenas o gosto de sangue e fel, ou de doçura e amores. O olvido (esquecimento) no bater de asas ao vento do cisne, segue à segunda estrofe como um maldito ao qual “outrora Magnífico”, agora, sem esperança, bebe. E Mallarmé confirma com sua pena que tal história é o caminho de um exílio, sinistro exílio, no qual há um fantasma, do puro brilho, o Cisne se veste da cinza do desprezo, não há esperança, o dia em que outrora não é mais, e a este que se afunda resta sua asa pretérita, longe de si.  
E para fechar, temos o poema “A Tumba de Edgar Poe”, que tem versos como: “Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,/O Poeta suscita com o gládio erguido/Seu século espantado por não ter sabido/Que nessa estranha voz a morte se insurgia!”. E estes: “Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –/A ideia só – não esculpir baixo-relevo/Que ao túmulo de Poe luminescente indique, (...) Calmo bloco caído de um desastre obscuro,/Que este granito ao menos seja eterno dique/Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.” Edgar Allan Poe, o escritor do livro de contos “Histórias Extraordinárias” tem aqui uma espécie de obituário em forma de poema, e ele surge em seu esplendor e cheiro de morte, Edgar Poe tem em si o guia eterno, já morto, em paz com seu túmulo, baixo-relevo, inscrição granítica de quem foi, e com as palavras de Mallarmé, signo, marca, e que ecoa de forma esparsa como blasfêmia aos tempos do futuro.

OUTRO LEQUE
De Mademoiselle Mallarmé

Ó sonhadora, por quem plano
Num puro gozo sem timão,
Sabe, por um sutil engano,
Guardar minha asa em tua mão.

Uma aragem de entardecer
Te vem a cada movimento
Preso que faz retroceder
O horizonte suavemente.

Vertigem! Eis que se detém
O espaço como um grande beijo
Que por nascer para ninguém
Não soma ou some o seu desejo.

Sente esse paraíso louco
Como um sorriso que soçobra
Do fim da boca escoar um pouco
No fundo da unânime dobra!

O cetro das areias rosas
Quietas nas tardes de ouro é este
Branco voo fechado que pousas
Contra o fogo de um bracelete.

SEM TÍTULO

O virgem, o vivaz e o viridente agora
Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve
Duro lago de olvido a solver sob a neve
O transparente azul que nenhum voo aflora!

Lembrando que é ele mesmo esse cisne de outrora
Magnífico mas que sem esperança bebe
Por não ter celebrado a região que o recebe
Quando o estéril inverno acende a fria flora,

Todo o colo estremece sob a alva agonia
Pelo espaço infligida ao pássaro que o adia,
Mas não o horror do solo onde as plumas têm peso.

Fantasma que no azul designa o puro brilho,
Ele se imobiliza à cinza do desprezo
De que se veste o Cisne em seu sinistro exílio.

A TUMBA DE EDGAR POE

Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
O Poeta suscita com o gládio erguido
Seu século espantado por não ter sabido
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!

Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu –
Ído à onda sem honra de uma negra orgia.

Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –
A ideia só – não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.

(Poemas de Stéphane Mallarmé)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27914/17/stephane-mallarme-a-poesia-nova-de-vanguarda-parte-ii 





  


domingo, 20 de março de 2016

STÉPHANE MALLARMÉ, A POESIA NOVA DE VANGUARDA – PARTE I

“O poeta fala de coisas que ignora completamente.”
O Mallarmé que aqui apresento, é o poeta em sua primeira fase, ainda na categoria parnaso-simbolista, prestes a fazer futuramente uma verdadeira revolução, do poema que implode o discurso e vira estrutura em um lance de dados (que apresentarei na parte III), e que aqui, em sua aparição, já vemos metáforas condensadas, pois nunca houve sobras em Mallarmé. Este poeta, na sua primeira fase, ainda ecoa Baudelaire, acompanha de perto, ainda, poetas como Gautier e Verlaine, este é o Mallarmé de “Le Guignon”, de “Apparition”, incidindo neste escopo com a bruma e torre de marfim do parnasianismo, e com obras-primas simbolistas, de outro lado, no entanto. Tal é “Brise Marine”. Também, neste ínterim, temos o Mallarmé que enuncia e modula na sua criação poética um pouco de Racine, fazendo uma verdadeira reconciliação deste com a língua francesa, e que vai em frente, contudo, ao antecipar Valéry, como é esta aparição em poemas como “Hérodiade”, “L`Après-Midi d`un Faune” e “Toast Funèbre”, sendo o Mallarmé vencedor de barreiras históricas, o penúltimo e o último, no caso desta primeira parte abordo, sobretudo, o Mallarmé sonetista-simbolista.
Podemos fazer, neste caso, uma pequena transcrição sobre o que diz respeito, por exemplo, do Mallarmé signatário de “Plusieurs Sonnets”, “Hommages”, “Tombeaux”, “Autres Poèmes” e “Sonnets”, e mais “Salut”, “Au Seul Souci de Voyager”, “Toute L`Âme Resumée”, pois aqui diz Mário Faustino: “Aí Mallarmé leva a um ponto máximo, até hoje não mais atingido, uma linguagem (a poética) e uma língua (a francesa). Esses poucos poemas é que fazem dele – juntamente com as experiências de “inventor” de “Igitur” e sobretudo de Un Coup de Dés – o maior poeta-para-poetas da língua francesa, um dos maiores de todos os tempos e sem dúvida alguma o maior destes últimos cem – ou duzentos – anos”. Tudo culminará, enfim, com o derradeiro Mallarmé demolidor de Lance de Dados, da chamada obra inacabada. O que Augusto de Campos viria a chamar Poema, Estrutura. (E o que Mallarmé entreabre neste caso, direi na parte III, onde se dará a análise e transcrição de Lance de Dados).
Salut ou Brinde é um dos sonetos mais conhecidos de Mallarmé. Com a palavra Rien (Nada) abre o tempo do mar, este elemento comum a quase todos os poetas, o que incide diretamente na sua evolução de soneto, com sonoridades que levam ao imagético além do puro som, condensações, como no último terceto: Solitude, récif, étoile (solitude, recife, estrela) que é enumeração, enunciação, já além do discurso, o que iria, mais tarde, levar o poeta a romper com a linguagem comum e silogística da poesia, isto é, um discurso com começo-meio-fim, para uma estrutura totalmente vertical e visual, que depois, aqui no Brasil, seria uma influência para o movimento da poesia concreta. A boa tradução deste poema mantém seu caudal rítmico, não o trai, rimas são apresentadas sem sustos, tudo harmônico, num estado de condensação própria ao soneto, só que mais que isso, apontando o caminho futuro de demolição da poesia discursiva, embora se trate aqui, ainda, de um poema simbolista, da cor de sua época.
Em Le Sonneur (O Sineiro) temos mais um soneto simbolista, de caráter também condensado, rítmico e rimado, bem traduzido, Mallarmé fala aqui de si mesmo, com envoltório de sua criação poética, embebido no bater do sino, “uma voz que ressoa clara no ar puro e limpo e fundo da manhã”, mais uma vez, imagem simbolista, que é fazer música e pintura com palavras, ainda ao uso e abuso da metáfora, pois sim, Mallarmé diz, sem mais: “Esse homem sou eu”. Este homem é o que “Só ouve retinir um vago som que ecoa”. A vaga noção de realidade evoca o inconsciente simbolista, o mergulho nas profundezas da mente humana e na alma das coisas, neste caso, carrega, no entanto, o fardo de sua profunda ignorância de tudo o que vê e sente, é a vaga sensação de Mallarmé ser ele mesmo, mas não se sabe ao certo de nada, só um eco, som vago que se dispersa por aí. Pois ele ainda tenta algo: “Dentro da noite louca agrada-me puxar a corda do Ideal”. A ânsia do Ideal é o desejo do Absoluto, este que está, como infortúnio ou fortuna (dependendo do ponto de vista), mergulhado no universo das contradições de superfície, pois o tempo todo o poeta vai às profundezas mas se rebela inutilmente com o muro intransponível que desliza numa superfície que oculta todos os mistérios, o que é ruína e amadurecimento na carne e na alma. O poeta fala de coisas que ignora completamente.
Em L`Azur (O Azul) tudo se abre (ou se fecha) com a rascante primeira estrofe, que diz: “De um infinito azul a serena ironia/Bela indolentemente abala como as flores/O poeta incapaz que maldiz a poesia/No estéril areal de um deserto de Dores.” Aqui tudo ecoa o simbolismo do infinito azul, em que a ironia fulmina o poeta, em que bela indolente faz do poeta um maldizer por ser incapaz, e dentro disto se depara com o deserto que são Dores, com maiúscula, pois um dos maiores enigmas, além do amor, é a dor, o que sela muitos destinos ainda inconscientes de suas rédeas, tontos da paixão mortiça, no deserto das Dores, alma que ainda não esteve no cume de compreensão de que não há fuga, há encontro consigo e comunhão com os outros, mas se o poeta maldiz, é o fato de que foi presa do destino, doce e amarga ironia que desfaz e almeja sonhos, dependendo do coração amigo ou inimigo de si mesmo. “A minha alma vazia”, diz o poeta Mallarmé, é o grande charme da poesia, este vácuo de que se alimenta a arte, “a falta de”, mesma sensação que fez surgir a filosofia. Também, de maneira mais velada, a de que fala a religião, no engano do dogma absoluto, que é, também, produto do vazio da alma. Todos buscam, os que encontram buscaram mais que os outros, é simples, mas não é fácil. E a poesia grita ao fim deste poema, seis vezes: O Azul! (Mas que poder tem tal cor! Como o mar azul? Azul do céu? Sim, azul da vida que é bela e trágica, pinte-a como quiser).

BRINDE
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa:
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.

O SINEIRO

Embora o sino acorde uma voz que ressoa
Clara no ar puro e limpo e fundo da manhã
E desperta, infantil, uma outra voz que entoa
Um angelus por entre a alfazema e a hortelã,

O sineiro evocado à clave da ave, irmão
Sinistro cavalgando, a gemer sua loa,
A pedra que distende a corda em sua mão,
Só ouve retinir um vago som que ecoa.

Esse homem sou eu. Dentro da noite louca
Agrada-me puxar a corda do Ideal,
De pecados se alegra a plumagem leal

E a minha voz me vem aos pedaços e oca!
Mas um dia, cansado deste afã obscuro,
Ó Satã, eu roubo esta pedra e me penduro.

O AZUL

De um infinito azul a serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores.

Em fuga, olhos fechados sinto-o que espreita,
Com toda a intensidade de um remorso aceso,
A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita
Noite, andrajos, opor a seu feroz desprezo?

Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono
Sobre o límpido céu, num farrapo noturno,
Que afogarão os lodos lívidos do outono,
E edificai um grande teto taciturno.

E tu, ó Tédio, sai dos pântanos profundos
Da desmemoria, unindo o limo aos juncos suaves,
Para tapar com dedos ágeis esses fundos
Furos de azul que vão fazendo no ar as aves.

Que sem descanso, enfim, as tristes chaminés
Façam subir de fumo uma turva corrente
E apaguem no pavor de seus torvos anéis
O sol que vai morrendo amareladamente!

__ O Céu é morto. __ Vem e concede, ó matéria,
O olvido do Ideal cruel e do Pecado
A um mártir que adotou o leito de miséria
Ao rebanho feliz dos homens reservado,

Pois quero, desde que meu cérebro vazio,
Como um pote de creme inerme ao pé de um muro,
Já não sabe adornar a ideia-desafio,
Lúgubre bocejar até o final obscuro ...

Em vão. O Azul triunfa e canta em glória
Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para sus-
Pender-nos no terror de sua vil vitória,
Rompendo o metal vivo em angelus de luz!

Ele rola na bruma, antigo, lentamente
Galga tua agonia e como um gládio a sul-
Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente.
O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
(Poemas de Stéphane Mallarmé)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27798/17/stephane-mallarme-a-poesia-nova-de-vanguarda-parte-i