PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 20 de março de 2016

STÉPHANE MALLARMÉ, A POESIA NOVA DE VANGUARDA – PARTE I

“O poeta fala de coisas que ignora completamente.”
O Mallarmé que aqui apresento, é o poeta em sua primeira fase, ainda na categoria parnaso-simbolista, prestes a fazer futuramente uma verdadeira revolução, do poema que implode o discurso e vira estrutura em um lance de dados (que apresentarei na parte III), e que aqui, em sua aparição, já vemos metáforas condensadas, pois nunca houve sobras em Mallarmé. Este poeta, na sua primeira fase, ainda ecoa Baudelaire, acompanha de perto, ainda, poetas como Gautier e Verlaine, este é o Mallarmé de “Le Guignon”, de “Apparition”, incidindo neste escopo com a bruma e torre de marfim do parnasianismo, e com obras-primas simbolistas, de outro lado, no entanto. Tal é “Brise Marine”. Também, neste ínterim, temos o Mallarmé que enuncia e modula na sua criação poética um pouco de Racine, fazendo uma verdadeira reconciliação deste com a língua francesa, e que vai em frente, contudo, ao antecipar Valéry, como é esta aparição em poemas como “Hérodiade”, “L`Après-Midi d`un Faune” e “Toast Funèbre”, sendo o Mallarmé vencedor de barreiras históricas, o penúltimo e o último, no caso desta primeira parte abordo, sobretudo, o Mallarmé sonetista-simbolista.
Podemos fazer, neste caso, uma pequena transcrição sobre o que diz respeito, por exemplo, do Mallarmé signatário de “Plusieurs Sonnets”, “Hommages”, “Tombeaux”, “Autres Poèmes” e “Sonnets”, e mais “Salut”, “Au Seul Souci de Voyager”, “Toute L`Âme Resumée”, pois aqui diz Mário Faustino: “Aí Mallarmé leva a um ponto máximo, até hoje não mais atingido, uma linguagem (a poética) e uma língua (a francesa). Esses poucos poemas é que fazem dele – juntamente com as experiências de “inventor” de “Igitur” e sobretudo de Un Coup de Dés – o maior poeta-para-poetas da língua francesa, um dos maiores de todos os tempos e sem dúvida alguma o maior destes últimos cem – ou duzentos – anos”. Tudo culminará, enfim, com o derradeiro Mallarmé demolidor de Lance de Dados, da chamada obra inacabada. O que Augusto de Campos viria a chamar Poema, Estrutura. (E o que Mallarmé entreabre neste caso, direi na parte III, onde se dará a análise e transcrição de Lance de Dados).
Salut ou Brinde é um dos sonetos mais conhecidos de Mallarmé. Com a palavra Rien (Nada) abre o tempo do mar, este elemento comum a quase todos os poetas, o que incide diretamente na sua evolução de soneto, com sonoridades que levam ao imagético além do puro som, condensações, como no último terceto: Solitude, récif, étoile (solitude, recife, estrela) que é enumeração, enunciação, já além do discurso, o que iria, mais tarde, levar o poeta a romper com a linguagem comum e silogística da poesia, isto é, um discurso com começo-meio-fim, para uma estrutura totalmente vertical e visual, que depois, aqui no Brasil, seria uma influência para o movimento da poesia concreta. A boa tradução deste poema mantém seu caudal rítmico, não o trai, rimas são apresentadas sem sustos, tudo harmônico, num estado de condensação própria ao soneto, só que mais que isso, apontando o caminho futuro de demolição da poesia discursiva, embora se trate aqui, ainda, de um poema simbolista, da cor de sua época.
Em Le Sonneur (O Sineiro) temos mais um soneto simbolista, de caráter também condensado, rítmico e rimado, bem traduzido, Mallarmé fala aqui de si mesmo, com envoltório de sua criação poética, embebido no bater do sino, “uma voz que ressoa clara no ar puro e limpo e fundo da manhã”, mais uma vez, imagem simbolista, que é fazer música e pintura com palavras, ainda ao uso e abuso da metáfora, pois sim, Mallarmé diz, sem mais: “Esse homem sou eu”. Este homem é o que “Só ouve retinir um vago som que ecoa”. A vaga noção de realidade evoca o inconsciente simbolista, o mergulho nas profundezas da mente humana e na alma das coisas, neste caso, carrega, no entanto, o fardo de sua profunda ignorância de tudo o que vê e sente, é a vaga sensação de Mallarmé ser ele mesmo, mas não se sabe ao certo de nada, só um eco, som vago que se dispersa por aí. Pois ele ainda tenta algo: “Dentro da noite louca agrada-me puxar a corda do Ideal”. A ânsia do Ideal é o desejo do Absoluto, este que está, como infortúnio ou fortuna (dependendo do ponto de vista), mergulhado no universo das contradições de superfície, pois o tempo todo o poeta vai às profundezas mas se rebela inutilmente com o muro intransponível que desliza numa superfície que oculta todos os mistérios, o que é ruína e amadurecimento na carne e na alma. O poeta fala de coisas que ignora completamente.
Em L`Azur (O Azul) tudo se abre (ou se fecha) com a rascante primeira estrofe, que diz: “De um infinito azul a serena ironia/Bela indolentemente abala como as flores/O poeta incapaz que maldiz a poesia/No estéril areal de um deserto de Dores.” Aqui tudo ecoa o simbolismo do infinito azul, em que a ironia fulmina o poeta, em que bela indolente faz do poeta um maldizer por ser incapaz, e dentro disto se depara com o deserto que são Dores, com maiúscula, pois um dos maiores enigmas, além do amor, é a dor, o que sela muitos destinos ainda inconscientes de suas rédeas, tontos da paixão mortiça, no deserto das Dores, alma que ainda não esteve no cume de compreensão de que não há fuga, há encontro consigo e comunhão com os outros, mas se o poeta maldiz, é o fato de que foi presa do destino, doce e amarga ironia que desfaz e almeja sonhos, dependendo do coração amigo ou inimigo de si mesmo. “A minha alma vazia”, diz o poeta Mallarmé, é o grande charme da poesia, este vácuo de que se alimenta a arte, “a falta de”, mesma sensação que fez surgir a filosofia. Também, de maneira mais velada, a de que fala a religião, no engano do dogma absoluto, que é, também, produto do vazio da alma. Todos buscam, os que encontram buscaram mais que os outros, é simples, mas não é fácil. E a poesia grita ao fim deste poema, seis vezes: O Azul! (Mas que poder tem tal cor! Como o mar azul? Azul do céu? Sim, azul da vida que é bela e trágica, pinte-a como quiser).

BRINDE
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa:
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.

O SINEIRO

Embora o sino acorde uma voz que ressoa
Clara no ar puro e limpo e fundo da manhã
E desperta, infantil, uma outra voz que entoa
Um angelus por entre a alfazema e a hortelã,

O sineiro evocado à clave da ave, irmão
Sinistro cavalgando, a gemer sua loa,
A pedra que distende a corda em sua mão,
Só ouve retinir um vago som que ecoa.

Esse homem sou eu. Dentro da noite louca
Agrada-me puxar a corda do Ideal,
De pecados se alegra a plumagem leal

E a minha voz me vem aos pedaços e oca!
Mas um dia, cansado deste afã obscuro,
Ó Satã, eu roubo esta pedra e me penduro.

O AZUL

De um infinito azul a serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores.

Em fuga, olhos fechados sinto-o que espreita,
Com toda a intensidade de um remorso aceso,
A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita
Noite, andrajos, opor a seu feroz desprezo?

Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono
Sobre o límpido céu, num farrapo noturno,
Que afogarão os lodos lívidos do outono,
E edificai um grande teto taciturno.

E tu, ó Tédio, sai dos pântanos profundos
Da desmemoria, unindo o limo aos juncos suaves,
Para tapar com dedos ágeis esses fundos
Furos de azul que vão fazendo no ar as aves.

Que sem descanso, enfim, as tristes chaminés
Façam subir de fumo uma turva corrente
E apaguem no pavor de seus torvos anéis
O sol que vai morrendo amareladamente!

__ O Céu é morto. __ Vem e concede, ó matéria,
O olvido do Ideal cruel e do Pecado
A um mártir que adotou o leito de miséria
Ao rebanho feliz dos homens reservado,

Pois quero, desde que meu cérebro vazio,
Como um pote de creme inerme ao pé de um muro,
Já não sabe adornar a ideia-desafio,
Lúgubre bocejar até o final obscuro ...

Em vão. O Azul triunfa e canta em glória
Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para sus-
Pender-nos no terror de sua vil vitória,
Rompendo o metal vivo em angelus de luz!

Ele rola na bruma, antigo, lentamente
Galga tua agonia e como um gládio a sul-
Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente.
O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
(Poemas de Stéphane Mallarmé)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27798/17/stephane-mallarme-a-poesia-nova-de-vanguarda-parte-i 




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