“Eu vi a cara da morte, e ela estava viva, viva.” (Cazuza)
Muitas pessoas dizem que a única coisa ou fato da vida que não tem jeito ou é irreversível, ou seja, da qual não se pode fugir, é a morte. A morte sempre foi tema altamente filosófico, porém, há uma tendência de pensarmos, normalmente, mais na vida que levamos cotidianamente do que na tão indesejada morte. Mas, contudo, tal questão, no sentido do próprio entendimento da vida é inexorável, não podemos vencê-la através de um simples esquecimento, isso é certo, não se pode fingir diante deste fato crucial.
Uma vez que a morte é crucial, torna-se necessária uma reflexão de seu sentido em relação não só à vida, mas, sobretudo, em relação à existência, que é uma palavra mais ampla do que a simples vida física ou natural, o homem, como diz Heidegger, é o único ser que tem a morte como uma realidade, portanto, não devemos nos limitar ao sentido ôntico da morte, entendendo-se aí a morte física ou natural, já que estas também pertencem aos outros seres, mas sim nos referirmos à morte existencial, pois só a morte existencialmente falando pertence ao homem.
A abordagem aqui, por conseguinte, deve abarcar todos os temas aventados pelo homem em relação à morte, ou seja, além de seu sentido primordialmente filosófico, teremos que nos deparar com o sentido religioso e científico. Seguindo, podemos evidenciar o conflito evidente entre os diferentes pontos de vista em relação à mesma questão, ou seja, as diferentes crenças do homem em relação à morte. O conflito se estabelece necessariamente, é bom lembrar.
O conflito mais importante é entre os que acreditam numa vida após a morte e os que acham que a vida se resume ao mundo material ou físico, sendo a morte então não só o fim do corpo como um fim peremptório da própria existência. Este conflito então se estabelece principalmente entre religiosos e ateus, e a discussão entre eles é não só interminável como insolúvel.
A posição dos religiosos, salvo seus diferentes matizes, se resume à uma crença de que a morte não é um fim existencial, mas sim uma porta para um outro tipo de existência, afirmação que os ateus rechaçam, daí o conflito. Então, para os religiosos, seguindo a cartilha cartesiana, de separação entre corpo e alma, o corpo morre, mas a alma vive eternamente, o que os cristãos chamam de vida eterna, que será uma realidade, segundo eles, num mundo porvindouro em que o próprio corpo ressuscitará num corpo imortal e glorioso. Os cristãos defendem que a morte é um sono profundo aguardando o Dia do Juízo em que serão julgados vivos e mortos no retorno de Jesus Cristo. Para os espíritas e espiritualistas em geral o conceito ou a crença é diferente, a morte não seria um sono profundo como uma espera por um mundo porvindouro, mas sim uma passagem para uma existência paralela fora do corpo, em que uns são condenados provisoriamente para mundos de sofrimento, cumprindo penas de sua existência pregressa ou, destinados para mundos felizes em que gozam das virtudes que praticaram na sua vida física ou corporal, tal como o aprendizado moral e intelectual que eles tiveram oportunidade de usufruir em sua existência física ou corporal e que continuam a usufruir numa vida paralela fora do corpo.
Por sua vez, os ateus defendem que, além de Deus não existir, existência de Deus que seria para os religiosos o motivo de uma continuação da existência após a morte, também, uma vez Deus não existindo, não há vida após a morte, tudo termina existencialmente com a morte física do corpo. Ainda que a grande maioria da população do planeta viva de crenças religiosas, o ateísmo vem tomando espaço cada vez maior numa possível interpretação do mundo, mas não cabe aqui fazer um julgamento de suas consequências, ou das manifestações dos religiosos contrários a tal interpretação do mundo, incluindo, consequentemente, a reflexão sobre a morte aí contida.
Há uma relação íntima entre a morte existencial e a crença em Deus ou em deuses. Daí explica-se o fato de que todas as religiões tem seus cultos que se relacionam de uma maneira profunda com o fenômeno da morte existencial, já que para eles esta morte existencial seria uma ilusão, havendo um outro mundo paralelo e para além deste mundo. Os religiosos, incluindo aí não só as religiões monoteístas, mas também todos os mitos da cultura humana, mitos cosmogônicos e escatológicos, possuem alegorias e diferentes relações com o fato da morte, mesmo que ela se resuma à morte do corpo. No caso do Cristianismo, a morte final, chamada de Apocalipse, seria, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, um renascimento do mundo num arrebatamento das almas para a glória de Deus, o que não é nada diferente, diga-se de passagem, dos mitos primitivos e antigos em que se manifestam as escatologias. Desde já, é bom ficar claro que, houve uma mudança radical com o advento das religiões monoteístas, onde se estabelece uma relação direta do homem com Deus através da palavra, daí denominarmos tais religiões como religiões do Livro, há uma relação com uma palavra reveladora e sagrada, pois é a própria manifestação do Logos Divino.
Voltando ao ateísmo, a morte se torna uma unidade, já que não há separação entre morte física e morte existencial, unidade que diz que morre-se de uma vez e não mais se vive. Tal visão é influenciada pelo materialismo ateu do pensamento científico moderno, não que todos os cientistas sejam ateus, mas ciência para ser ciência não deve considerar o sobrenatural, portanto, o método científico é de fulcro ateu. A ciência moderna é o grande bastião do ateísmo, querendo ou não, a ciência, desde o século das luzes, substituiu a religião no que tange a um domínio da cosmovisão vigente na sociedade, entendendo aí sociedade como Ocidente.
Uma vez que o materialismo ateu do pensamento científico moderno veio a substituir as chamadas “crendices” religiosas, o que ganhou roupagem filosófica com os iluministas, não podemos falar modernamente da morte física como não sendo também e ao mesmo tempo uma morte existencial.
O que ocorre então é o tão propalado “desencantamento do mundo”, o sobrenatural morre e de suas cinzas a matéria nasce e se torna a única realidade. O sobrenatural, e, junto com ele, a crença numa vida após a morte, são enterradas na reflexão do pensamento moderno sobre a morte. A morte é então reconsiderada de um ponto de vista mais voltado para o que devemos fazer em vida, já que não há mais espaço para uma consideração de uma vida posterior, vive-se neste mundo e morre-se neste mundo, a questão é: O que devemos fazer?
Para a última pergunta não há resposta, mas devemos, contudo, refletir sobre qual foi o impacto de tal mudança de cosmovisão, isto é, como mudou a relação do homem com a morte a partir da vigência do ateísmo como grande filosofia contemporânea, dando fim a uma era de superstições religiosas.
Não cabe aqui julgar se tal mudança foi para melhor ou para pior, tudo possui virtudes e defeitos, cada causa produz efeitos diversos, não há uma razão para uma visão unilateral ou tendenciosa, o que seria, no meu julgamento, antifilosofia. Falando nisso, já que tocamos nos aspectos religiosos da relação com a morte, pesamos isto com o contraponto da visão ateísta moderna e contemporânea, entrando aí o materialismo ateu científico, corroborando o conflito de duas eras diferentes, temos então que, para chegarmos a alguma reflexão minimamente conclusiva, ainda que seja da natureza de uma conclusão provisória e precária, como manifesta em qualquer tipo de pensamento, devemos inserir nesta reflexão o convidado que faltava : a filosofia.
A filosofia terá o papel aqui de grande mediadora das visões religiosa e científica ateísta, mesmo que a filosofia esteja num período histórico de predomínio filosófico ateu. Não há porque deixar de considerar a religião na modernidade, uma vez que, apesar de o status quo reverenciar o materialismo ateu científico como cosmovisão da sociedade (leia-se: Ocidente), temos que a maioria da população do planeta, como dito anteriormente, é de religiosos. Portanto, não se pode ignorar tamanha popularidade do pensamento religioso.
Então, para se ter uma visão equilibrada entre religião e ciência, temos que apelar para a filosofia, pois aí teremos uma possibilidade de entender melhor o que é o sentido da morte. Destarte, a filosofia fará com que tenhamos o sentido da morte numa perspectiva isenta de religiosidade ou cientificismo, haverá a necessidade de uma terceira posição como arremate. Tal terceira posição será uma síntese da tese religiosa em relação com a antítese científica ateísta, seguindo aí a dialética como nos legou Hegel.
A filosofia, numa dialética, terá a função de buscar o sentido da morte numa síntese entre religião e ciência, entre religiosidade e ateísmo. Então, pesando vida eterna com vida finita teremos o sentido da morte. Não entrarei aqui em detalhes desnecessários, uma vez que estamos apenas indagando a morte em seu sentido lato ou geral. A filosofia, desdenhando proselitismos tanto de um lado como do outro, terá aí o sentido da morte.
O sentido da morte para a filosofia será então independente de uma resolução peremptória, como presentes tanto no pensamento religioso como no ateu. Mas como isto será possível? Pois haverá uma afirmação sobre algo que será, consequentemente, uma posição, e devemos tomar uma posição, como então será possível isenção? Não há aí uma aporia irresolúvel? Não estaremos nos iludindo com a procura de uma síntese entre visões tão antagônicas? Como então?
Ora, devemos ter em conta o conflito, isso é óbvio. Mas não quer dizer que, numa síntese, possamos não solucionar, mas sim conciliar duas visões contrárias, lembrando aí o equilíbrio heracliteano do pólemos que vira harmonia. Desde já, então, devemos sim buscar tal síntese para que alcancemos um possível sentido da morte, embora insuficiente, como qualquer reflexão humana.
Partindo do pressuposto de que é viável o sentido da morte isento de religiosidade ou ateísmo, nesta visão teremos o equilíbrio dos dois, pois para começar, tanto religião como ateísmo falam do mesmo fato, a morte é a mesma, o que muda é a visão. Portanto, se estamos falando da mesma coisa o tempo todo, eu digo que é possível então pensar o mesmo de modo diferente das visões religiosa e ateísta. O que muda para um e para outro é que a finitude e a infinitude são como uma Cabeça de Jano, falam do mesmo de modos diferentes, então é possível equilibrar finitude e infinitude e chegar no sentido da morte. Que religiosos e ateus não se bicam, é porque a visão do mesmo não aceita o diferente, mas há igualdade na diferença, ou seja, sempre se fala da mesma coisa: O que é a morte?
Uma vez dito isto, é bom deixar claro que, a insolubilidade do conflito entre religiosos e ateus não será resolvida pela filosofia, a filosofia não resolve nada, quem resolve coisas é a matemática. Portanto, quando se afirma que é possível o sentido da morte isento de religiosidade ou ateísmo, isto quer dizer que não há solução mas conciliação, o conflito existe e existirá pelo resto da existência.
Tal conciliação é entre a Cabeça de Jano finitude x infinitude, que são como copertencentes de um mesmo fenômeno, finitude é morte existencial, infinitude é vida além da morte ôntica ou física, a relação entre as duas mortes é de que, de um jeito ou de outro, a morte é uma só, neste ponto a unidade ateísta está certa, morre-se uma vez nesta vida e pronto, questões como vida após a morte, reencarnação ou ressurreição são questões que a religiosidade impõe mas que não prova, ou seja, a religião revela sem provar, já que a religião, no caso específico do monoteísmo tem como pressuposto um argumentum ad verecundiam, ou seja, a autoridade da palavra que se julga ser a palavra de Deus é válida e verdadeira por si mesma como causa sui, ou seja, ela se autogera no Eu Sou e não se discute, ou se acredita ou se nega, mas não há prova de nada filosoficamente e cientificamente falando.
Voltando-nos à Cabeça de Jano finitude x infinitude podemos concluir ou apenas sugerir que, nesta dialética temos como síntese que o sentido da morte é um enigma necessário por ser um fato necessário e irrevogável da própria vida, daí se entender que vida e morte são copertencentes à algo que denominamos existência, sendo que neste mundo em que vivemos, ou seja, o mundo ôntico da matéria do corpo mortal, a infinitude só pode ser uma ideia, a realidade é a morte existencial como finitude ôntica, mas a ideia, para além de sua função de lenitivo, não contradiz a realidade da finitude ôntica, mesmo que exista um espírito imortal.
Gustavo Bastos 29/09/2010