PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

INTERNET E SISTEMAS COMPLEXOS - PARTE IV

“ a internet também é vulnerável em sua infraestrutura”

Quando se fala da resiliência de uma internet bem distribuída e descentralizada, estamos falando de um conceito herdado da ecologia, em que toda resiliência terá por base a diversidade, ocorrendo algo semelhante no sistema da internet, em que uma rede bem distribuída equivale a um sistema resiliente e uma rede, ao contrário, concentrada em poucas empresas, como no caso presente das big techs, teremos uma vulnerabilidade do sistema.

Para além do colapso no nível de softwares, que são mais comuns e recorrentes, e que tivemos exemplo recente no caso da CrowdStrike (em que criei uma sequência extra de textos nesta coluna), a internet também é vulnerável em sua infraestrutura, nos seus componentes físicos, por exemplo, onde os cabos de fibra ótica, em que atravessam volumes colossais de tráfego de telefone e internet, se encontram mal distribuídos, ou seja, concentrados.

Um exemplo da vulnerabilidade da infraestrutura de comunicação, incluindo aí o sistema de internet, foi o caso do descarrilamento de onze vagões de um trem de carga de 60 vagões no Howard Street Tunnel, em Baltimore. Em meio a este incidente, um carrinho que continha produto químico inflamável foi perfurado, e este produto escapou e pegou fogo, provocando um incêndio que demorou cinco dias para ser debelado. 

O desastre só aumentou, com as paredes do túnel funcionando como um forno e a temperatura chegando até quase 2.000 graus Fahrenheit, com uma adutora acima do túnel que estourou e inundou o túnel, mas esfriou pouco, e ainda houve uma explosão relacionada ao produto químico liberado que foi de tampas de bueiros que ficavam até três quilômetros do túnel. 

Com este incidente, ficou clara que a resiliência propalada pela WorldCom, por exemplo, era apenas algo no papel, pois a alegada distribuição de tráfego por diferentes redes de fibra ótica em função de uma antecipação a eventos como o do túnel, neste caso, não funcionou, e uma grande parte do volume de tráfego telefônico e de internet da empresa foi atingido.

Tal incidente surpreendeu e atingiu a segunda maior empresa de telefonia de longa distância dos Estados Unidos. O fato foi que o tráfego de internet no país desacelerou e as linhas telefônicas da Costa Leste, além das linhas transatlânticas, todas caíram. Portanto, o que parecia uma infraestrutura segura e robusta, caiu por terra, mais uma vez, dada a concentração, desta vez, física e topográfica das redes de fibras óticas. 

Então, quando nos referimos ao Howard Street Tunnel, estamos falando de um túnel que faz parte de uma estreita topografia que acabou por concentrar diferentes redes de fibra ótica num único ponto de estrangulamento, e com o incêndio se revelou uma vulnerabilidade no nível operacional que ainda não estava óbvia, o que foi traduzido pelo fato da WorldCom ter confundido a sua redundância tecnológica com diversidade e, portanto, resiliência, o que foi incinerado, literalmente, com o incidente, nesta região de Baltimore. 

Na internet atual, temos um tráfego que passa por redes privadas das empresas de tecnologia, sendo grande parte composta por cabos submarinos da Meta e do Google, com servidores em redes dominantes de distribuição de conteúdo, que são a Cloudflare e a Akamai, e que possuem suas próprias administrações de redes de servidores proxy e data centers. 

Outro grau de concentração na infraestrutura é o fato do tráfego passar por resolvedores de sistemas de nomes de domínio (DNS) que se tornam cada vez menores e menos diversos. Lembrando que o DNS funciona como uma lista para a internet, em que ocorre a vinculação de sites a seus endereços numéricos.

A ilusão de que havia um sistema que em seu nível operacional era robusto e resiliente, por sua vez, foi dada pela melhora da velocidade e eficiência da rede, contudo, o gargalo, mais uma vez, estava na concentração, desta vez, física e topográfica, tudo no Howard Street Tunnel de Baltimore, em que se tinham provedores centralizados com mais recursos e mais qualificados, mas em pontos únicos de falha do sistema. Uma vulnerabilidade de concentração que não se resume ao mundo dos softwares no sistema de internet, mas que se estende à sua infraestrutura física. 

Em 2016, por exemplo, tivemos um ataque cibernético em que hackers infectaram dezenas de milhares de dispositivos habilitados para internet com um software malicioso, em que foi criada uma rede de dispositivos sequestrados, ou seja, uma botnet, e que foi usada para bombardear o provedor comercial de serviços DNS, Dyn, com consultas, até que este entrasse em colapso. Dentre os clientes deste provedor estavam empresas como Airbnb, Amazon, The New York Times, CNN e PayPal, e que durante o ataque não tiveram os seus nomes de domínio resolvidos. Por fim, dezenas de grandes sites dos Estados Unidos pararam de funcionar.

Embora se tratasse de um conjunto de empresas em que se incluíam as maiores marcas de internet dos Estados Unidos, todos com um planejamento de resiliência e redundâncias, falharam novamente no fato de haver um único ponto de estrangulamento, que guardava uma camada crucial da infraestrutura, e que falhou. O resultado, por sua vez, foi patético, com tais marcas conhecidas sendo derrubadas por uma rede de babás eletrônicas, webcams de segurança e outros dispositivos de consumo.

A vulnerabilidade no nível operacional, de infraestrutura, do sistema de internet, foi um gargalo revelado pelo seu colapso, em que se separou a redundância do sistema de sua diversidade, reflexo de uma monocultura, de monopólios e duopólios, que víamos predominantemente atingido o mundo de softwares em relação a ataques cibernéticos e falhas de sistema, mas que acaba que se lida com os mesmos problemas no nível de infraestrutura, e com a mesma origem de concentração do sistema de internet, leia-se, o controle deste sistema por algumas poucas empresas norte-americanas, as big techs.

Tal concentração também atinge ferramentas de pesquisa e de navegação, e que envolve a busca, a navegação e as redes sociais, em que se tem um volume imenso de troca de informações, conhecimentos e compartilhamentos que, por sua vez, alimentam big datas que visam controlar e armazenar estas informações sobre os usuários de internet, seus interesses de consumo, sua vida ativa etc, em bancos de dados que formam estes big datas, que se tornam, por fim, meios de domínio e de poder. 

Contudo, sua alta vulnerabilidade, em pontos únicos de estrangulamento, coloca toda falha sistêmica como um risco grande assumido por uma escolha, em que acidentes podem ser a entropia em ação, algo possível, mas em que o caminho foi aberto para isto, uma escolha sistêmica pela concentração. 

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/internet-e-sistemas-complexos-parte-4/

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

LORDS OF CHAOS – A SANGRENTA HISTÓRIA DO METAL SATÂNICO UNDERGROUND - PARTE XV

“período de auge do True Norwegian Black Metal”


Depois destes incidentes e de sua repercussão, a polícia norueguesa, já em 1998, acabou publicando um relatório intitulado Kirkebranner og satanistik motiverte skavederk (Danos de incêndios em igrejas e de crimes de motivação satânica), o que no livro em Lords Of Chaos encerra um capítulo e que vem com o título de “A História Oficial”, isto é, se tratava das conclusões produzidas pelo esforço de 4 oficiais de polícia e do poder judiciário, incluindo um procurador, envolvendo agências de investigação, em que este relatório detalha como a cena black metal se organizava na época, sua subcultura, dando recomendações para investigações futuras.

Mesmo com a relativa distância temporal, como engenharia de obra pronta, mesmo assim o relatório teve que lidar com um cipoal de contradições de uma cena dominada ainda por adolescentes, numa realidade absurda de inconstâncias internas do chamado “inner circle”, feitas para confundir desavisados. Entretanto, o relatório cai em exageros e extrapola, contudo, quando cai em mistificações em relação à dimensão da presença do satanismo no inner circle, e a relação de um culto satânico ligado diretamente à queima das igrejas na Noruega naquele período de auge do True Norwegian Black Metal, que era a segunda geração desta vertente do metal. 

O material do relatório, quando entra neste mérito, parece se contaminar com uma espécie de fundamentalismo cristão herdado dos Estados Unidos e vira um tipo anódino de manual de como lidar com criminosos satanistas e quetais. Aparece, como dito no livro Lords Of Chaos, “uma farofa de propaganda sensacionalista cristã sobre o satanismo, no estilo que motivaram os surtos satânicos que varreram os EUA no final dos anos 1990 - surtos motivados por histeria que, quase invariavelmente, revelavam-se infundados”.

Quanto ao satanismo, o relatório também peca por desconhecimento e de forma açodada confunde a autoria de O Livro da Lei, de Aleister Crowley, com a de um obscuro líder do Templo de Set de nome Michael Aquino, que era uma pequena dissidência da Igreja de Satã. Existe até um calendário atribuído ao satanismo que é condenado pelas próprias organizações satânicas estabelecidas, envolvendo abusos sexuais de menores. 

O nível do movimento, ou seja, um grupo de adolescentes, descambava, contudo, em poses histriônicas de um Varg Vikerknes, por exemplo, ironizando o julgamento que levava pelo poder judiciário na Noruega, uma certa empáfia, misturada a uma fleuma orgulhosa, mas que não dobravam os experientes investigadores da Kripos, no entanto. Por sua vez, tais enfrentamentos denotavam um contraste com a seriedade caricata do relatório quando se referia histericamente a tudo que se relacionava ao satanismo.

Mesmo diante da ironia de Varg, a Kripos o encurralou ao refazer o traçado feito pelo Conde e seus asseclas, cerco que se fechou com o envio do Grupo de Incêndios de Igrejas pela polícia de Oslo para Bergen para realizar as tratativas. Vikernes, finalmente acuado, declarou que “estava farto de ser assediado pelas autoridades, e que a investigação policial sobre a cena black metal deveria ser encerrada”. Por fim, no livro Lords Of Chaos temos : “Quando o líder de operações respondeu que Vikernes não parecia ter a autoridade judicial para dar ordens à polícia, Vikernes deu um passo atrás e levantou seu braço em uma saudação romana, ao estilo nazista”.

E ainda, segundo Lords Of Chaos : “Ainda que ambas as histórias tenham vindo da polícia e possam ter sido floreadas pela sua fonte, elas não são difíceis de se acreditar. Afinal, foi provavelmente a propensão de Vikernes a demonstrações teatrais que o levou a transformar seu processo judicial em um circo midiático, armando então o palco onde ele faria o papel do seu cartunesco personagem “O Conde” - um papel que posteriormente se voltou contra ele, quando tribunais levaram seus rompantes ameaçadores a sério ao lhe darem a sentença mais severa permitida pela lei norueguesa”.

Seguindo Lords Of Chaos : “Portanto, quando Vikernes alega que de certa forma ele é um preso político, ele tem uma certa razão. Seria quase impossível para alguém da idade de Vikernes sem antecedentes criminais receber uma sentença de vinte e um anos de prisão. Bard Eithun, em comparação, recebeu uma sentença de dois terços do tamanho, por um assassinato de brutalidade semelhante. As diferenças entre as sentenças podem muito bem ser políticas, pois Eithun, apesar de nunca ter expressado muito remorso, não fez questão de provocar o tribunal da forma que Vikernes fez ao usar a oportunidade para declarar sua adesão ao nacional-socialismo”.

Para saber das relações estabelecidas dentro do inner circle, por exemplo, temos o de uma sistemática frieza entre os próprios integrantes da cena, tendo um retrato disto quando membros do Mayhem atual se referem a Euronymous ou Dead, como se falassem de algo que eles leram ou ouviram falar, sem vivenciar ou sofrer com isso, sendo sempre a nota fria de um relatório de fatos. Ao mesmo tempo, Varg pouco se importava com Euronymous e Bard Eithun era completamente oblíquo em relação ao que tinha feito também. Tudo o que aconteceu naqueles anos do auge da cena era obra de uma adolescência que parecia ter produzido adultos herdeiros de histórias nada comoventes para si próprios, num modus operandi que era, como dito já em Lords Of Chaos, de um estenógrafo.

A posição patética do relatório intitulado Kirkebranner og satanistik motiverte skavederk (Danos de incêndios em igrejas e de crimes de motivação satânica), por sua vez, parecia a obra de caipiras impressionáveis, que mistificaram a relação da cena do inner circle com o satanismo, exagerando nas tintas e pintando um anedotário involuntário que faria rir até um leitor juvenil de revistas de ocultismo que anelava brincar de alquimista do mal etc. O desconhecimento tanto do tema do ocultismo, como uma visão unidimensional sobre o inner circle, também reflexo de uma histeria anti-satanista, contribuíram para uma piada pronta quando a polícia norueguesa teve que lidar com a empáfia e a fleuma de um jovem que se auto intitulava Conde.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/cultura/lords-of-chaos-a-sangrenta-historia-do-metal-satanico/