PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 18 de março de 2019

BORGES: PENSAMENTO E POESIA


“Borges logo nos diz que quando lemos um autor temos que acreditar nele, a convicção parte da sinceridade”

Na análise do livro “Esse ofício do verso” de Jorge Luis Borges, passo aqui, agora, ao último texto sobre este livro, falarei então do capítulo 5, Pensamento e Poesia, que traz uma reflexão mais literária que conceitual do gênero poesia, em que Borges nos cita alguns poetas e poemas, e que tem um caráter essencialmente lúdico e não com intenções de esgotar o tema, pois a grande diversão de ler Borges, por se tratar de um escritor e não de um filósofo, é que sua crítica literária, ao mesmo tempo que tem a amplitude própria de sua erudição, traz um frescor também próprio de alguém capaz de imaginar e nos fazer sonhar.
Borges começa por lembrar a definição de Walter Pater, o qual nos diz que “toda arte aspira à condição da música”. E a noção mais conhecida (por ser a correta) da música é que nela temos forma e substância inseparáveis, a melodia e a peça musical, portanto, têm a relação de som e pausa num lapso de tempo, e eis que é neste ambiente que as emoções são despertadas pela música, por estas combinações citadas, som, pausa e tempo.
Borges então segue a sua análise dizendo, seguindo Stevenson, que há um caráter duplo na poesia, pois esta tem como material as palavras, e aqui Stevenson associa friamente as palavras do poeta aos utensílios. A chamada trama, por sua vez, pode ser tanto cotidiana como abstrata, e aqui temos símbolos rígidos como resultado, o que em Stevenson equivale a transformar o ordinário em mágica. A natureza dupla, aqui, é que a poesia traduz do mundo da vida, em seu caráter geral e corriqueiro, um senso estético do maravilhoso, sendo uma operação, paradoxalmente, que parte de uma frieza objetiva, e ao fim, temos como efeito que é o que temos como “poesia”, a emoção estética.
Borges então segue analisando a relação entre durabilidade no tempo histórico de uma poesia, isto é, se ela permanece viva no tempo ou se converte em língua morta. E Borges então recapitula uma provável origem das palavras, estas que vêm do mundo concreto, muito antes de qualquer abstração. Muitas vezes, temos uma origem mágica das palavras, como instrumentos de encantamentos, o que pode ser uma concepção da palavra mais próxima da metáfora poética, aqui temos não exatamente uma abstração ainda, mas a palavra como função de magia e de culto.
E aqui Borges, por sua vez, refuta Stevenson, e retoma a palavra na poesia como sendo o retorno às fontes da linguagem, e aqui temos a diferenciação das línguas das nações e dialetos de tribos, pois então não há como ter um chamado “dicionário perfeito”, uma relação simétrica entre palavra e universalidade, a diferença entre os idiomas comprova, justamente, que isto não existe. Isto é, as línguas têm origem popular e diversa, portanto, não foram inventadas por linguistas ou filólogos, portanto, a relação lógica de Stevenson vira aqui um fantasma ou, na verdade, um sofisma. Por fim, o caráter popular da linguagem veio muito antes de qualquer afetação livresca.
O começo da linguagem veio como palavras mágicas, meios de encantamento, o que temos como exemplo mais profundo e estruturado disto a relação dos hebreus com sua língua, o que vai resultar no misticismo judeu da cabala. Palavras de poder logo aparecem, e temos o uso de talismãs e abracadabras como meios de mágica e força espiritual, o que podemos ver também, até hoje, no suposto poder das orações e rezas religiosas.
Borges então retorna à sua análise da poesia, e nos lembra que muitas vezes não temos um sentido unívoco nos versos, ou ainda que não haja qualquer sentido, uma vez que a beleza é que pode ser preponderante na poesia, seu caráter de imaginação do autor e poeta, e não uma suposta faculdade racional que vem destrinchar um núcleo de poesia numa exegese de sentido ou de origem lógica ou cotidiana antes de virar mágica, como em Stevenson, que Borges refuta e aqui mais uma vez nos diz do caráter mágico da poesia em sua origem e não somente em seu destino.
A cadência, a musicalidade, são fontes de prazer, o sentido aqui é o da imaginação e não o de um mundo definido e consolidado, por se tratar de ser a poesia também um som, temos aqui sua origem em aedos e rapsodos, e que vai culminar mais tarde na musicalidade trovadoresca, sendo aqui o caráter musical da poesia a faculdade literária que mais se aproxima da música, esta que junta forma e substância.
A poesia que permanece viva, portanto, deve esta sua força histórica muito mais à sua beleza do que ao contexto em que foi produzida, talvez ela não tenha mais nenhum sentido objetivo novo, mas sua forma e musicalidade ainda suscitam a emoção que ela tinha desde em que foi produzida, ao passo que outras poesias que se perdem no tempo, assim desapareceram pois não tinham mais a capacidade de emoção estética ou de beleza que a poesia deve provocar.
Até mesmo aqui a poesia em seu caráter contemporâneo de crítica ou de discurso cotidiano, temos ainda um certo diapasão com a sonoridade do verso, talvez indissociável até de uma poesia mais descritiva, discursiva, narrativa e objetiva. A musicalidade, portanto, sempre será importante na poesia. Portanto, temos mais uma vez que o caráter de durabilidade histórica da poesia passa por sua beleza e emoção e não pelo seu caráter sócio-cultural, uma vez que este é passageiro, a poesia de Safo, por exemplo, nos fala de um mundo que já morreu, mas ainda assim mantém o seu valor.
Borges então diferencia a poesia simples da poesia elaborada e elenca as virtudes de ambas, e o fato de uma poesia permanecer viva no tempo, contudo, não vem de esta ser simples ou elaborada, vai depender do poeta. E Borges logo refuta o preconceito com a poesia simples, dizendo que esta não é menos admirável que a poesia elaborada, arriscando Borges a dizer que pode ocorrer casos em que a poesia simples é mais admirável que a poesia elaborada.
Posso citar aqui, por exemplo, no nosso caso brasileiro, os poemas memoráveis de Drummond, de uma simplicidade que pode ser da quadrilha ou da pedra no caminho, mas com a mesma intensidade de poemas mais elaborados como a flor e a náusea. O que importa ao poeta é saber ligar e desligar todas estas chaves, é isto que o faz ser relevante e não somente popular. (Obs : não confundir poesia simples com poesia preguiçosa, por favor).
E Borges então cita a ideia que eu considero a mais importante para a poesia, sua convicção, se ela vem com verdade ou quer apenas ser agradável. Borges logo nos diz que quando lemos um autor temos que acreditar nele, a convicção parte da sinceridade, o que logo nos leva ao movimento necessário de ética literária de combater ou derrubar qualquer poesia postiça, forçada e muitas vezes falsamente emocional ou emocionante, feita para incautos. O escritor tem o dever aqui de suspender a incredulidade. E tal convicção, por fim, não deve estar presente apenas na poesia, como também na prosa. No caso da prosa, por sua vez, este caráter de convicção tem de vir dos personagens.
Borges então nos diz, na poesia, que a verdade da poesia vem do sentimento do poeta, a palavra e o verso verdadeiros, estes são os que permanecem no processo histórico, no que temos, seguindo o texto borgiano, o seguinte : “Nesse sentido, escritores como Góngora, John Donne, William Butler Yeats e James Joyce estão justificados. Suas palavras, suas estrofes podem ser afetadas; nelas podemos achar coisas estranhas. Mas somos levados a sentir que a emoção por trás das palavras é verdadeira.”

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/borges-pensamento-e-poesia