“Borges logo nos diz que quando lemos um autor temos que
acreditar nele, a convicção parte da sinceridade”
Na análise do livro “Esse ofício do verso” de Jorge Luis Borges,
passo aqui, agora, ao último texto sobre este livro, falarei então do capítulo
5, Pensamento e Poesia, que traz uma reflexão mais literária que conceitual do
gênero poesia, em que Borges nos cita alguns poetas e poemas, e que tem um
caráter essencialmente lúdico e não com intenções de esgotar o tema, pois a
grande diversão de ler Borges, por se tratar de um escritor e não de um
filósofo, é que sua crítica literária, ao mesmo tempo que tem a amplitude
própria de sua erudição, traz um frescor também próprio de alguém capaz de
imaginar e nos fazer sonhar.
Borges começa por lembrar a definição de Walter Pater, o qual
nos diz que “toda arte aspira à condição da música”. E a noção mais conhecida
(por ser a correta) da música é que nela temos forma e substância inseparáveis,
a melodia e a peça musical, portanto, têm a relação de som e pausa num lapso de
tempo, e eis que é neste ambiente que as emoções são despertadas pela música,
por estas combinações citadas, som, pausa e tempo.
Borges então segue a sua análise dizendo, seguindo Stevenson,
que há um caráter duplo na poesia, pois esta tem como material as palavras, e
aqui Stevenson associa friamente as palavras do poeta aos utensílios. A chamada
trama, por sua vez, pode ser tanto cotidiana como abstrata, e aqui temos
símbolos rígidos como resultado, o que em Stevenson equivale a transformar o
ordinário em mágica. A natureza dupla, aqui, é que a poesia traduz do mundo da
vida, em seu caráter geral e corriqueiro, um senso estético do maravilhoso,
sendo uma operação, paradoxalmente, que parte de uma frieza objetiva, e ao fim,
temos como efeito que é o que temos como “poesia”, a emoção estética.
Borges então segue analisando a relação entre durabilidade no
tempo histórico de uma poesia, isto é, se ela permanece viva no tempo ou se
converte em língua morta. E Borges então recapitula uma provável origem das
palavras, estas que vêm do mundo concreto, muito antes de qualquer abstração. Muitas
vezes, temos uma origem mágica das palavras, como instrumentos de encantamentos,
o que pode ser uma concepção da palavra mais próxima da metáfora poética, aqui
temos não exatamente uma abstração ainda, mas a palavra como função de magia e
de culto.
E aqui Borges, por sua vez, refuta Stevenson, e retoma a
palavra na poesia como sendo o retorno às fontes da linguagem, e aqui temos a
diferenciação das línguas das nações e dialetos de tribos, pois então não há
como ter um chamado “dicionário perfeito”, uma relação simétrica entre palavra
e universalidade, a diferença entre os idiomas comprova, justamente, que isto
não existe. Isto é, as línguas têm origem popular e diversa, portanto, não
foram inventadas por linguistas ou filólogos, portanto, a relação lógica de
Stevenson vira aqui um fantasma ou, na verdade, um sofisma. Por fim, o caráter
popular da linguagem veio muito antes de qualquer afetação livresca.
O começo da linguagem veio como palavras mágicas, meios de
encantamento, o que temos como exemplo mais profundo e estruturado disto a
relação dos hebreus com sua língua, o que vai resultar no misticismo judeu da
cabala. Palavras de poder logo aparecem, e temos o uso de talismãs e
abracadabras como meios de mágica e força espiritual, o que podemos ver também,
até hoje, no suposto poder das orações e rezas religiosas.
Borges então retorna à sua análise da poesia, e nos lembra
que muitas vezes não temos um sentido unívoco nos versos, ou ainda que não haja
qualquer sentido, uma vez que a beleza é que pode ser preponderante na poesia,
seu caráter de imaginação do autor e poeta, e não uma suposta faculdade
racional que vem destrinchar um núcleo de poesia numa exegese de sentido ou de
origem lógica ou cotidiana antes de virar mágica, como em Stevenson, que Borges
refuta e aqui mais uma vez nos diz do caráter mágico da poesia em sua origem e
não somente em seu destino.
A cadência, a musicalidade, são fontes de prazer, o sentido
aqui é o da imaginação e não o de um mundo definido e consolidado, por se
tratar de ser a poesia também um som, temos aqui sua origem em aedos e
rapsodos, e que vai culminar mais tarde na musicalidade trovadoresca, sendo
aqui o caráter musical da poesia a faculdade literária que mais se aproxima da
música, esta que junta forma e substância.
A poesia que permanece viva, portanto, deve esta sua força
histórica muito mais à sua beleza do que ao contexto em que foi produzida,
talvez ela não tenha mais nenhum sentido objetivo novo, mas sua forma e
musicalidade ainda suscitam a emoção que ela tinha desde em que foi produzida,
ao passo que outras poesias que se perdem no tempo, assim desapareceram pois
não tinham mais a capacidade de emoção estética ou de beleza que a poesia deve
provocar.
Até mesmo aqui a poesia em seu caráter contemporâneo de crítica
ou de discurso cotidiano, temos ainda um certo diapasão com a sonoridade do
verso, talvez indissociável até de uma poesia mais descritiva, discursiva,
narrativa e objetiva. A musicalidade, portanto, sempre será importante na
poesia. Portanto, temos mais uma vez que o caráter de durabilidade histórica da
poesia passa por sua beleza e emoção e não pelo seu caráter sócio-cultural, uma
vez que este é passageiro, a poesia de Safo, por exemplo, nos fala de um mundo
que já morreu, mas ainda assim mantém o seu valor.
Borges então diferencia a poesia simples da poesia elaborada
e elenca as virtudes de ambas, e o fato de uma poesia permanecer viva no tempo,
contudo, não vem de esta ser simples ou elaborada, vai depender do poeta. E
Borges logo refuta o preconceito com a poesia simples, dizendo que esta não é
menos admirável que a poesia elaborada, arriscando Borges a dizer que pode
ocorrer casos em que a poesia simples é mais admirável que a poesia elaborada.
Posso citar aqui, por exemplo, no nosso caso brasileiro, os
poemas memoráveis de Drummond, de uma simplicidade que pode ser da quadrilha ou
da pedra no caminho, mas com a mesma intensidade de poemas mais elaborados como
a flor e a náusea. O que importa ao poeta é saber ligar e desligar todas estas
chaves, é isto que o faz ser relevante e não somente popular. (Obs : não
confundir poesia simples com poesia preguiçosa, por favor).
E Borges então cita a ideia que eu considero a mais
importante para a poesia, sua convicção, se ela vem com verdade ou quer apenas
ser agradável. Borges logo nos diz que quando lemos um autor temos que
acreditar nele, a convicção parte da sinceridade, o que logo nos leva ao
movimento necessário de ética literária de combater ou derrubar qualquer poesia
postiça, forçada e muitas vezes falsamente emocional ou emocionante, feita para
incautos. O escritor tem o dever aqui de suspender a incredulidade. E tal
convicção, por fim, não deve estar presente apenas na poesia, como também na
prosa. No caso da prosa, por sua vez, este caráter de convicção tem de vir dos
personagens.
Borges então nos diz, na poesia, que a verdade da poesia vem
do sentimento do poeta, a palavra e o verso verdadeiros, estes são os que
permanecem no processo histórico, no que temos, seguindo o texto borgiano, o
seguinte : “Nesse sentido, escritores como Góngora, John Donne, William Butler
Yeats e James Joyce estão justificados. Suas palavras, suas estrofes podem ser
afetadas; nelas podemos achar coisas estranhas. Mas somos levados a sentir que
a emoção por trás das palavras é verdadeira.”
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/borges-pensamento-e-poesia