PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 18 de março de 2020

CONQUISTA DO INÚTIL : A SAGA NATURALISTA DE HERZOG


“Herzog e sua equipe foram com dois guias com machetes explorar a cumeada do istmo entre os rios Camisea e Urubamba”

Werner Herzog teve que ir a Lima desmentir boatos sobre o que acontecia na sua filmagem, pois, por exemplo, corria a notícia, segundo o Lima Times, de que a equipe de Herzog havia mandado quatro índios para a prisão, e de que os índios estavam sendo maltratados, e de que suas plantações foram arrasadas. Herzog enfrentou acusações que ele considerou sem lógica e que chamou de “teatro do absurdo”.
Herzog continuava enfrentando problemas de organização e financiamento, chegou a refletir sobre si mesmo, de modo objetivo, como alguém que tinha uma visão que levaria a aniquilação de si mesmo, Herzog tenta entender como tinha chegado ao ponto em que estava, e ele achou de si, contudo, “tranquilizador o fato de eu ainda respirar”.
Herzog então fica sabendo de novas notícias que agora associavam a sua equipe a negócios com armas e drogas. Herzog então chegou a Napuruka, e foi confirmar se era verdade a história que corria de que iam matar ele quando ele chegasse lá. Enfrentou o Consejo de Aguarunas, e logo a discussão virou algo cartorial, com leituras de resoluções e comunicados.
Na verdade, esta capa burocrática tinha a intenção de retirar Herzog e sua equipe de Wawaim, este conselho tinha a pretensão de controlar grande parte daquela região, e Herzog questionou o tal conselho dizendo que os habitantes de Wawaim nunca tinham ouvido falar neles, e que eles não tinham controle sobre a região, e os que sabiam da existência do conselho, o rejeitavam.
A situação de Herzog era cada vez mais complexa e periclitante, aqui está seu resumo até o ponto em que estava : “Oito meses apagados, como se eu não quisesse que tivessem existido. Um ano de catástrofes, do ponto de vista pessoal e do trabalho. O acampamento no rio Marañón, depois de abandonado, exceção feita ao posto médico, foi incendiado por aguarunas do conselho indígena. Fotógrafos da imprensa de Lima foram convidados a cobrir o acontecido. Criminalização da minha pessoa pela mídia – um tribunal grotesco contra mim na Alemanha.
Mesmo assim, continuei o trabalho, sabendo, talvez apenas esperando, que o tempo consertaria as coisas, que os fatos, com o tempo, sobreviveriam a tudo isso. Preocupações financeiras. Eu estava tão por baixo que não tinha mais o que comer. Vendi dois vidros de xampu dos Estados Unidos na feira em Iquitos para comprar quatro quilos de arroz; com eles, pude me alimentar durante três semanas. Minha filha nasceu; algo belo vai permanecer.”
Herzog segue o seu périplo, recebe fotos e notícias de César de Ucayali, e são ruins, Herzog não conseguia encontrar a sua locação para a filmagem da cena do barco, e as opções na região estavam se escasseando. Herzog continuava procurando um cenário possível, recebe fotos aéreas de todo o Ucayali, do Tambo e da Pachitea.
Herzog se decepciona com o rio Pachitea, segundo ele, “durante todo o caminho até Puerto Inca há uma chakra e um pasto atrás de outro. Os poucos pontos mais íngremes entre as curvas do rio são quase verticais com elevações que parecem planaltos”. A esta altura, os rios Pachitea e Huallaga já haviam sido descartados, o que restava como últimas tentativas de encontrar um cenário do filme eram os rios Picha, Camisea e talvez o Mishagua, tudo sendo analisado ao sobrevoar o rio Ucayali/Urubamba até as corredeiras, o pongo de Mainique.
Herzog e sua equipe foram com dois guias com machetes explorar a cumeada do istmo entre os rios Camisea e Urubamba, no ponto mais alto a floresta se encontrava muito fechada, a vista da reunião dos rios só seria possível numa plataforma no alto de uma das árvores daquele cume, e Herzog, já exausto, dá um mergulho no Urubamba, mas todos chegam tarde demais para pegar o avião para Picha. Só depois das oito da manhã é que Herzog vai para Picha, mas toda a busca no Picha e no Urubamba não dá em nada, o cenário que Herzog buscava não tinha sido encontrado, de novo.
No bar, em um desolado aeroporto de Pucallpa, uma cena naturalista é descrita mais uma vez pela narrativa de Herzog : “lá há um macaco lindo, preto com braços e pernas infinitos. Ele parece bastante esperto e teria de acompanhar o Fitz. Um bêbado cuspiu no macaco e quase o acertou por trás. O macaco olhou e cheirou demoradamente a meleca vinda das profundezas de um pulmão doente; a meleca estava no chão, verde-amarelada, ainda fumegante. Parecia que o macaco queria comer o cuspe ou no mínimo prová-lo. Eu lhe disse em pensamento, ‘não faz isso, não faz isso’, e ele não fez.”
Chegando em Iquitos, Herzog enviou telegramas para Munique e Los Angeles, para saber de Mick Jagger. Herzog decide então que filmaria em Camisea. E Herzog prossegue a sua narrativa naturalista : “Em Belén, que continua me atraindo sem motivo, uma mulher vendia sopa em um grande casco de tartaruga. Um chinês idoso estava sentado perto, em uma soleira, e fazia movimentos repetitivos, como se puxasse um fio de dentro de seus olhos.
Ele era louco e, portanto, a milhas de distância de qualquer ato humano comum, estava tão radicalmente submerso em um estado à parte, que atraiu não apenas a minha atenção, mas a de todos aqueles que tomavam sopa. Todos olhávamos furtivamente para ele, como se fosse inevitável, e estávamos constrangidos caso alguém nos pegasse em nossa observação.
Eu nunca vira nada semelhante à intensidade com que ele puxava os fios imaginários dos olhos. Quando, mais tarde, passei por ele com minha moto, ele levantou a cabeça lentamente e me olhou de forma tão penetrante e com o rosto tão vidrado de loucura, que tive medo. No caminho, perdi o recipiente trançado que prendera atrás da moto e nem percebi, sempre perseguido por aquele olhar.”

(continua)

(obs : Caros leitores, esta é a segunda parte de textos sobre o livro do diretor de cinema Werner Herzog – Conquista do Inútil, sobre as filmagens de Fitzcarraldo, a primeira parte já foi publicada aqui no caderno de cultura da Século Diário e terá ainda algumas continuações, acompanhem).

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.