PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 27 de maio de 2021

APPLE E FACEBOOK EM GUERRA

 

"não é uma briga de santos que querem servir o usuário, mas uma competição feroz por domínio do mercado"

A Apple colocou em vigor em abril deste ano o App Tracking Transparency, que inaugura uma nova política de privacidade que coloca pressão sobre empresas como o Facebook e o Google para terem maior transparência. Neste novo mecanismo da Apple todos os aplicativos serão obrigados a pedirem autorização dos usuários para a utilização de dados de navegação que envolvam publicidade.

No influxo do lançamento do novo iPhone 12, pacote de assinaturas de podcast e iMac, no novo iOS 14.5 se terá esta nova política de privacidade da Apple estabelecida. Tim Cook fez declarações de defesa da privacidade de usuários, o que levou Mark Zuckerberg, do Facebook, a acusar a Apple de práticas anticompetitivas.

As trocas de acusações que envolvem as Big Techs, por sua vez, não é uma briga de santos que querem servir o usuário, mas uma competição feroz por domínio do mercado de tecnologia, que está na berlinda agora por iniciativas diversas de medidas antitruste. Portanto, a pressão vem de fora, por medidas antitruste e por privacidade, e entre as próprias big techs, que começam a disputar territórios do mercado de tecnologia, com diferentes estratégias.

A Apple afirma que o usuário poderá não conceder o rastreamento, o que deixará zerado o identificador e o aplicativo utilizado por este usuário não poderá obter dados sobre a sua navegação. Tal mecanismo novo da Apple pressiona Google e Facebook, por sua vez, pelo fato destas empresas dependerem fortemente de publicidade para sustentar seus negócios, com um big data imenso.

O Facebook, assim que ficou sabendo do mecanismo da Apple, já em dezembro de 2020, se pronunciou, pretensamente em nome de todas as pequenas empresas do mundo, dizendo : “No Facebook, as pequenas empresas estão no centro de nossos negócios… Muita gente que está à frente de pequenos negócios vem compartilhando preocupações sobre a atualização forçada do software da Apple, que limitará a capacidade das empresas de veicular anúncios personalizados e alcançar seus clientes de forma eficaz”, disse a empresa.

O Google também depende muito do rastreamento de terceiros para alimentar seus negócios de publicidade, mas já tenta melhorar sua política de privacidade, em anúncios conjuntos com a Apple, já promete medidas efetivas para realizar uma forma mais amigável de compartilhamento de dados de usuários, isto é, de um modo menos invasivo.

Neste quesito de uso massivo de dados de usuários, a empresa que parece que vai entrar num impasse e sofrer com limitações será, certamente, o Facebook de Mark Zuckerberg, empresa esta que se acomodou numa falta de inventividade, fagocitando ideias novas dos outros, como nas aquisições do WhatsApp e do Instagram.

A competição entre Facebook e Apple, não é nada mais do que entre esta empresa que agora vive mais do WhatsApp e do Instagram do que de sua comodidade original, e a empresa que teve Steve Jobs e que se tornou uma das fabricantes de eletrônicos mais valiosas do mundo e a quarta maior empresa do setor de celulares.

O Facebook depende muito dos dados de seus usuários para poder personalizar seu conteúdo, receita e publicidade. Por outro lado, a rede social acusa a Apple de realizar a sua própria coleta de dados, numa posição de domínio como dona dos aparelhos, sistemas operacionais e lojas digitais. Diante disto, o Facebook pensa em processar a Apple por práticas anticompetitivas de mercado.

Pode ser que no pior cenário de todos, isto tudo possa terminar nos tribunais, virando tema de fiscalização do Congresso dos Estados Unidos ainda em 2021. Agora já chamam estas disputas e suas possíveis consequências o caminho para um modelo de ética de dados.

Temos leis de proteção de dados já em mais de 140 países, em diferentes estágios de avanço, e este mecanismo novo da Apple vai colocar em prática uma parte dessas leis, e o jogo em que o Facebook se acostumou, certamente a empresa mais acomodada das big techs neste sentido de controle de dados e em uma dependência profunda dos mesmos, tenha que reaprender a jogar, pois a Apple está sendo bem mais esperta.

As leis de privacidade e medidas como a da Apple não vieram para acabar com o big data e a inteligência de negócios web, mas estabelecer um limite e abrir o caminho, agora, dentro das próprias big techs, de uma conciliação entre este big data e uma ética dos dados, com recursos menos invasivos.

A Apple não está sendo benevolente, a sua grande jogada é tentar controlar o Facebook, Google e outras plataformas numa tacada só, e obter o seu próprio controle para benefício próprio, mas tal medida vem no influxo das mudanças de modelos de negócios no mercado web.

Por outro lado, sem o ecossistema de personalização de anúncios, pequenos e médios desenvolvedores serão obrigados a cobrar de alguma forma pelos aplicativos, ou na hora de baixar ou via assinatura. E a Apple se beneficia também disto, pois seu interesse será o de cobrar uma comissão desses desenvolvedores em sua loja, a App Store. Por fim, a decisão da Apple diminui o incentivo a criação de aplicativos gratuitos, baseados no modelo atual.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/apple-e-facebook-entram-em-guerra 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

A POESIA ULTRAMARINA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

“uma poesia que reforça imagens clássicas das viagens ultramarinas portuguesas”

No livro Navegações, de 1983, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen continua com a parte de sua poesia de temática política, e se concentra num tipo de consciência política em que o mar, seu eixo poético supremo, vem com toda a carga histórica.

Sua poesia, neste livro, novamente se depara e enfrenta a realidade histórica do evento político como fonte de uma poesia que reforça imagens clássicas das viagens ultramarinas portuguesas.

Nesta jornada ultramarina aparecem poetas do cânon português como a grande origem da linguagem lusófona que foi Luís de Camões, este que fora o autor incontornável para a poesia portuguesa do clássico livro Os Lusíadas.

Por sua vez, Navegações é um livro que traz descobertas, esta busca das navegações portuguesas por territórios a serem explorados é, também, a produção de um éthos.

Este éthos é uma busca de uma vida plena, que ultrapassa o próprio fenômeno histórico, algo que culmina em imagens como a do marinheiro, e que nos remete a experiências de alto-mar, a vida no mar que se expande  defronte à própria riqueza da natureza.

Aqui temos uma aventura que transcende marcadores socioculturais e convenções ideológicas. Poemas breves compõem este espaço de descrição desta experiência direta, isto é, sem a mediação de limitadores artificiais, estamos aqui diante da natureza pura em alto-mar.

A suspensão ideológica é o resultado desta abordagem poética de Sophia neste livro, e temos, então, a ausência completa de um programa político neste livro, a epifania produzida visa o coletivo, mas não aprisiona a experiência poética num marcador cultural ou político específico, existe neste livro um tipo de liberdade absoluta.

No seu livro, Ilhas, de 1989, temos também o tema da viagem, com as paisagens culturais e geográficas indo além de Portugal e da Grécia, temos poemas de diversas abordagens, como o que fala do Palácio Mocenigo em que se instala o poeta inglês Lord Byron.

Ainda temos um poema chamado Veneza, e vemos o contato do Oriente com o Ocidente, o que se descreve no primeiro encontro entre europeus e japoneses no poema “Os biombos Namban”.  

E o poema mais visceral nos aparece, neste livro, em “Não te esqueças nunca”, em que Treblinka, na Polônia, e Hiroshima, no Japão, são o centro imagético que queima a visão diante da desumanidade da guerra, que no século XX atingiu um nível de barbárie sem precedentes na História humana.

E neste livro Ilhas temos, por fim, este eixo temático da viagem que mistura História, poemas que descrevem lugares, como o citado do Palácio Mocenigo, poemas sobre viajantes, e o poema “Carta (s) a Jorge de Sena”, que fala de um emigrante, que é o retrato de um português legítimo do século XX.  

DE NAVEGAÇÕES

LISBOA : A poeta Sophia se abre a Lisboa ao passo que a cidade se abre em seu poema, no que temos : “Digo :/”Lisboa”/Quando atravesso – vinda do sul – o rio/E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse”. Lisboa que nasce de seu próprio nome, se expande neste poema, no que vem : “Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna/Em seu longo luzir de azul e rio/Em seu corpo amontoado de colinas -/Vejo-a melhor porque a digo/Tudo se mostra melhor porque digo/Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência/Porque digo/Lisboa com seu nome de ser e de não-ser”. A sensação da poeta é que ao dizer o nome de Lisboa esta se fixa no poema e em sua realidade, no que temos : “Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata/Lisboa oscilando como uma grande barca/Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência/Digo o nome da cidade/- Digo para ver”. Aqui o sentido da visão se dá através de dizer o nome Lisboa. A poeta faz ver ao dizer o nome desta cidade.

AS ILHAS : A navegação aqui se dá no percurso do poema até a visão das ilhas : “I : Navegámos para Oriente -/A longa costa/Era de um verde espesso e sonolento”. A descrição marítima e de seu clima se abre e a poeta coloca os versos nesta paisagem que toma a sua visão : “Um verde imóvel sob o nenhum vento/Até a branca praia cor de rosas/Tocada pelas águas transparentes”. As ilhas, então, finalmente aparecem, e o poema celebra : “Então surgiram as ilhas luminosas/De um azul tão puro e tão violento/Que excedia o fulgor do firmamento/Navegado por garças milagrosas” (...) “E extinguiram-se em nós memória e tempo”. Ao fim, diante deste evento, findam-se memória e tempo.

III : A poeta se volta ao luzir da madrugada, no que vem : “À luz do aparecer a madrugada/Iluminava o côncavo de ausentes/Velas a demandar estas paragens”. As paragens e a escuridão dão um clima ao poema, e segue : “Aqui desceram as âncoras escuras/Daqueles que vieram procurando/O rosto real de todas as figuras/E ousaram – aventura a mais incrível -/Viver a inteireza do possível”. Neste tatear da realidade da vida, em sua busca, aqueles que buscaram a face real das coisas conseguiram viver a inteireza do possível, aqui podemos falar da vida plena ou da plenitude como dom e desiderato.

V : A poeta segue em sua visão total da vida, e esta busca no poema revela e alcança este dom ou faculdade de ver a verdade, aqui a exposição do visível em sua forma plena e inteira é, propriamente, o que temos como o verdadeiro : “Ali vimos a veemência do visível/O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro”.

VII : A poeta Sophia abre as singraduras da navegação, e o poema aqui se enuncia : “Outros dirão senhor as singraduras/Eu vos direi a praia onde luzia/A primitiva manhã da criação” (...) “Eu vos direi a nudez recém-criada/A esquiva doçura a leve rapidez/De homens ainda cor de barro que julgaram/Sermos seus antigos deuses tutelares/Que regressavam”. As origens são evocadas, uma realidade nua, que acabou de ser criada, com homens ainda mal saídos da terra, sob deuses tutelares, aqui se descreve poeticamente a criação.

VIII : A poeta, mais uma vez, se coloca em seu sentido da visão, aqui podemos dizer que ela vê com o olho de seu espírito, e que a dá o dom da poesia, e de sua descrição rica, no que vem : “Vi as águas os cabos vi as ilhas/E o longo baloiçar dos coqueirais/Vi lagunas azuis como safiras/Rápidas aves furtivos animais/Vi prodígios espantos maravilhas/Vi homens nus bailando nos areais/E ouvi o fundo som de suas falas/Que já nenhum de nós entendeu mais”. Existe algo que ainda não se entende, a poeta, então, bebe na mitologia, um de seus eixos temáticos : “Vi o rosto de Eurydice das neblinas/Vi o frescor das coisas naturais/Só do Preste João não vi sinais/As ordens que levava não cumpri/E assim contando tudo quanto vi/Não sei se tudo errei ou descobri”. E de tudo que a poeta viu, nem ela mesma pode mensurar ou entender exatamente o que viu.

DE ILHAS

A PRINCESA DA CIDADE EXTREMA OU A MORTE DOS RITOS : Aqui a poeta faz uma viva descrição que tem o clima oriental e mitológico, como se estivesse contando uma lenda, no que temos : “Quando o palácio do rei do Estio foi invadido/Isô princesa da Cidade Extrema/Inclinou gravemente a cabeça pequena/E em seu sorriso de coral os dentes brilharam como grãos de arroz”. A riqueza dos versos é compatível com todo o requinte que envolve a temática : “Quando levaram sua colecção de jades/O seu leito de sândalo/O sorriso franziu sua narina fina/Suas pestanas acenaram como borboletas” (...) “Quando levaram suas jarras vermelhas seus livros de estampas” (...) “Ela continuou flexível e serena/Suas pestanas aplaudiram como leques pretos/Seus lábios recitaram a sentença antiga :”. A poeta agora enuncia a filosofia da princesa, que faz um breve provérbio, no que vem : “Aquele que é despojado fica livre”. E esta princesa se vê, qual seu provérbio, na surpresa que este poema oferece : “No lago viu-se/Ela mesma era/Flexível e brilhante como seda/Fresca e macia como jade/Colorida e preciosa como estampa” (...) “Serena como seda dormiu nessa noite sobre esteiras” (...) “Porém a aurora do tempo novo despontou na cidade”. E a princesa acorda de seu transe, no que vem : “Quando ela acordou/O cortejo das mãos não acorreu/A mão que acende o incenso/A mão que desenrola o tapete/A mão que faz cantar a música das harpas/A longa subtil mão precisa que pinta o contorno dos olhos/A mão fresca e lenta que derrama os perfumes”. E a poeta Sophia aqui discorre sobre os limites dos dons humanos, remetendo ao mundo dos deuses, no que temos : “Mão nenhuma invoca o espírito dos deuses/Protectores do tecto/Mão nenhuma dispõe o ritual antiquíssimo que introduz/O fogo linear do dia/Mão nenhuma traça o gesto que constrói/A forma celeste do dia”. E a princesa, acordada, agora terá que dar conta sem o concurso da divindade, com as suas próprias forças e dons, no que segue o poema : “As vozes dizem :” (...) “Ergue-te sozinha/Não és ídolo não és divina/Nenhuma coisa é divina” (...) “Como seda no chão cai desprendida/Assim elas esvaída/Quando a si torna não torna à sua imagem”. O poema segue, então, e os deuses aparecem, mas a princesa está em si e em seus próprios desafios, como é a vida : “Suas mãos tacteiam o ar/Muito alto ouve ranger o céu/São os deuses rasgando suas sedosas bandeiras de vento” (...) “Para não ouvir o silvo dos gumes acerados/Mergulha no lago até ao lodo/Depois flutua muitos dias/No centro da corola que formam/Os seus largos vestidos espalhados”.

NÃO TE ESQUEÇAS NUNCA : O poema descreve o mundo antigo e divino, no que vem : “Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina/O pinhal a coluna a veemência divina/O templo o teatro o rolar de uma pinha/O ar cheirava a mel e a pedra a resina/Na estátua morava tua nudez marinha/Sob o sol azul e a veemência divina”. Agora, ao fim, o desencanto, terra sem deuses, as cidades da desgraça da guerra, em seus extremos : “Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima/O horror o terror a suprema ignomínia”.

OLÍMPIA : A mitologia, mais uma vez, predomina como tema na poesia de Sophia, no que temos : “Ele emergiu do poente como se fosse um deus/A luz brilhava de mais no obscuro loiro do seu cabelo”. Todo o clima do mundo antigo e a paisagem aqui se dão no poema, e segue : “Era o hóspede do acaso/Reunia mal as palavras/Foram juntos a Olímpia lugar de atletas/Terra à qual pertenciam/Os seus largos ombros as ancas estreitas”. O casal então se dispersará, e o poema abre como o mar em seu canto : “Ela viu-o depois ficar sozinho em plena rua/Subitamente jovem de mais e como expulso e perdido” (...) “Porém na manhã seguinte/Entre as espalhadas ruínas da palestra/Ela viu como o corpo dele rimava bem com as colunas/Dóricas” (...) “De qualquer forma em Patras poeirenta/No abafado subir da noite/Tomaram barcos diferentes” (...) “De muito longe ainda se via/No cais o vulto espesso baloiçando esguio/Que entre luzes com as sombras se fundia” (...) “Sob a desprezível indiferença/Não dela mas dos deuses”. A existência habita aqui em meio a uma indiferença, que também vem dos deuses.

A ESCRITA : O poema de Sophia descreve aqui a vida nababesca do poeta inglês Lord Byron, que podia desfrutar de seu grande espaço, de suas salas, e de seu tempo livre, no que temos : “No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho/Lord Byron usava as grandes salas/Para ver a solidão espelho por espelho/E a beleza das portas quando ninguém passava” (...) “Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital/Mas a escrita exige solidões e desertos/E coisas que se veem como quem vê outra coisa”. A relação dos grandes espaços, da solidão e dos vazios, com a criatividade, também aparecem neste poema de Sophia sobre Byron, no que temos : “Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa/Imaginar o alto pescoço espesso/A camisa aberta e branca/O branco do papel as aranhas da escrita/E a luz da vela – como em certos quadros -/Tornando tudo atento”.

ESTÁTUA DE BUDA : A descrição da vida de Buda inicia o poema, a sua renúncia, e o poema termina com a visão de sua estátua no museu, no que temos : “Os belos traços o inchado beiço a narina fina/O torneado corpo e sua/Beleza tão carnal de magnólia e fruto/Em tão longínqua latitude representam/O príncipe da perfeição e da renúncia” (...) “Antes do museu/Em sua frente/Oscilavam sombras e luzes enquanto deslizava/O rio das preces”.

DEDICATÓRIA DA SEGUNDA EDIÇÃO DO CRISTO CIGANO A JOÃO CABRAL DE MELO NETO : A poeta Sophia aqui se volta, mais uma vez, a seu amigo  e também poeta, o brasileiro João Cabral de Melo Neto, no que vem : “I - João Cabral de Melo Neto/Essa história me contou/Venho agora recontá-la/Tentando representar/Não apenas o contado/E sua grande estranheza/Mas tentando ver melhor/A peculiar disciplina/De rente e justa agudeza/Que a arte deste poeta/Verdadeira mestra ensina”. E o poema exato e frio da dicção cabralina, também não deixa de alucinar, e a poeta cita Cesário Verde, como uma possível comparação, no que temos : “II – Pois é poeta que traz/À tona o que era latente/Poeta que desoculta/A voz do poema imanente” (...) “Nunca erra a direcção/De sua exacta insistência/Não diz senão o que quer/Não se inebria em fluência” (...) “Mas sua arte não é só/Olhar certo e oficina/E nele como em Cesário/Algo às vezes se alucina” (...) “Pois há nessa tão exacta/Fidelidade à imanência/Secretas luas ferozes/Quebrando sóis de evidência”.

CESÁRIO VERDE : A poeta Sophia aqui faz um poema como se Cesário Verde descrevesse a sua própria dicção poética, num poema bem curioso, no que temos : “Quis dizer o mais claro e o mais corrente/Em fala chã e em lúcida esquadria/Ser e dizer na justa luz do dia/Falar claro falar limpo falar rente”. O mesmo tema da fala fria que, em seguida, alucina, dita no poema anterior, aqui se repete, no que vem : “Porém nas roucas ruas da cidade/A nítida pupila se alucina/Cães se miram no vidro da retina/E ele vai naufragando como um barco”. E a vida urbana e decadente toma a poesia de Cesário, por fim  : “Amou vinhas e searas e campinas/Horizontes honestos e lavados/Mas bebeu a cidade a longos tragos/Deambulou por praças por esquinas” (...) “Fugiu da peste e da melancolia/Livre se quis e não servo dos fados/Diurno se quis – porém a luzidia/Noite assombrou os olhos dilatados” (...) “Reflectindo o tremor da luz nas margens/Entre ruelas vê-se ao fundo o rio/Ele o viu com seus olhos de navio/Atentos à surpresa das imagens”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-poesia-ultramarina-de-sophia-de-mello-breyer-andresen