PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 15 de março de 2015

SUPERTRAMPO

“As revoluções dos versos vão de encontro com uma muralha inexpugnável, na qual a forçação de barra vai ao limite, tornando-se intolerável.”

   Charles Peixoto é poeta e roteirista, e se firmou na década de 1970 como um dos expoentes da poesia marginal, e membro do coletivo Nuvem Cigana, que deu o que falar em pleno auge da ditadura no Brasil. Sua estreia como poeta se deu ao lançar o livro mimeografado “Travessa bertalha 11”, ao que se seguiu “Creme de Lua”, “Perpétuo socorro”, “Coração de cavalo” e “Marmota platônica”. Na década de 1980, Charles Peixoto começou a atuar como roteirista na Rede Globo, o que incluiu seu trabalho para a lendária série Armação Ilimitada, ícone da década de 1980, e depois com a novela teen Malhação.
   Charles Peixoto é considerado um dos fundadores da chamada “geração mimeógrafo”, grupo de poetas que trouxe à poesia, através da denominação de poesia marginal, e com a contribuição da Nuvem Cigana, a linguagem coloquial, cotidiana, tirando a poesia de seu gabinete, e levando, através de uma expressão mais coletiva do que de autor, a poesia para as ruas e a declamação.
   A linguagem pop também seria uma das marcas dos poemas de Charles Peixoto. O que, mais recentemente, o levou a ser um dos escolhidos para a conhecida coletânea “26 poetas hoje”, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, que tirou os poetas marginais do underground e os trouxe para o mainstream.
   E, por sinal, dos livros de Charles Peixoto, podemos dizer que seu primeiro lançamento comercial, de fato, foi em 1985 com “Marmota platônica”. Livro que reunia material novo e obras anteriores do poeta. E, depois de um hiato de quase três décadas sem publicar, Charles Peixoto reaparece em 2011 com o livro de poesia “Sessentopeia”. E agora, com “Supertrampo”, temos o livro que reúne a obra do poeta desde seu primeiro livro, também incluindo, até, poemas esparsos recolhidos da imprensa e outros inéditos.
   A chamada poesia marginal, nos anos 1970, teve como epicentro a zona sul do Rio de Janeiro. E os poemas de Charles Peixoto refletirão, em geral, uma poesia de concisão, objetividade, e o romantismo de Charles terá referências heterodoxas, tais como os crimes passionais, os dramas familiares, os casos de polícia, tudo num conteúdo urbano e numa forma que coloca a rapidez das expressões breves como a urgência deste ser que está, em plena década de 1970, entre o sol de Ipanema e as sombras da ditadura militar.
   A poesia marginal é engajada, e mesmo dentro do contexto do desbunde, há uma expressão política, que mescla tal contracultura com o compromisso da arte de perturbar o status quo, não só com diversão, mas também com o necessário e preciso pendor para refletir sobre a devastação do mundo político e real. Os poemas de Charles Peixoto têm este teor de urbanidade, brevidade, exigência do coloquial e do mundano, poesia de rua, feita para a rua, e que, com a Nuvem Cigana, tem no coletivo de rua, e não no autor de gabinete, o seu sentido maior. E, em Charles Peixoto, isso se traduzirá com o desregramento social e afetivo, com um artesanato das coisas cotidianas, o mundano mais fundamental do que o estrito pendor literário.
   É com o lançamento recente de Supertrampo que temos toda a poesia de Charles Peixoto reunida, o que vai do ano 1971 até 2014. Os livros do poeta são elencados cronologicamente neste livro, o que começa, então, pelo Travessa bertalha 11, e que tem versos como: “você podia sentar/acender um cigarro/conversar sobre a sorte das pessoas/sobre como elas perderam tantas coisas/sobre o que eles perderam/eles não entenderiam/ ... que moral e imoral não são deus e o diabo/que as pessoas nascem sem saber de nada” (travessa bertalha 11, pg.15, Supertrampo). Charles Peixoto, nestes versos, coloca o destino coletivo na frente, o sentimento de perder, que é comum a muitos, e além disso, o termo moral e imoral como criação humana, demasiado humana, em que Deus e o Diabo não estão em guerra, mas o Homem. E o termo deste conflito está na sensação básica, racional se citarmos Sócrates, de que o Homem nasce sem saber e morrerá sem saber. O tudo que sei é que nada sei, então, corrobora este sentimento de perda, que é ausência, e que se configura como destino, a sorte das pessoas que perdem e não sabem o porquê, todos nascem com esta fratura da incompreensão, como fator humano por excelência.
   Continuando a leitura de Travessa bertalha 11, aparecem, em seguida, versos como: “eu detestava olhar pras pessoas/sempre no mesmo lugar ... aí enchi o saco e fui ser deus” (travessa bertalha 11, pg.21, Supertrampo). Da constatação do destino inexorável, da fratura existencial que coloca o Homem como ignorante, temos agora a esfera da decisão, Charles Peixoto entra então num sentimento de inconformismo, e como poeta passa a detestar a acomodação das pessoas, “sempre no mesmo lugar”, e decide de um súbito ser Deus. O poeta escreve para alcançar a divindade, e sai assim do lugar comum das pessoas, lugar inscrito na fratura existencial de uma dimensão única: o ser igual e comum que nada apronta, como diria Waly Salomão. E a decisão de ser Deus é o entendimento de que a poesia salva, pelo menos os poetas.
   Em Creme de Lua, temos os versos: “o poeta é um atravessador de paredes/fantasma de si mesmo” (creme de lua, pg.38, Supertrampo). E agora, Charles Peixoto sai de sua divindade, a poesia é um simulacro do que os deuses veem ou uma ideação de ser deus que não livra o poeta da fratura existencial, e que se coloca como fantasma de si mesmo. O sobrenatural seria, no caso da poesia e do poeta, mais uma ilusão do que uma realidade, e quando Charles Peixoto decide ser deus na Travessa bertalha 11, agora vê que é um fantasma no livro Creme de Lua.
   Em Perpétuo socorro, a aventura de Charles Peixoto dá seguimento: “na minha cabeça não tem ideia de mofo/nem farsa modernista/ tem minhocas oportunistas/empapuçadas de terra”, e que segue, “sou mais chegado ao escracho que ao desempenho/mais chegado à música que à porrada/mais chegado ao vício que à virtude/” (perpétuo socorro, pg.43, Supertrampo). Aqui temos mais dilemas, e novas decisões. O poeta se revolta com o mofo das ideias antigas. A geração da poesia marginal terá este fastio como marca, e Charles Peixoto se afirma agora como poeta de vícios. A virtude da divindade é invertida, a música ao menos o redime da porrada, e o humor, o escracho, são maiores que qualquer deus da “grande obra”.
   O saco cheio do poeta se traduz, agora, como um ser mundano. Seu lugar é novo, diverso das pessoas que sempre ficam no mesmo lugar, mas a realidade é a mesma, a amplidão é só o cotidiano, a poesia é seu simulacro de vida, mais mundano, é a Nuvem Cigana na rua, e o poeta como deus do ordinário.
   Ao que segue, ainda em Perpétuo socorro, os versos: “nenhuma compaixão/paixão é perpétuo socorro” (perpétuo socorro, pg. 50, Supertrampo). A compaixão é vertida em paixão, o socorro do poeta sai do ideal compassivo (divino), e mais uma vez se coloca na dimensão mundana, em que a ilusão da poesia se dá bem com uma ilusão maior ainda, a paixão, e isso como seu socorro, perene, perpétuo.
   Na abertura de Coração de cavalo, pg.55 de Supertrampo, temos um dos trechos mais bonitos do livro: “a poesia alimenta revoluções/é o vira-lata esperto na mira da caça/a poesia é a criação mais barata/a situação mais delicada/o tombo mais alto/porque os palhaços pensam que têm/cabeça de borracha”. A mira da caça é o poeta, o vira-lata é o poeta, a revolução é o poeta, e isso numa criação barata, e num alçar voo inconsequente, pois do tombo, o poeta pensa que sai ileso, tem a cabeça de borracha. É palhaço, fantasma, divino, e aqui o cotidiano é delicado, o fio da navalha encarna a revolução que é mais barata que tudo, e ainda tá na mira, como caça, como provocação.
   Ainda em Coração de cavalo, temos: “cansado de tanta interferência/por um pouco de calma/eu lembro de quando tinha muito menos forçação de barra” (coração de cavalo, pg.78, Supertrampo). O poeta quer fazer seu simulacro, quer se realizar na ilusão, é um fantasma, um palhaço, consciente de que a fratura existencial das pessoas que não saem do mesmo lugar podem prejudicá-lo. Pois agora o conflito vira guerra, e a tática do homem unidimensional é a interferência. As revoluções dos versos vão de encontro com uma muralha inexpugnável, na qual a forçação de barra vai ao limite, tornando-se intolerável. E o poeta a denuncia.
   Em Coração de cavalo, a denúncia segue, mais clara que água: “abaixo a linha dura/qualquer linha/o que der na telha/deixa a gente feliz/bazta nazi manzanas” (coração de cavalo, pg.80, Supertrampo). Aqui, a ditadura militar é citada, e a interferência ou forçação de barra ganha nome e endereço: a linha dura. Aqui o nazi é a resistência do homem unidimensional que torna o político em autoridade, o grito de liberdade em afogamento, num verbo em que a palavra livre se esquiva e fala baixinho para não morrer.
   O “forçador” é máscara, e o fantasma do poeta assombra com suas revoluções o seu ser deus que tem a tarefa de denunciar a fratura ignorante que é a farsa da ordem. Denúncia da mentira como virtude que não sai do lugar, e o poeta, enquanto isso, e apesar disso, faz o que der na telha, provocação e libertação denunciam a letra unívoca da verdadeira cabeça de borracha: a ditadura militar, aonde que tem cabeça é preso.
   Já no primeiro lance comercial de Charles Peixoto, o Marmota platônica, aparecem versos desta estirpe: “mais uma vez pulei dentro da minha nave sonâmbula/intitulada marmota platônica/e fiquei julgando ouvir estrelas” (marmota platônica, pg.102, Supertrampo). A ilusão do poeta, seu simulacro, evoca um dos ases da poesia antiga, Olavo Bilac, o senso comum é derrotado pela loucura de ouvir estrelas.
   O poeta marcha na sua insensatez sensata de colocar a ilusão na ordem do dia, e aqui sai do mesmo lugar de sempre do homem unidimensional, e se realiza verdadeiramente, levando uma vida mais autêntica, em que saber do próprio talento, tê-lo como ofício, faz do simples simulacro um projeto de vida, e com a palavra verdade como diferença, afirmação.
   A marmota platônica, seu mundo de ideias, torna o mundo diferente, em que ser sonâmbulo e ouvir estrelas é normal, e mais que isso, esta ausculta se faz como lugar de senso crítico que não vê só o que se apresenta como tangível. A nova visão sonâmbula é a visão do transe, em que a verdadeira vida eclode. Enquanto o simulacro cabe mais, agora, ao homem unidimensional que ao poeta, o qual já vê a luz, as estrelas, e, veja que ousadia, ouve tudo, como se o transe fosse o átimo de sentido que falta ao mundo que não sai do lugar.
   Em Sessentopeia, livro de Charles Peixoto lançado em 2011, aparece novamente este estado alterado da mente, que é sonho, delírio e transe: “sessentopeia/sacripanta sensual a se insinuar através do tempo/sonhos selvagens/paixões suicidas/noites de loucura ... sessentopeia/sismograma de um cérebro em surto/páginas da biografia secular de um recém-nascido” (sessentopeia, pg.121, Supertrampo). Aqui, a noite de loucura em que se ouve estrelas tem a imagem firme do renascimento. O poeta, agora recém-nascido, olha o novo mundo, a loucura é a performance de uma realidade que o estreito caminho do homem unidimensional sequer suspeita, pois foi adestrado no tangível, e acha que o simulacro é a realidade.
   A marmota platônica, a alegoria da caverna, é colocada novamente em Sessentopeia, e o neologismo é criação de simulacro, só que com mais pé no real do que o senso comum dos que não saem do lugar. O cérebro em surto faz as cores do novo mundo, e nada será mais tão conforme ao que o idiota da objetividade espera, pois a poesia não se ocupa do simulacro da unidade conforme ao preestabelecido. A poesia cria a ausculta, na poesia se ouve estrelas, e o mundano tem mais cor e som do que imagina (não imagina?) o homem unidimensional.
   Já nos poemas novos de Charles Peixoto, o Supertrampo propriamente dito, temos: “assim vigora o temor febril/evidente que não fazemos parte dessa galáxia/extratelurianos são compatíveis/nada improváveis/polêmica relação entre poetas e lunáticos” (pg.187). E que finaliza o trajeto com : “poesia é bom/eleva o espírito/burila o sentimento/traduz a amplidão/e o que de tão pequeno/evapora no fim da tempestade” (pg.193). Charles Peixoto encerra seu Supertrampo com o diálogo surreal entre o poeta e o lunático. Estes são extratelurianos de outra galáxia, em que o senso comum é uma piada, e o sensato mora nas estrelas e tem ausculta nobre e diz que poesia é bom, como seu último pecado e blasfêmia contra o homem unidimensional.  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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