“Verlaine ficou como uma herança na poesia francesa de
caráter sincero e de comoção estética.”
BIOGRAFIA
Paul Verlaine nasceu em 1844 em Metz, no leste da França, e fez
os estudos secundários em Paris, entrando em seguida como funcionário para a
prefeitura. No entanto, Verlaine foi um funcionário relapso e nada assíduo,
preferindo se perder na boêmia dos cafés parisienses. E é neste ambiente boêmio
que Verlaine descobre a poesia, em que juntou o paradoxo entre a vida boêmia
própria de poetas dissipados, com a ideia cara de pureza e de um senso místico.
“Poèmes Saturniens” ("Poemas Saturninos”, de 1866) foi o
primeiro trabalho de poesia publicado por Verlaine. Em sua poesia, Verlaine
começou por uma expressão parnasiana, de um caráter impassível, numa condução
que lhe conferiu um instinto poético para uma habilidade especial na confecção
de alexandrinos, numa utilização de ritmos ímpares com estrofes evanescentes. E
como fortuna crítica, a obra poética de Verlaine ficou como uma herança na
poesia francesa de caráter sincero e de comoção estética.
O lirismo musical e evanescente de Verlaine se torna, logo a
seguir, uma influência muito importante e decisiva para o que viria a ser o
simbolismo, mesmo com Verlaine tentando se manter distante de correntes
literárias e de manter um caráter individual de seu trabalho poético que, no
entanto, foi uma poesia que abriu caminhos novos para a poesia francesa que
viria à lume nos próximos anos. E, numa perspectiva histórica, Verlaine se
juntaria a Mallarmé e Baudelaire no que viria a ser denominado o grupo dos
poetas decadentes.
Inquieto e instável, Verlaine teve por algum tempo um certo
equilíbrio e paz de espírito, e foi quando se casou com Mathilde Meauté em 1870.
Porém, dois anos depois, Verlaine abandonou a mulher e o filho e retomou os
seus antigos hábitos, mergulhando na boêmia, e foi neste momento que conheceu o
jovem poeta francês Arthur Rimbaud, que gerou uma turbulenta ligação
sentimental que os levou a percorrer vários países europeus, numa saga poética
e biográfica intensa.
POEMAS:
MEU SONHO FAMILIAR: Verlaine começa seu poema com uma
mistura nostálgica do amor com a ideia de que se há uma única mulher para amar
ou mais outras, no que vai em verso, deste modo: “Sonho às vezes o sonho
estranho e persistente/De não sei que mulher que eu quero, e que/me quer,/E que
nunca é, de fato, uma única mulher”. Seu sonho, então, não se sabe bem ainda o
que quer, ou que visão escolher, em seu misto de fuga e encontro, ele ainda não
identificou fisicamente a figura feminina, e aqui a evanescência da forma
poética se junta ao ar rarefeito do conteúdo do poema, muitas vezes indeciso e
errático: “Se é morena, ou se é loira, ou se é ruiva – eu/Ignoro./Seu nome? É
como o nome ideal, doce e sonoro,/Dos amados que a Vida exilou para além.”. E,
no meio da dúvida de Verlaine, como poesia se tem algo certo, que é a correção
de sua percepção, própria de poeta, de que é um nome só, embora numa visão de
exílio em que se perde tal vista, e que o poema se encarrega de sempre
situar-se isto num além, aqui creio eu em sentido imaginário mais do que
espiritual.
CANÇÃO DE OUTONO: Neste poema, que se dá como canção
poética, num título evocativo de estação, Verlaine compõe, num sentido calmo: “Estes
lamentos/Dos violões lentos/Do outono/Enchem minha alma/De uma onda calma/De
sono.” E continua: “E soluçando,/Pálido, quando/Soa a hora,/Recordo todos/Os
dias doudos/De outrora.” (...) “Vou pela vida,/Folha caída/E morta.”. O poema
ganha o caráter de folha caída e morta do outono, e o ar calmo contrasta com o
soar da hora em que a memória lembra de dias loucos de outrora, e a calma da
estação de outono não olvida, portanto, das turbulências da memória do poeta.
O AMOR POR TERRA: O poema começa, em sentido de
perdição, nas agruras do amor por terra, como diz o poema, que se abre assim: “O
vento derrubou ontem à noite o Amor/Que, no recanto mais secreto do jardim,/Sorria
retesado o arco maligno, e assim/Tanta coisa nos fez todo um dia supor!”. A
ideia vem plural, a suposição é multifacetada, é o amor amplo que o vento
derrubou, e que segue no poema: “É triste o pedestal, onde o nome do artista/Já
mal se pode ler à sombra da ramagem.”. O nome do poeta está em sentido
evanescente, e tem algo nisso que Verlaine vê como triste, e o engenho poético
se salva, pois há beleza em tudo, mesmo no lamento, com que Verlaine termina: “É
triste! – E tu, não é?, ficas emocionada/Ante o quadro dolente, embora olhando
à toa/A borboleta de oiro e púrpura que voa”.
EM SURDINA: O poema começa bem calmo, numa
imagem um tanto pacífica, mas também algo melancólica, no que temos os versos: “Calmos,
na sombra incolor/Que dos galhos altos vem,/Impregnemos nosso amor/Deste
silêncio de além.”. E ganha ares otimistas, e se torna, então, um poema
convidativo: “Juntemos os corações/E as almas sentimentais,/Entre as vagas
lassidões/Das framboesas, dos pinhais.”. E o convite ganha iluminação, própria
dos poetas, quando estão bem: “Deixemo-nos persuadir/Pelo sopro embalador/Que
vem a teus pés franzir/As ondas da relva em flor.” Nada mais do que a beleza,
no sentido lato, a conduzir a luz que mora no poeta, este que não vê só sombra,
mas que tem na sua intuição poética a sua fonte de luz, e que, mesmo na noite,
vê um alento, e se faz também como tal, em sua pena criativa: “A noite solene,
então,/Dos robles negros cairá,/E, voz da nossa aflição,/O rouxinol cantará.”.
Aqui, mesmo na aflição, o poeta vê um rouxinol, nada mais iluminado do que ver
esperança no que muitos só veem como desassossego da alma. E o poeta, mesmo
dolorido muitas vezes, nunca deve perder tal luminosidade.
COLÓQUIO SENTIMENTAL: O poema tem este sentido de resgate,
em que temos juízos, e se coloca como uma conversa, cercada de visões
contraditórias, o diálogo neste poema mantém uma tensão em que a existência
joga entre certo apego e uma visão de liberdade poética que tenta ser salva: “No
velho parque frio e abandonado,/Duas formas passaram, lado a lado./Olhos sem
vida já, lábios tremendo,/Apenas se ouve o que elas vão dizendo.” (...) “-Lembras-te
bem do nosso amor de outrora?/-Por que é que hei de lembrar-me disso agora?”
(...) “- Ah! aqueles dias de êxtase indizível/Em que as bocas se uniam!” (...)
“-Como era azul o céu, e grande, o sonho!/-Esse sonho sumiu no céu tristonho./Assim
por entre as moitas eles iam,/E só a noite escutou o que diziam.”. Esta tensão,
ao fim do poema, não se dissolve, e o juízo se coloca como nostalgia da
memória, que está repleta de êxtase, e que se encontra no presente com ar
rarefeito, como num céu tristonho, o que o poeta julga como tal, e neste
quesito o poema tem uma visão cristalina, embora nunca definitiva, quando se vê
a vida ampla como um prisma, mas que, neste poema, temos uma posição rígida que
é um juízo sobre a memória de modo definitivo, e algo de angústia ferve a pena
neste poema. O sonho se foi, mas o poeta sempre tem a poesia, e neste sentido,
o poeta tem sorte, pois ter a poesia é ter uma parte do todo que existe.
POEMAS:
DE POÈMES SATURNIENS
MEU SONHO FAMILIAR
Sonho às vezes o sonho estranho e persistente
De não sei que mulher que eu quero, e que
me quer,
E que nunca é, de fato, uma única mulher
E nem outra, de fato, e me compreende e sente.
Compreende-me, e este meu coração,
transparente
Para ela, não é mais um problema qualquer,
Só para ela, e meu suor de angústia, se quiser,
Chorando, ela transforma em frescura envolvente.
Se é morena, ou se é loira, ou se é ruiva – eu
Ignoro.
Seu nome? É como o nome ideal, doce e sonoro,
Dos amados que a Vida exilou para além.
Seu olhar lembra o olhar de alguma estátua
antiga,
E sua voz longínqua, e calma, e grave, tem
Certa inflexão de emudecida voz amiga.
CANÇÃO DE OUTONO
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora.
E vou à-toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.
DE LES FÊTES GALANTES
O AMOR POR TERRA
O vento derrubou ontem à noite o Amor
Que, no recanto mais secreto do jardim,
Sorria retesado o arco maligno, e assim
Tanta coisa nos fez todo um dia supor!
O vento o derrubou ontem à noite. À aragem
Da manhã gira, esparso, o mármore alvo. E à
vista
É triste o pedestal, onde o nome do artista
Já mal se pode ler à sombra da ramagem.
É triste ver ali de pé o pedestal
Sozinho! e pensamentos graves vêm e vão
No meu sonho em que a mais profunda comoção
Imagina um porvir solitário e fatal
É triste! – E tu, não é?, ficas emocionada
Ante o quadro dolente, embora olhando à toa
A borboleta de oiro e púrpura que voa
Sobre os destroços de que a aléa está juncada.
EM SURDINA
Calmos, na sombra incolor
Que dos galhos altos vem,
Impregnemos nosso amor
Deste silêncio de além.
Juntemos os corações
E as almas sentimentais,
Entre as vagas lassidões
Das framboesas, dos pinhais.
Cerra um pouco o olhar, no teu
Seio poisa a tua mão,
E da alma que adormeceu
Afasta toda intenção.
Deixemo-nos persuadir
Pelo sopro embalador
Que vem a teus pés franzir
As ondas da relva em flor.
A noite solene, então,
Dos robles negros cairá,
E, voz da nossa aflição,
O rouxinol cantará.
COLÓQUIO SENTIMENTAL
No velho parque frio e abandonado,
Duas formas passaram, lado a lado.
Olhos sem vida já, lábios tremendo,
Apenas se ouve o que elas vão dizendo.
No velho parque frio e abandonado,
Dois vultos evocaram o passado.
-Lembras-te bem do nosso amor de outrora?
-Por que é que hei de lembrar-me disso agora?
- Bate sempre por mim teu coração?
Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.
- Ah! aqueles dias de êxtase indizível
Em que as bocas se uniam! – É possível.
-Como era azul o céu, e grande, o sonho!
-Esse sonho sumiu no céu tristonho.
Assim por entre as moitas eles iam,
E só a noite escutou o que diziam.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31359/17/paul-verlaine-a-voz-dos-botequins-e-outros-poemas-parte-1