PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 27 de abril de 2014

VINDIMA DA LUA

Brinda à tua flama,
o guerreiro tem escudo
no alvor d`aurora.

Finda a tua caça,
o poeta tem os bichos carcomidos
da ossada depois da ressaca.

Olhos pueris das armas,
eu não estou no alvo da flor,
nem penso em me matar,
flor é destino como sol,
e a paz é um brinquedo
nas mãos da criança bêbada
que mistura estrelas
e embaralha sóis.

Febricita a lua,
pois do calmo cais,
a noite é vindima
de lutas carnais.

27/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PLENITUDE DO CANTO

Belo canto da águia americana
febricita meus cristais na dor
da fronteira ao nada

eu leio a tua sorte
na taça de vinho
não tenho presságios
de morte
e nem leituras devassas
das pernas que passam
não vou ao certo do que sou
uma vez que o inaudito
é o tempo em seu salto

Belo canto atávico
ouropel de fantasia
barquinho ao mar
puro vento
ao relento

eu sou o mesmo poeta
que se virou
em verso
com
um plenilúnio
em meus lençóis

27/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SECO SOL

A escuridão total
remexe os sinos
eu leio a bula na
minha veia
retiro as palavras do poço
sem fundo
remonto as minhas fundações
com as estrelas fixas
o mundo d`além bem longe daqui
e o riso da terra
como a nave dos sóis
na lida mortal
de poesia com cal
e o mentor da alma
com o sonho imberbe
de suas joias levantadas
e leilão de carros
as figuras bizarras
do anúncio
como uma corda puxada de caos
e o pórtico da dança
na minha reza estoica
como um candelabro
de velas derretidas
de uma paixão livresca
ao delírio de flor
que o sol secou.

27/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

CAMINHO RETO

Dálias fumegantes conversam entre si
na minha taça de absinto
com o certo espasmo
ao bruto torpor de heroína
espero o canto final
de quando o mundo estará
fora de si
e espero o dólar na minha janela
vendo o Oceano Pacífico
furioso de corte profundo
como o vale de lágrimas ao ócio
ao entender a fórmula dos mares
que são frios de noite
e tropéis de fogo
no Monte Meru
e lírios campos de roto fulgor
e martírios espero mais
e lânguidos sóis de dezembro
espero a morte vivendo
de poesia e o prêmio de poeta
no cais misterioso
de uma praia esquecida
e espero a economia crescida
dos fenos e das canas bravas
como a vinha ao brumar com o dia
e a gotícula de ardor
nas mãos do literato
e espero minhas flores nascerem
aguardo com a paciência bíblica
o kairós da terra prometida
matar os egípcios nas pirâmides
e espero o outono de lírios roxos
de pernas de fora de astúcia vaginal
e espero o verdor azul
de meus sonhos amarelos
e o palco com patafísica monumental
no surto das bacantes
e o picadeiro com palhaços clowns
e um préstito com fogueira
nos dias mortos
de domingo.

27/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

COSMOLOGIA DAS FORMAS REVELADAS


   I - ritmo

  Falseio o ritmo como ar definido, entre as teorias tortas, fincou uma opala em meu girassol. Clareio tonto, pois do verso contíguo, ao vizinho sol, me lembro que ás de espadas tinha tido na carteira como peste de sorte, retive o noticiário com às vezes dos ossos, faturas divididas entre os mendigos, e o vulgo nefelibata espargindo o sonho parnasiano de tigelas insípidas disfarçadas de andorinhas, cotovias no salão de dança, a carne de Buda na geladeira, tinha a quermesse e o préstito, um enfadonho sol de vermelhidão, pura carne carmesim, diamantes e espadas, selvagens como cimitarras.
   Na pele a cal, fibra muscular, tecido conjuntivo e sangue. Vértebras suculentas de espasmos na coluna, Akasha e karma, sílfides e raio, chakras e kundalini vulgar. Meio beberrão, assunto de faca corta o altiplano, plasma de espírito errante, floreia com absinto em permuta de caos. Volve a lama, meu corpo com o vinho, a equimose soturna, vigias de minha saturnal, um cadafalso de poltrões, bruma viciada de ermo e névoa, aplaudi o sonho vítreo com o mar das algas em todas as almas, certo o fim, a quimera protuberante como um poema, leve o surto sereno de epilepsia, falta de proteínas, a pele verde-musgo, ontem um ayurveda morreu de starvation, more than this, he wrote in his own skin: "I`m not, ego death!"

II - subterrâneo

   Nêmesis:
Alto o tempo, viscoso o sonho devaneio de si em meio de morte.
Blocos de gelo na cal dessarrumada d`aldeia deserta,
corre o monstro das horas, vinho seco de porrada.
O papel está úmido, o porco vomita têmporas de poeta,
verso vem com uma mão de cannabis, doura a contemplação,
 A nova era aeon vigora vocifera desarmada, concentra como máquina
as outras esferas entram em contato, a língua secreta
nunca é desvelada, o rotos campos se saciam de sevícia
metro torto de reta angulada, a pacífica curva do tempo
corre solta com as palavras de sol e puro tormento
Titãs caem como Lúcifer da montanha, a fera dormita,
é o suicídio da Esfinge.

III - leis kármicas

   Levo os mistérios na página rota de figuras desmentidas, os vinhos não fazem mais cócegas na mente fugidia, eu levo o tempo kármico com o corpo como uma faca em brasa, detenho o vício com o pomar de flores plenas, o mar alvissareiro como aurora na morte de sangue e pau bem dado em cabeça que não reflete, os miasmas caem com os vórtices de energia dissipada, lenhos folgueiam em anáguas de damas devolutas, danço o sentido sepulcral, dor e mentira com os vasos dilatados da alucinação, prenhe o fogo de poema com as estrelas estetas de poemas partidos em pedacinhos, um fragmento sobra como diapasão de Heráclito, não há o estudo profundo, só a citação, um documento vale mais que um pensamento, os arquivos estão repletos, corro com o verso na esquina, deparo-me à rua, finjo morte com asas de coma, vocifero e apaziguo no mesmo instante. Pelo deserto eu tinha a estrada, ao fim a lua e o tempo em escala de clava serpenteada, das dores o empenho maior de sobreviver, corpo estrume e pocilgas possíveis no mar da boêmia, meninos perdidos, sonhos rasgados, sangue jogado ao chão, pestes dopadas de tanto ser, a orgia esparrama sua desilusão, os poetas se tornam alegorias ambulantes, como vendedores de emplastros em ruas bandidas, como a noite é em todo sonho noturno de finda madrugada.

IV - derretimento

   O Ventríloquo:
Não estudava a si mesmo, tinha uma ânsia de citar versos.
Como se espera: De sol ao mar, o fogo de amar,
mas o sonho passou como a fúria d`alma,
as retinas mortiças afundaram de vertigem,
reta a viela, aos olhos a cegueira.
Parto em rumo da minha esfera,
como é a estrada o universo em que se peca,
donde o alvo é tido por sonho, mas é meta carnal.
Não sonhava em si, tinha tido plano de repetir,
como é a estrada já traçada uma curva ao nada.
Não delirava, perdia o instante como quem blasfema.
O poema atávico trançou sete ilusões, o mar de esmero.
Das setas de fogo, morrem as ilusões com os poemas,
é um estudo de corpo, que vai da mão ao papel,
se tinhas em meu peito a morte, não sabias que a carne é viva.
Remendos de planos na austera figura da terra, o chão como liberdade.
Se fincas em doses de absurdos, perde-se o rumo e a alma.

V - joguete

Os delírios são escritos: Venho de longe, do mundo de um canil vertido de cântaros, os limiares se estonteiam, e tudo ao caos fica maior como o poema de luto na cal carcomida da fome, nas águas sem paz da tempestade, nos lírios de chão sem frutos, sem alma de tanto rancor, a luta renhida de lugares, as lutas violentas das almas contra as trevas, o sol ao fim do caminho, como um nirvana de miragem ao êxtase que se esvai como canto do cisne, à vida como é de praxe, aos documentos em dia, ao fátuo sol que se vinga na crença de seu fogo, ao langor que estupidifica o pensamento, à lucidez que horas até tem lugar na barca de Caronte, finda o topázio, amuleto da sorte, era a esmeralda e meu olho na fúria espargida como chuva, ao quedar de tudo deveras rebuscado na paz da juventude, à inocência e a última flor que resta no jardim. O campo violáceo tem vontade de ferro e aço, como é na heroica toada dos versos para o verdugo que se espanta e morre.

VI - jazz

   Flores floreiam nas águas, eu tinha pensando que o karma não é ficha peremptória, os que caem em seus rumos, o fazem de não conhecerem o segredo, pois de dança e surtos, ao mel do sonho tudo é plenitude, e o vago com dor desalmada, ouço doirar a flâmula, pois o desterro é findo, ao claro sol a bruma revive, donde o céu tem mais clareza que na devassidão? Não tenho mais tanto perdão, nem fujo dos horizontes que vejo, ao ver estudos plenos e constantes como os poemas que vejo, ao ver de olhos estupefatos tudo o que vejo, ao clarão como uma bomba, me curvo e beijo a areia, a terra sonhada está próxima, sair de si ao véu de ilusão, sonhar o préstito mais duro do frêmito quando as asas se abrem num salto de sarça e ervas. Logos enterra o templo de Salomão, fuga dos levitas, às espadas das antigas lutas um vão de deuses catapultados, uma hera diante do morticínio, ao tempo desfigurado da razão uma dose envenenada de loucura, como nos tempos de Nabucodonossor, reto o raio, e a salvação na luz do ventre que assusta o pomar tão pacífico de labor e suor sem culpa, aos poemas com vinhos, um pão ázimo de Vedas e manás da arte de tudo ver, aos olhos mais mistério, às palavras as descobertas, ao corpo o descanso, à alma a luz universal, como é o Eu Sou que tudo vê, seu eterno que já foi, seu eterno que será, e seu instante em tudo de si como a plenitude de entender o que se vê, o poema faz exegese, e a sapiência vem das experiências carnais, como a astúcia que morre de seu próprio fogo, e renasce esbelta e se chama frieza austera, o estoicismo das dores domadas, o desejo matemático de uma alma que se vê inteira, e o poema que dança nas mãos de fada, o sonho restaurado de todas as coisas do mundo, o Axis Mundi velho como o sol que o criou.

VII - coda

Grande Circo:
Beberei teu leite, verei a vinha viva do sol posto,
d`aurora à flâmula, os delírios de guerra,
dos olhos a paz funda e sem drama,
os corpos celestes como anjos diamantados,
verdor em toda parte, como o selvagem de Rosseau.

Desta oceânide o plasma de proporção à lógica das fundações,
os mitos cosmogônicos em letras de contos ao desvario,
motor primeiro, metafísica revelada, aos ídolos do teatro
a mão desvendada da imaginação bruta da patafísica,
mecânica dos corpos, a dança viril da força,
e a filosofia para dar brilho ao doutor de pontas afiadas,
refulgir, esparzir, com a goiva dar forma à loucura,
e o vinho deixe secar, como as uvas maduras que dos vinhedos
vem à vindima quando delas as sementes nascem.
Vulgo o sonho de areia, certo o picadeiro em que
os bichos se matam de tanto rir,
ruge a plateia, como no dia em que
o palhaço chorou por doer.

27/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

DESEJO AO SECO SOL

Belo o tempo na antevisão
da catástrofe,
tumulto estético
de estertor,
vulcão inóspito
de amor.

Faz o temporal aos olhos lacrimais,
o poema fenece nas mãos úmidas do caos.
Faz-se de jogral, o poeta e seu mistério.
Faz-se de anjo, o profeta no fim d`alma.

Belo o fim das ruas embaladas de álcool,
dentre os corpos, o desespero,
dentre os sonhos, o rio seco.

Antevisão é a câmara do delírio
em máquina de tempo escasso,
rota arma dos assassinos,
têmpora tonitruante
dos desejos.

16/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PALAVRA RETOMADA

Inculta, o terreno da palavra
ressoa sem fundo,
e deveras lúbrica
é a palavra, paz rota
dos estuários.

Inculto, o poeta não seduz o verbo
em vão, faz do culto seu ritual,
faz do folclore o verso bruto.

Decerto, só a paisagem, nua em tudo
de visão, corte de perfeição aos olhos.

Fina flor, tão inculto o ritual,
culto dos poetas,
morte invernal
de lua,
frase mal acabada
de poesia,
e a cor pautada,
é a palavra
que desanca
sem mais.

16/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

AO NORTE DO FIM

Meu dia finda na queda do fim,
enfim sem rumo,
poeta carmesim.

E o rito, canal de rios, áureo delta,
veste reta em onda,
reta em corte,
forte de norte.

Finda, a alma suicida,
finda, o ser eterno.

Se eu tenho meu fim no meu nada?
Não sei, ao nada eu creio ao além,
e de futuro glorioso,
ao corpo ressurrecto,
não morro de flechada,
não morro de salto,
não morro de fuga.

Se sou poeta, escravo do crepúsculo,
as estrelas vêm,
e se tudo finca como finda,
perco essências nulas
em existência prenhe
de todas as misérias,
perco o fundo escondido,
pois do mistério,
quando eu souber,
já estarei findo.

16/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)


MOSAICO DE MANDALA

Creio no limbo, no inferno cerúleo das almas.
Purga meu semblante em vil diamante.

Oras, se teu verso escansa de sarça,
metro se mede em taça,
vil metal, vilania do ser,
e os corpos se medem em rimas.

Se conta ao pé quebrado,
                            rima ao teu lado.
Se perde em verso livre,
                           não há quem revide.
 Poeta, ao teu semblante solar,
                                    nua e impávida,
                                vento de limiar.

E o dito nunca fala, apenas mostra
                        qual mandala.

16/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)  

LUAR DOS RISOS

Leva-me ao sustento, horror de verso.
Pelo andor a cerimônia se espatifa,
seu barro como corpo,
seu cheiro como alma.

Clangor dos violões,
enfeitiça-me!

Pelos lindos campos:
Ah, a esfera pura do lírio ao luar!

Leva-me, sonho líquido,
às asas, flor e espada,
com o licor dos meus ais.

Vai, pele e bruma,
eu estou em poema de sol,
e o rio deságua
no mar, tanto de dia aurora,
como em crepúsculo
de ardor.

E o poema, frio de lírio,
ao luar se emula,
como dança e como amor.

15/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ALVOR D`SPERANÇA

Donde o cais flerta com minh´alma?
Eis praia, com a concha devota,
palmo d`água, flor espantada.

Eu digo ao ouropel: flerta com meu corpo.

De poema, à bruma estrelada,
cônscio vou ao pórtico,
mesmerizado,
qual nuvem e topázio.

Febre alva, pendor de frio,
cáustico o sonho,
eterno o vinho.

Pelo poema, ao frio espanto,
cai meu acalanto, dor e tempo,
com o corpo fremindo as asas,
e a paz do meu rebento.

15/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PENSAMENTO DO CORPO NU

Pretendo azeitar o pensamento:
                       a nuvem o fato a fotografia
caem das luas as luvas
                  outro dia
                           está no indo e vindo
                                    da paixão,
abra-te coração de possesso,
                       arte heráldica nevrálgica,
o sistema nervoso catalisa
                     todas estas esferas de labor,
como contar gotas d`água,
                a escatologia do fim de mim.

Pretendo cavar o intento:
Flama ondula pelo vento,
descortina o instante,
se a paz claudicante
nerva os olhos,
                  nervou a carne,
sólido é o triste de mim,
        caio que nem vinho
        sobre o corpo sem poema,
               o poema se foi,
               indo e vindo
               de tanto amar tudo,
         tal como é odiar sempre.

14/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)










    

VERSO PACATO

Me encanta todo temor
que o mar instiga,
outros olhos caem vinhos.

Certo, o comando passa de mão em mão,
talvez a voz do veludo
seja a falta,
e o ouvido do estribilho
o verso pacato.

Eis a memória,
corta o antes e o depois,
neste lembro de agora ex nunc.

Ou:
poema espaço esparso
corroeu a tampa do lixo
como os varões no cio

Este poema-clavícula,
verso-mandíbula,
este passado roto e chato,
e a febre, dona do mundo,
expulsando a secreção
dos castelos de bruma,
refinando o estro
com penumbra e sol esquálido.

14/04/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)


CEM ANOS DE SOLIDÃO

"A literatura fantástica de Gabo é a realidade alegorizada de uma cultura rica, a nossa América Latina."

   Gabriel García Márquez morreu neste dia 17 de abril de 2014, na Cidade do México. Um dos ícones da explosão da literatura latino-americana que surgiu nos anos 60 e 70, representante de uma vertente que se intitulou de literatura fantástica e prêmio Nobel. Gabo, como era também conhecido, lançou em 1967 o que seria uma de suas maiores obras, o romance Cem Anos de Solidão, que foi um marco do que se via de literatura na América Latina até então. O colombiano de Aracataca, agora, era um escritor conhecido mundialmente, virou uma celebridade na área nem sempre tão famosa de escritores.
   Gabo, a partir do sucesso de Cem Anos de Solidão, tanto se impôs como escritor, como ergueu o caminho para uma nova geração que surgia na literatura latino-americana, mudando um pouco o eixo da vida literária do hemisfério norte do mundo, para o novo mundo incrível da latinidade que, a partir de então, através da literatura fantástica, começou a ser conhecida pelo resto do mundo.
   Cem Anos de Solidão, romance lançado em 1967, uma das maiores obras de Gabo, tem uma abertura magistral, que define toda a estória. É um trecho importante, como ponto de culminância, de seu início e de seu fim: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo." Tal abertura antológica deste romance define, em sua única partida que, em Cem Anos de Solidão, não estamos lidando com um tempo em linha reta, estritamente cronológico.
   A genealogia descomunal da família Buendía, que vai povoar este romance, na aldeia mítica de Macondo vai, por seu turno, revelar que há sim um tempo cíclico. Podemos falar que o tempo, neste romance, se estabelece através da família Buendía, e que esta, por sua vez, tem um karma de nomes e situações que se repetem, o tempo cíclico ou circular, o eterno retorno da família Buendía, que, longe de ser uma maldição, é sim um karma genético. É, portanto, o tempo que vai e volta em semelhanças que estabelecem as repetições de uma árvore geneaológica.
   Tudo começa com a fundação de Macondo, e depois da prosperidade, tudo culmina num século inteiro em que se finda melancolicamente um karma já definido de início que encerra o romance, já numa aldeia vazia, uma Macondo de lembranças, e uma casa que passa em meio a tudo. A aldeia sendo o palco de revoluções, a guerra entre liberais e conservadores, e as peripécias do Coronel Aureliano Buendía sendo o centro nevrálgico desta genealogia total, que funde uma família a uma aldeia, que junta os Buendía a Macondo.
   O patriarca José Arcadio Buendía se casa com Úrsula Iguarán e, a partir daí, com o contato de José com os ciganos, que aparecem de passagem pela aldeia de Macondo, José Arcadio conhece o cigano Melquíades. Desta feita, começam as experiências dele com a alquimia. O romance de Gabo, a partir deste início, vai revelar um conhecimento que mistura o fantástico com a cultura cercante de um mundo que existe, a América Latina.
   A relação folclórica dos acontecimentos de Macondo, com um mundo que passa do mítico ao terreno, se misturam nesta estória de Gabo. A habilidade descritiva em Cem Anos de Solidão é a chave para um enredo que enumera as façanhas de um delírio que junta a mística alquímica com os rompantes de guerra que terá no filho de José, o Coronel Aureliano Buendía, seu principal personagem.
   A genealogia dos Buendía terá duas vertentes principais: a sucessão de José Arcadios de um lado, e a de Aurelianos de outro. Os filhos de José Arcadio, o patriarca, serão José Arcadio, que herda o gênio voluntarioso do pai, e Aureliano, silencioso e retraído. As mulheres da família Buendía também terão um karma. Algumas delas serão bem difíceis no trato com os homens, o que se verá tanto em Remédios, como em sua xará, que terá o epíteto de Remédios, a bela.
   No romance não faltarão relações incestuosas, absurdos carnais que levam embora a esperança da fortuna da família, pois havia o temor de filhos nascerem com rabos de porco. A genealogia da família Buendía se torna tão complexa, que tal cruzamento genético fatal se torna quase inevitável, havia o receio de um ser mítico nascer nesta consaguinidade inconsequente.
   Cem Anos de Solidão, com sua abertura, citada acima, revela o que seria Macondo, o que seria a fortuna ou o infortúnio dos Buendía. É a lenda em torno de um tempo que dá os seus ciclos, e que, portanto, era o sonho de José Arcadio Buendía, o patriarca: "o sonho das casas com paredes de espelhos foi decifrado quando José conheceu o gelo." A relação de conhecer o gelo define a cidade nova de espelhos: a genealogia dos Buendía também é um jogo de espelhos, certas tendências de personalidade se repetem, seja na carga dos nomes, o que pode ser visto nos Josés Arcadios e Aurelianos da árvore genealógica dos Buendía, como nas situações que também se repetem como numa carga genética que passa por personalidades, nomes e acontecimentos que se repetem, o que é o eterno retorno dos Buendía e de Macondo em todo o desenrolar da trama.
   Em meio às situações concretas, que são as guerras e os delírios de Macondo, ainda havia os fantasmas dos mortos que interagiam com os vivos. A lenda em Gabo perde as fronteiras de um mundo de discernimento lúcido, os mortos estão entre os vivos, e não há separação entre o cotidiano de uma aldeia no meio do nada e a amplidão infinita do que pode se chamar de mundo mítico que une cultura familiar (os Buendía) e a vida inacreditável deste tempo próprio que se torna sobrenatural dentro do mais comum e corriqueiro.
   Em Cem Anos de Solidão, o que se pode chamar de literatura fantástica, não é necessariamente uma ruptura com o cotidiano, pois, em Macondo, e com os Buendía, o inaudito se insere na rotina, sem grandes sobressaltos. Este é o paradoxo deste romance de Gabo e sua maior virtude e desprendimento. A enumeração dos fatos tem uma dupla face de inesperado, com semelhanças e repetições que tornam o tempo circular o reflexo kármico da genealogia fundamental de uma aldeia e de uma família.
   Quanto ao fardo da guerra, o que se dá é um conflito entre liberais e conservadores, posso citar o delírio máximo de Gabo sobre o Coronel Aureliano Buendía: "Promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas, teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento."
   Aureliano deixa Macondo por um tempo e vai atrás de revolução. O liberal que sonhava com a queda dos conservadores, um paralelo de Gabo com as mazelas da América Latina. Nem tudo em Cem Anos de Solidão era mítico, até porque, em Macondo, tudo tinha um pé com algo bem real neste nosso mundo, e sobretudo no mundo latino: as agruras da guerra, a política como salvação e ruína de nossas vidas, o mítico só serve para Gabo como referência a um mundo real e vivo. Não há, como disse, ruptura de sua literatura fantástica com coisas que já conhecemos cotidianamente.
   Coisas raras acontecem em Macondo, como o surto da doença da insônia. Gabo, quando escreve este romance, tem uma habilidade de unir as demandas do mundo real ao mito criado literariamente. Ou seja, não há ruptura do fantástico com o real em sua escrita, mas uma escrita que dá um sabor mítico de que tudo é possível no mundo criado em Macondo.
   A aldeia passa por tudo, neste mundo ainda bem real, há fantasmas zanzando, há Rebeca, que come terra e cal de paredes, há a doença da insônia, que deixa a aldeia de Macondo sem dormir por um tempo, e que também era a doença do esquecimento, só sanada quando José recebe uns frascos do cigano Melquíades. Ou seja: os fatos bem conhecidos das guerras da América Latina, de sua cultura, se juntam, neste enredo com a imaginação fértil de Gabo, para criar uma síntese de um mundo novo para a literatura mundial: A América Latina ganha voz literária com Gabo.
   A visão de duplicidade para este romance Cem Anos de Solidão também tem a referência sobre a busca de conhecimento, a alquimia é seu ponto principal. Gabo diferencia, com isso, duas frentes de batalha em seu romance: os delírios da guerra, e a loucura da pedra filosofal. A busca, seja na política, que se torna guerra, como nos quartos fechados com laboratórios para criar o ouro alquímico, são duas coisas que interagem, há um misto entre a alienação da reclusão, e o desprendimento da própria vida diante do pelotão de fuzilamento.
   Nada, em Cem Anos de Solidão, tem um fim em linha reta, o mesmo que está para morrer recorda vivamente tudo que se passou; os personagens que se enfurnam em seus quartos, atrás da pedra filosofal, também possuem o discernimento da experiência com o conhecimento; alquimia de um lado, e guerra de outro; a cultura dos livros e das experiência alquímicas são dadas simultaneamente com um mundo latino politicamente convulsionado.
   Em Gabo, o mundo mítico é o mundo real e vice-versa. Não há discernimento cartesiano dos espaços da realidade e o tempo newtoniano é refutado por uma genealogia familiar que é o próprio tempo da trama, um século inteiro, suas mazelas e glórias, o tempo cíclico, como a natureza é, pois há uma veia naturalista nos incestos dos Buendía, o romance transpira sexo proibido, desejos se encontram dilacerados e realizados ao mesmo tempo, não há fronteira de tabu.
   Cem Anos de Solidão também cria seu mundo mítico ao romper o tabu, ao romper com diferenças de percepção de espaço e de tempo. Em Macondo, a natureza serve a si mesma, tudo corre com o inaudito de forças incontroláveis, que são nada mais que ciclos e karmas familiares, medos ancestrais, glórias futuras que desmoronam em solidão e vazio, expectativas revolucionárias e o exagero belicoso das batalhas sem fim da política em seu estado permanente de conflitos que movem corpos por todos os lados e terminam no fuzilamento inevitável.
   Gabo reune a guerra, a política e o mito, traz a natureza crua dos Buendía, e torna tudo espiritual na alquimia que circula por todo o romance. Tabus quebrados, e os sonhos alquímicos e de glórias político-guerreiras se juntam num caldo único comandado pela natureza cega da fatalidade de um século inteiro, o fatal fim de uma genealogia que morre como folclore, que surge e termina em Macondo.
   Cem Anos de Solidão é nada mais que a estória de um ciclo, e este tem o nome dos Buendía, e Macondo é o lugar geográfico e mítico da genealogia que funda a trama de Gabo. A viagem que se faz ao lermos este romance nos leva ao mundo real, e não só à fantasia de um romancista. Gabo nos dá de presente a América Latina nua, livre de todas as amarras da razão, o mito se afirma de maneira contundente, o mito de uma existência que não se furta a ultrapassar as fronteiras fictícias de uma imaginação fraca.
   A força do romance Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez está na falta de limite de suas descrições, a riqueza de detalhes e informações contidas neste romance não são casuais, ele é o resultado de uma vivência real e forte, que tem nos Buendía sua alegoria, e em Macondo seu lugar de realização.
   O real e a fantasia de Cem Anos de Solidão se unem no mito fundador, o tema das origens e seu final de escatologia, o início e o fim, o ciclo da natureza incrustada na genealogia dos Buendía, o grito sexual e o recolhimento solitário, enfim, a glória e a hecatombe de guerras, mitos, fundações e uma descendência que se esfarela com o tempo inexorável que tudo leva para sempre. Macondo se torna o nada povoado pelos seus fantasmas, tudo se encerra no vazio memorial.
   Gabrial Garcia Márquez nos deixa neste mundo, e está agora, quem sabe, no mundo mítico sonhado em sua literatura, pois a realidade é mais profunda do que possa sonhar a nossa vã filosofia, e a literatura é uma das chaves de acesso ao mundo mais amplo da inspiração imaginosa que funde mitologia e as vísceras de um mundo político em guerra permanente. A literatura fantástica de Gabo é a realidade alegorizada de uma cultura rica, a nossa América Latina.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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