PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 16 de janeiro de 2021

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, POETA PORTUGUESA DE EXCELÊNCIA

“Este livro novo que reúne a produção mais relevante da poeta Sophia leva o título de “Coral e outros poemas”.”

A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen tem um estilo lírico de poesia, comparável aqui no Brasil com poetas como Cecília Meirelles, talvez um dos melhores paralelos desta dicção lírica em que a poesia de Sophia está imersa.

A presença da natureza na poesia de ambas também se relaciona a este aspecto lírico que domina tanto a poesia de Cecília como de Sophia, e na poeta portuguesa temos uma presença de um mundo mineral, com uma forte referência ao mundo líquido, à água, que podemos ver em livros intitulados Dia do mar, de 1947, ou As ilhas, de 1989, em que tal elemento está bem presente.

A poeta portuguesa estreou em poesia em 1944, mas o Brasil só recebeu uma seleta de consistência de sua produção poética em 2004, com Poemas escolhidos, trabalho realizado por Vilma Arêas.

Agora, a mais recente, material com o qual trabalho esta série aqui sobre a poeta portuguesa, temos o volume organizado pelo poeta Eucanaã Ferraz, com uma boa seleção e uma apresentação esclarecedora sobre a poesia de Sophia, em seu estudo introdutório que abre o livro, o texto “Breve percurso rente ao mar”. Este livro novo que reúne a produção mais relevante da poeta Sophia leva o título de “Coral e outros poemas”.

Podemos dizer que Sophia não traz novidades de estilo ou técnica, não faz experimentos inéditos, mas toma da forma clássica de expressão poética, de um predomínio lírico em sua dicção, para descortinar um mundo natural que pulsa e se funda em sua visão que vai deste olhar direto sobre a natureza, o mar, por exemplo, aos temas mitológicos, que muitas vezes se relacionam com esta sua temática do mar.

Em sua estreia como poeta, no seu livro Poesia, de 1944, já temos a presença de uma dicção poética amadurecida, com a temática marítima e mitológica já apontando o caminho de Sophia dentro do universo da poesia.

Nesta sua estreia temos o contexto da Segunda Guerra Mundial, mas não há uma referência direta do evento neste livro, mas um certo ambiente desta realidade pode ecoar no breve poema que abre o livro, que no primeiro verso enuncia : “Apesar das ruínas e da morte.”

Em seu segundo livro de poesia, Dia do mar, de 1947, temos novamente a presença soberana e forte do mundo natural, talvez numa busca da poeta de restituição deste mundo original pela poesia face ao mundo civilizatório que se distanciou desta origem que a poesia de Sophia tenta retomar.

No livro que se segue, Coral, de 1950, os temas e os procedimentos formais do livro anterior serão mantidos, com poema concisos e breves, o mar continua dominando o espaço de expansão da poesia de Sophia. O mar, um tema que é obsessão de muitos poetas, aqui com a poeta portuguesa é o próprio eixo temático central de sua lírica.

A busca de um mundo inaugural, original, permanece, e pode ser que esta busca seja a busca de uma revelação, uma visão que restitui e revela, e que coloca a poesia de Sophia diante de uma luz de um mundo natural sem mediações. A visão direta da poeta diante de uma imensidão natural que pode lhe aparecer como uma revelação, e que sua poesia tenta traduzir.

Ao fim, estas três primeiras obras de Sophia podem muito bem ser chamadas de um tríptico de abertura, é a apresentação da lírica de Sophia para a História da poesia portuguesa e mundial.

Sophia de Mello Breyner Andresen foi poetisa, tradutora, ensaísta, ficcionista, dramaturga. Em 1999, foi a primeira escritora portuguesa a ganhar o Prêmio Camões. No ano de 2003, intitulava-se “Rainha Sofia”, numa involuntária homenagem à majestade de sua poesia. Sophia faleceu aos 84 anos, em 2004.

DE POESIA :

SEM TÍTULO : A poeta aqui talvez ecoe indiretamente o ambiente de guerra da época em que este livro foi escrito, a sua estreia em poesia : “Apesar das ruínas e da morte,/Onde sempre acabou cada ilusão,/A força dos meus sonhos é tão forte,/Que de tudo renasce a exaltação/E nunca as minhas mãos ficam vazias.”. A poeta, diante da morte e de sua inevitabilidade, evoca a força dos sonhos, esta força que tudo vence e nos coloca numa dimensão de indestrutibilidade.

O JARDIM E A NOITE : A poeta tenta se unir à noite, no que temos : “Atravessei o jardim solitário e sem lua,/Correndo ao vento pelos caminhos fora,/Para tentar como outrora/Unir a minha alma à tua,/Ó grande noite solitária e sonhadora.”. O peso do mundo, no entanto, atenta contra este seu sonho lírico, no que vem : “Mas sob o peso dos narcisos floridos/Calou-se a terra,/E sob o peso dos frutos ressequidos/Do presente/Calaram-se os meus sonhos perdidos.”. E a operação de linguagem da poeta agora tenta restituir a esta linguagem algo originário, não a dicção literária, mas os encantamentos que soam nas fórmulas de magia, a linguagem original de um mundo totêmico, no que temos : “Entre os canteiros cercados de buxo,/Enquanto subia e caía a água do repuxo,/Murmurei as palavras em que outrora/Para mim sempre existia/O gesto dum impulso./Palavras que eu despi da sua literatura,/Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,/De fórmulas de magia.”.  E a busca da poeta de saber do segredo da noite se torna impossível, esta harmonia perfeita que a poeta busca lhe escapa em seu desconhecimento desta noite inatingível, no que temos : “Docemente a sonhar entre a folhagem/A noite solitária e pura/Continuou distante e inatingível/Sem me deixar penetrar no seu segredo./E eu senti quebrar-se, cair desfeita,/A minha ânsia carregada de impossível,/Contra a sua harmonia perfeita.”. Ela via o mundo pulsando, vivo, mas esta sua grande experiência de êxtase estava para sempre perdida, no que vem : “Tomei nas minhas mãos a sombra escura/E embalei o silêncio nos meus ombros./Tudo em minha volta estava vivo/Mas nada pôde acordar dos seus escombros/O meu grande êxtase perdido.” (...) “Só o vento passou pesado e quente/E à sua volta todo o jardim cantou/E a água do tanque tremendo/Se maravilhou/Em círculos, longamente.”.

CIDADE : A poeta aqui tematiza a cidade, no que temos : “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,/Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,/Saber que existe o mar e as praias nuas,/Montanhas sem nome e planícies mais vastas/Que o mais vasto desejo,”. Ela tenta restituir o mundo natural, em que sua alma poderia voltar a seu habitat, esta alma da poeta que anela pela natureza em sua plenitude, mas que é levada e arrastada por um mundo sombrio de paredes, no que temos : “Saber que tomas em ti a minha vida/E que arrastas pela sombra das paredes/A minha alma que fora prometida/Às ondas brancas e às florestas verdes.”.

DE DIA DO MAR :

SEM TÍTULO : A poeta aqui, mais uma vez, evoca o mar, e o poema quebra na areia como uma onda que vira espuma e se esvai na praia : “As ondas quebravam uma a uma/Eu estava só com a areia e com a espuma/Do mar que cantava só para mim.”.

MAR SONORO : O poema tem uma lírica extasiante, e as imagens aqui fundam uma visão poética do mar em toda a sua plena feição de profundidade e homenagem, no que temos : “Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,/A tua beleza aumenta quando estamos sós/E tão fundo intimamente a tua voz/Segue o mais secreto bailar do meu sonho,/Que momentos há em que eu suponho/Seres um milagre criado só para mim.”. A coda fecha a ideia de uma individualidade da poeta que possui um milagre, o mar lhe pertence exclusivamente.

NAVIO NAUFRAGADO : O poema descreve o navio que naufragou, tenta discernir o que lhe ocorre neste fundo desconhecido de água salgada : “Vinha dum mundo/Sonoro, nítido e denso./E agora o mar o guarda no seu fundo/Silencioso e suspenso.”. Aqui continua a especulação poética, numa descrição que funde natureza e sonho, no que temos : “É um esqueleto branco o capitão,” (...) “Tem algas em vez de veias/E uma medusa em vez de coração.” (...) “E os corpos espalhados nas areias/Tremem à passagem das sereias,/As sereias leves de cabelos roxos/Que têm olhos vagos e ausentes/E verdes como os olhos dos videntes.”. O sonho da vidência das sereias, em que o delírio da poeta vê no mar um portal para este mundo mitológico.

UM DIA : A busca de restituição de um mundo original pela poeta Sophia continua, no que temos : “Um dia, mortos, gastos, voltaremos/A viver livres como os animais/E mesmo tão cansados floriremos/Irmãos vivos do mar e dos pinhais.” (...) “O vento levará os mil cansaços/Dos gestos agitados, irreais,”. E aqui temos a poeta tentando vaticinar este mundo restituído e seu sentido profundo : “Só então poderemos caminhar/Através do mistério que se embala/No verde dos pinhais, na voz do mar,/E em nós germinará a sua fala.”.

DE CORAL :

SONETO À MANEIRA DE CAMÕES : A poeta aqui tenta uma imitação adrede de Camões, se sai bem, e tematiza a lírica amorosa com fluência, no que temos : “Esperança e desespero de alimento/Me servem neste dia em que te espero”. Toda a carga simbólica, histórica, deste Camões, presente aqui, e esta dicção fantasiada de uma poesia camoniana, nos dá um objeto curioso da poesia de Sophia, no que temos:  (...) “Daquilo que te peço desespero/Ainda que mo dês – pois o que eu quero/Ninguém o dá senão por um momento.” (...) “Mas como és belo, amor, de não durares,/De ser tão breve e fundo o teu engano,/E de eu te possuir sem tu te dares.” (...) “Amor perfeito dado a um ser humano :/Também morre o florir de mil pomares/E se quebram as ondas no oceano.”. Fecha-se o soneto, como a fazer uma galimatia de uma chave de ouro camoniana que todo sonetista deve saber fazer.

CORAL : O poema, lacônico, faz da pergunta de Sophia esta imagem direta que se conclui como um raio, os nomes das coisas, no que vem : “Ia a vinha/E a cada coisa perguntava/Que nome tinha.”.

PIRATA : A poeta aqui é um pirata e descreve neste seu poema os seus gestos vestida desta personagem, todo o desprezo de um marginal saqueador, no que temos : “Sou o único homem a bordo do meu barco./Os outros são monstros que não falam,/Tigres e ursos que amarrei aos remos,/E o meu desprezo reina sobre o mar.”. Sua alma erra pelos mares, seu desapego fatalista dá ao mundo apenas um sentido utilitário, nada sobra, este pirata mira o efêmero e não detém nada e nem é detido, seu mar é um mar aberto, não lhe importa as paradas e suas memórias, a poeta aqui veste um pirata em sua postura distante de um bandido do mar : “A minha pátria é onde o vento passa,/A minha amada é onde os roseirais dão flor,/O meu desejo é o rastro que ficou das aves,/E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.”.

SEM TÍTULO : A poeta cobra da poesia aqui seu quinhão, no que temos : “Ó Poesia – quanto te pedi!/Terra de ninguém é onde eu vivo/E não sei quem sou – eu que não morri/Quando o rei foi morto e o reino dividido.”. A poeta se sente desprovida de seu ser, não sabe bem o que fazer, neste mundo de um reino que foi dividido.

PENÉLOPE : O tecido de Penélope que se desfaz na espera eterna de Ulisses, o poema homérico aqui numa versão breve que fala da distância e da proximidade, este paradoxo da peripécia amorosa até esta se concluir em júbilo : “Desfaço durante a noite o meu caminho./Tudo quanto teci não é verdade,/Mas tempo, para ocupar o tempo morto,/E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/sophia-de-mello-breyner-andresen-poeta-portuguesa-de-excelencia

  

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A INVASÃO DO CAPITÓLIO E A DERROTA DE TRUMP

“o país americano foi chamado de república bananeira”

Após o evento do Capitólio, um dos mais trágicos e patéticos da História política recente dos Estados Unidos da América, Donald Trump passa a ver membros de sua própria fileira abandonado o barco, que agora parece estar sendo comandado por um leproso na direção de um iceberg.

Aliados históricos romperam diretamente ou se afastaram, o país americano foi chamado de república bananeira, uma recapitulação de republiquetas dominadas pela United Fruit Company, como Guatemala e Honduras. A ruptura se deu entre membros de seu governo e congressistas do Partido Republicano.

As cenas grotescas de depredação e invasão do Capitólio causaram vergonha a uma grande maioria da população norte-americana, e o mundo, em choque, noticiou algo inusitado em terras americanas, uma ação mambembe de fanáticos, entre neonazistas, proud boys, e toda uma gama de idiotas e bestas-feras que não têm nada na cabeça e agem por uma cegueira que é contemporânea e que anda junta com diversas teorias da conspiração de QAnon e afins.

No influxo de um discurso incendiário de Trump, as coisas começaram a se complicar, em que o presidente insistia na sua tese que era um misto de delírio e arrogância, acusando sem provas as eleições de terem sido fraudulentas, isto pela razão de Biden ter sido eleito com votos duplicados e que precisava se fazer uma recontagem, pois no contexto de uma pandemia, com votos tendo sido feitos pelo correio, Trump se arvorou como vítima de uma fraude eleitoral.

Após o episódio histórico trágico desta invasão e depredação do Capitólio, muitos se levantaram para pedir a destituição de Trump por impeachment e até a invocação da 25ª emenda à Constituição. A reação tardia de hostes republicanas chega num momento em que a divisão do partido já está feita e pode se tornar cada vez mais crônica.

Trump, contudo, divulga um vídeo admitindo, finalmente, a sua derrota, mas o estrago já estava feito. Esta sua tentativa de virar a mesa pode arruinar o seu futuro político, seu projeto de se candidatar em 2024 pode ter acabado de virar pó, um cálculo desastroso produzido por alguém arrogante e que se debate em convulsão antes de admitir que desta vez foi derrotado.

Outro efeito de sua derrota retumbante é agora o seu isolamento político com as defecções republicanas e dentro de seu governo e de seu gabinete, um enfraquecimento que se dá de maneira vertiginosa, reforçando o desastre deste seu cálculo político extremado e inconsequente.

Neste seu périplo para reverter o resultado da eleição de 3 de novembro, Trump viu seu vice-presidente Mike Pence e o líder do Senado, Mitch McConnell, dois dos aliados mais leais que Trump tinha no Partido Republicano, e ainda o senador da Carolina do Sul, Lindsey Graham, virando as costas para um líder político que perdeu o senso de medida e o senso de realidade, numa movimentação que foi uma mistura tóxica de insensatez e a causa desta, a sua arrogância.

Esta ruptura política se evidenciou na sessão conjunta do Congresso para certificar a vitória do democrata Joe Biden. E Trump levantou mais uma ideia delirante de que seu vice, Mike Pence, tinha poder de mudar unilateralmente o resultado da eleição, e Pence respondeu que não tinha autoridade para tal. Outra defecção notória foi do ex-procurador geral, William Barr, com declarações que reprovaram os gestos de Trump. Muitas demissões se seguiram na esfera do governo Trump, o barco começou a dar água.

Das renúncias,  as mais notáveis foram as de dois membros do gabinete: a secretária de Transporte, Elaine Chao, e a secretária de Educação, Betsy DeVos. Chao explicou sua renúncia com estas palavras: "Ontem, nosso país experimentou um evento traumático e totalmente evitável, no qual partidários do presidente invadiram uma multidão no Capitólio após uma marcha na qual Trump se dirigiu a eles." Chao foi o ´primeiro membro do gabinete a renunciar. Para se ter uma noção da proporção do estrago, William Barr, por exemplo, era uma das pessoas mais próximas de Trump.

No entanto, Trump ainda tem apoiadores na população, tem o apoio de sua família, e de figuras como Rudy Giuliani ou Roger Stone, a quem concedeu recentemente o perdão presidencial. Em relação ao processo de certificação dos votos do Colégio Eleitoral, a tese da fraude defendida por Trump tem o crédito de 100 membros da Câmara dos Deputados e cerca de uma dezena de senadores.

Ted Cruz e Josh Hawley, que são potenciais presidenciáveis para 2024, contestaram os resultados do Arizona e da Pensilvânia, respectivamente. Seis senadores apoiaram a iniciativa de Cruz e sete de Hawley, mas o apoio foi muito maior para ambos os casos na Câmara dos Representantes.

Trump ainda teve que passar pela situação patética de ser um chefe de Estado que teve a sua conta de Twitter banida e ter sido excluído também do Facebook e do Instagram, o que é algo desproporcional, pois um governante ter que ser banido de uma rede social é algo sem precedentes e mais um exemplo do ridículo em que Trump caiu.

Desta vez, os congressistas começaram a analisar nesta quarta o segundo processo de impeachment contra o presidente e o processo foi aprovado. Este processo que agora pode incidir sobre a invasão do Capitólio, pela qual Trump pode ser responsabilizado politicamente, pois incitou seus eleitores à violência.

Por sua vez, a citada cisão dentro do Partido Republicano, tem na figura de McConnell uma possível liderança para tirar a influência de Trump no partido. E ainda temos Mitt Romney, senador de Utah, uma das primeiras vozes republicanas a se levantar contra Trump, único senador republicano que apoiou uma ação de impeachment em fevereiro de 2020. Romney que também pode ser uma liderança republicana anti-Trump.

Estes republicanos, contudo, serão desafiados por aqueles que querem se beneficiar do capital político trumpista e deste seu eleitorado, e desta cisão pode até surgir um terceiro partido, algo sem precedentes na História partidária norte-americana, que sempre foi uma gangorra dominada por democratas e republicanos.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/a-invasao-do-capitolio-e 

 

 

 

domingo, 10 de janeiro de 2021

LORDS OF CHAOS – A SANGRENTA HISTÓRIA DO METAL SATÂNICO UNDERGROUND – PARTE 1

“Lords of Chaos ainda é o primeiro livro a ser lembrado quando pensa-se no true norwegian black metal.”

No prefácio à tradução brasileira do livro Lords of Chaos, que trata das origens e evolução do black metal na Europa, temos a descrição de um fenômeno brasileiro, isto é, a provável influência da banda brasileira Sarcófago sobre estas bandas que surgiram pela Europa nos anos oitenta e noventa do século vinte, esta banda que vem de Belo Horizonte, Minas Gerais, berço do metal brasileiro, só comparável ao surto punk paulista, esta divisão geográfica clássica do mapa do rock brasileiro.

Em 1985, o jovem Wagner Lamounier, que usava o codinome “Antichrist”, sai de uma banda de amigos e vai montar a lendária banda do underground do metal brasileiro, Sarcófago, os primeiros registros da banda saem no split Warfare Noise I, da gravadora Cogumelo Produções. A banda Sarcófago permanece no underground, ao passo que a banda anterior de Lamounier, o Sepultura, consegue se tornar uma referência internacional de uma banda brasileira de metal.

Por sua vez, o álbum I.N.R.I., de 1987, da banda Sarcófago, teria impacto de influência que pode ser comparado a referências do black metal como as bandas Mayhem e Bathory, sendo que o corpse paint, jaqueta de couro e cinto de balas, que aparecem na estampa dos integrantes da banda na capa deste álbum, virariam um protótipo do visual que seria adotado pela cena black metal.

D.D.Crazy, o baterista da banda, usa grooves de bateria alucinantes neste álbum, que foi chamado de metranca no Brasil, mas lá fora foi chamado de blasting beats, definindo um padrão rítmico de bateria para todo o cenário extremo subsequente. Aqui o livro Lords of Chaos vai tratar sobretudo, no entanto, da ascensão do black metal norueguês, com suas raízes na cultura nórdica e germânica antiga, e a expansão do black metal por países como Suécia, Alemanha, Finlândia, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos.

A edição mais recente de Lords of Chaos é de 2003, e deste ano para cá alguns fatos já ocorreram, o idiota do Varg Vikernes já saiu da cadeia, foi para a França, mudou seu nome para Louis Cachet, que teve um canal do youtube recentemente excluído da plataforma, numa ação contra canais supremacistas brancos e de teorias da conspiração. Agora teve o lançamento do filme Lords Of Chaos, baseado neste livro, com direção de Jonas Akerlund, com Rory Culkin como Oystein “Euronymous” Aarseth e Emory Cohen no papel de Varg “Count Grishnackh” Vikernes.

E aqui cito parte do prefácio como um aviso prévio de esclarecimento : “Uma última dificuldade de natureza geral da tradução de Lords of Chaos é, talvez, uma dificuldade compartilhada pelos próprios autores : o caráter questionável da maior parte dos entrevistados do livro. Como o leitor testemunhará, as figuras principais do black metal norueguês não hesitam em destilar doses cavalares de racismo, misoginia, xenofobia, sadismo, LGBTfobia e todo tipo de perversão cada vez que abrem a boca.

Isso implica, naturalmente, um repertório vocabular particularmente odioso. Nós optamos por tentar comunicar da forma mais fiel possível toda a toxicidade do discurso original, o que implicou incluirmos, em diversos momentos, inúmeras palavras e expressões idiomáticas de cunho extremamente pejorativo contra minorias étnicas e sociais que nós mesmos nunca usaríamos. A equipe da edição brasileira de Lords of Chaos não endossa nem compartilha de nenhum dos discursos de ódio apresentados no livro, mas também considera que é importante expor sem eufemismos ou disfarces suas ocorrências entre os entrevistados.”

E cito aqui também o caráter de influência deste livro, do prefácio : “Lords of Chaos ainda é o primeiro livro a ser lembrado quando pensa-se no true norwegian black metal. Ele oferece o título para o longa-metragem de 2019, e ele é o alvo constante de vídeos e artigos mal-humorados de Varg Vikernes. A verdade é que Lords of Chaos é um raro exemplo de registro analítico que se verte em fenômeno, observação historiográfica que se transforma em fato histórico.

Lords of Chaos é, hoje, um marco inescapável da história do black metal, tanto quanto o De Mysteriis Dom Sathanas, do Mayhem, a queima da igreja de Fantoft ou aquela foto do Varg com uma clava viking. Qualquer estudo sério do black metal em 2020 precisa passar por Lords of Chaos, seja em afirmação ou negação, e qualquer um que se interesse pelo gênero certamente tem muito a aprender com o impressionante volume de entrevistas, fotos, documentos e matérias jornalísticas acumulado por Moynihan e Soderlind. Por isso, temos muito orgulho e alegria de poder oferecer pela primeira vez ao público brasileiro este estudo seminal sobre os ruídos aterrorizantes que saíram das gélidas florestas escandinavas para tomar o mundo de assalto”.

Lords of Chaos foi pesquisado e escrito entre 1994 e 1997, e foi publicado em 1998. O livro, em geral, não tece juízos ou comentários sobre as declarações de seus entrevistados, mas a alegação de Varg Vikernes e alguns de seus companheiros de viagem de que a Noruega é controlada por uma conspiração judaica, uma cabala judaica estilo “Protocolos do Priorado de Sião” soa absurda para um país que quase não tem judeus.

Por sua vez, de tempos para cá, os eventos extramusicais da cena black metal, como as famigeradas queimas de igrejas, deram uma arrefecida, e a Noruega viu uma fonte de ouro na sua cena black metal, que ficou mundialmente conhecida no nível underground, os grupos maiores da cena tem boas vendas de discos, e têm grande público em turnês mundiais. Hoje não vemos mais histórias de crimes, por exemplo, pois as bandas atuais estão ligadas a um trabalho comercial para criar um produto artístico viável e vendável, com suas carreiras musicais sendo levadas a sério pelos próprios. Uma vez que estar preso, por exemplo, não ajuda a ter um ganha-pão para gravar e tocar música, só ganhando um status mórbido em um certo submundo de polêmicas.

E aqui cito dois parágrafos do prefácio à nova edição americana de 2003 : “Mas uma coisa havia mudado ao longo da década desde que o black metal chocou a Noruega pela primeira vez. Depois do ultraje inicial, o gênero se tornou sucesso de crítica e um apelo comercial – a vantagem disso é que a subcultura hoje tem pessoas na mídia mainstream prontas para defendê-la. “Ninguém nessa cena ganharia status por decepar a cabeça de um cadáver”, disse um importante DJ de rádio que toca muito black metal. Embora isso possa oferecer um ótimo recorte de entrevista, não é uma afirmação mais verdadeira que os resmungos dos tabloides que pintam todos os fãs de metal como violadores de cadáver em potencial.

Um grau significativo do apelo e da estatura do black metal não deriva de grandes feitos musicais e da originalidade dos artistas que tocam a música. Os horrendos crimes contribuíram tanto quanto, e talvez até mais, para o seu apelo. E embora a maior parte das pessoas do black metal sejam cidadãos que respeitam as leis, eles dificilmente podem alegar que o elemento criminoso representa só uma turma confusa de agregados. Os responsáveis pelos assassinatos, queimas de igreja e demais crimes eram, com frequência, os principais mobilizadores e agitadores da cena. Subjacente a isso há o fato de que importantes revistas de black metal publicam matérias que tratam assassinos reais como celebridades amenas, ou os proclamam verdadeiros heróis.”

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/lords-of-chaos-a-sangrenta-historia-do-metal-satanico-underground-parte-1