PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 26 de dezembro de 2020

A NAU DOS INSENSATOS

Na Stultitia Navis tinha um governo meio anárquico, o capitão levava o leme, na descrição de Foucalt, em sua História da Loucura, muitos pegavam os insanos perdidos nas cidades e jogavam neste navio, esta embarcação errava pelos mares, por toda a Europa, pouco depois da Idade Média, no começo do período renascentista. Também temos a metáfora platônica para nos retratar a loucura em sua origem poética e filosófica.

A nau dos insensatos que aqui se descreve, foi uma das embarcações que circulavam desde 1502, existia este capitão, e os marinheiros, e mais um amontoado de gente suja, agressiva, dissipada e maltrapilha, um mundo de imundície se abria entre pessoas, ratos e carne podre, o governo, portanto, naquele ambiente, existia na imaginação de seus tripulantes.

A embarcação em questão tinha sido construída em 1500, começou a navegar por um capitão naquela época para colher os loucos na península itálica, começaram a colher os insanos de Roma quando a embarcação adentrou o Reno, foram muitos, um grupo de insanos tagarelas, uma leva de insanos depravados, uma outra leva de insanos delirantes de grandeza, um outro grupo heterogêneo que reunia perfis como de fascinados, animalescos, agressivos, anestesiados, mudos, aparvalhados, arrogantes, viciados em luxúria, piores dos que os simples depravados, os que xingavam sem parar, os que diziam estultícias e faziam piadas sem nexo, os fragmentados, os que se imaginavam imperadores, e por fim, os insanos que roubavam e cometiam crimes, todos foram colocados nesta embarcação em 1501.

O reino da insanidade, então, depois de muita disputa de poder, agora tinha na figura do capitão, seu grande líder, ele se considerava imperador, era um do grupo de insanos que se imaginavam imperadores, neste grupo, este capitão era César, Imperator, ele tinha visões e alucinações, e tinha a certeza absoluta de ser uma reencarnação de Calígula. Neste grupo tinha um insano que tentara tomar o poder do leme que se dizia Nero, e sempre pensava em delírios de piromania, lutava contra uma fogueira imaginária enquanto via diante de seus olhos a sua velha Roma em chamas.

Nero discutia com um insano depravado, numa destas tardes em que a Nau navegava pelo Adriático, o capitão sempre imaginava conduzir bem o leme, o fato é que o navio estava desgovernado, entrava água no convés, os ratos pulavam entre as comidas e as carnes podres, pois ninguém naquele caos sabia manejar comida ou preparar o que fosse, havia uma convenção de bruxas reunida, estas que haviam escapado de uma sanha medieval, eram cinco velhas e três moças, os depravados corriam atrás das três moças insanas, uma dava para Nero que nem uma cabrita, os depravados ficavam com inveja, pois nenhuma daquelas moças queria saber deles.

César liderava a grande viagem pelo Adriático, as ondas cresciam, o ar marinho lhe enchia os pulmões de empolgação, sua visão da península itálica era magnífica, em seu delírio ele via com a sua ideia de imperador o desenho de um império que cobria todo o mundo antigo conhecido, ele pensava que aquelas três moças teriam que ser curradas pelo grupo dos viciados em luxúria como punição aos senadores que competiam com o seu poder e sua soberania, Nero, de outro lado, ria, com a sua bruxinha que também gargalhava e achava que o capitão não tinha mais juízo e que o leme estava na mão de um louco.

Tinha 12 marinheiros que deviam obediência ao capitão, este novo Calígula achava que eles eram seus senadores e que eram casados com as velhas e as três moças, como Nero não largava a sua bruxinha particular, o comando da tarde seguinte foi amarrar ao mastro as outras duas das moças que acabaram sendo curradas pelos viciados em luxúria por cinco tardes seguidas, uma delas desmaiou depois que um deles começou a gritar de orgasmo e saiu cambaleando como um bêbado saciado, logo se encerrou aquele horror. O capitão, Imperator, César, se deu por satisfeito e começou a provocar, desta vez, o grupo de parvos que não faziam nada o dia inteiro, e não ser ficarem cuspindo no mar como um tipo de brincadeira de crianças doentes.

Depois desta semana caótica de orgias, o capitão, Imperator, César, colocou o grupo de arrogantes para limpar a sujeira que os viciados em luxúria tinham deixado em todo o mastro, neste meio estavam os anestesiados, caídos no caminho, enquanto o grupo de insanos arrogantes chutavam estes pobres diabos para o lado, num misto de raiva e sentimento de humilhação, pois o capitão, apesar de ser um insano sem juízo, tinha um tipo de conduta que sempre colocava este grupo de insanos arrogantes em situações vexatórias, principalmente depois de ordens delirantes como esta desta simulação de orgia romana de um pseudo-Calígula.

Os estultos que diziam piadas sem nexo começaram a caçoar destes insanos arrogantes, que tentavam limpar o mastro entre estes estultos que zombavam de tudo o tempo todo, e os anestesiados que caíam pelas tabelas, desabando contra o mastro, que se encontrava imundo e de fato havia ali um cheiro deplorável de sêmen morto. O capitão, Imperator, César, por sua vez, se divertia entre os estultos, num tipo de festa das bacantes improvisada em que o teatro trágico renascia e logo se transfigurava numa peça zombeteira de Aristófanes.

Aquela peça de Aristófanes, de dar engulhos em almas sensíveis, foi uma ressaca da bacanal dos viciados em luxúria que, naquela tarde em que o grupo de arrogantes sofria mais uma humilhação de seu imperador, dormiam uma siesta embriagada como corpos saciados de um impulso primitivo e irrefletido, sem método, só feito pelo uso da força e da obsessão doentia, algo que lhes levara àquela insanidade deplorável que assustava até mesmo os coitados dos depravados, que eram mais sexistas do ego que de um vício impulsivo.

De repente, em meio à sujeira que os arrogantes lutavam para limpar, começou uma discussão barulhenta entre os insanos que xingavam sem parar e os insanos que imaginavam febrilmente que eram imperadores, mesmo que já houvesse um imperador no navio, e um outro que dizia que era Nero. Os xingadores começaram uma altercação furiosa contra estes imperadores, que davam ordens para exércitos imaginários para matar aqueles insanos que os xingavam de plebeus e nomes impublicáveis. César, Imperator, desceu de seu leme, furioso, não contra os xingadores, mas contra estes que se diziam imperadores, e chamou o grupo de insanos tagarelas para recolher com baldes enormes água do mar, o trabalho foi rápido, em questão de alguns minutos estes loucos tagarelas invadiram a briga e jogaram água do mar na cara e na cabeça destes imperadores, que se acalmaram e, pior, continuaram ouvindo xingamentos obsessivos destes insanos que gritavam para o júbilo de César, que gostava daqueles xingadores, era o seu grupo favorito naquele governo náutico e imaginário.

César, Imperator, agora estava sofrendo uma conspiração, pois Nero e sua bruxinha se juntaram aos falsos imperadores, dentre os xingadores, que idolatravam César, havia uma rixa eterna contra estes dementes que pensavam ser imperadores. Dos outros grupos de insanos, tínhamos os arrogantes, que desejavam se vingar de César, os tagarelas e os depravados apoiavam César, os viciados em luxúria idolatravam César, os estultos que falavam piadas sem nexo adoravam César, por sua vez, havia grupos que precisavam ser cooptados, tirando os anestesiados, que eram incapazes de se posicionar.

Nero cooptou os agressivos e animalescos, os aparvalhados achavam César engraçado e o apoiavam, os mudos eram tão inúteis quanto os anestesiados, pois ninguém entendia suas gesticulações, os delirantes de grandeza e os fascinados apoiavam César, os fragmentados ficavam indecisos, pois suas mentes caóticas alternavam num tipo de inda e vinda insana, e os insanos que roubavam e cometiam crimes desejavam matar César e também Nero para dominar a embarcação.

Nero intitula a sua bruxinha um tipo de rainha de Sabá, os arrogantes fizeram a corte do que seria um tipo de ritual, o barco navegava e já se aproximava de Ancona, já tinham se passado seis meses que os tripulantes da nau dos insensatos não viam terra firme, perdidos no Adriático, em movimentos irregulares de uma embarcação sem destino. César, Imperator, tinha certeza de seu poder, mal sabia da conspiração que estava sendo montada por Nero e pelos insanos arrogantes que estavam com sede de vingança depois que tiveram que limpar o mastro do barco de toda a sujeira que os viciados em luxúria haviam deixado ali.

A embarcação cambaleava num mar bem longo, ainda longe do porto de Ancona, mas já próximo de sua periferia, o leme ficava ao deus-dará, o imperador que se achava um Calígula não fazia ideia de como conduzir tudo, um marinheiro lhe ajudava e recebia ordens ríspidas de um líder que não sabia nada, só mandava. Nero pensava em cooptar mais insanos, dos que seriam colhidos em Ancona, pois ele queria tomar o leme para si e jogar César, Imperator, no mar, para afogá-lo.

Nosso pseudo-Calígula começou a ter sintomas de grandeza e queria ver Nero morto, não sabia de nada que lhe cercava, segurava seu leme cada vez mais alheio da realidade, recebendo apoio dos delirantes de grandeza, o grupo de insanos que alimentava o seu ego que vivia numa espécie de transe imperial, como se estivesse perdido na antiguidade, pensando que dominaria o mundo com uma simples embarcação. Nero, por seu turno, era tão louco e insano quanto o pretenso imperador de Roma, mas estava avançando em suas cooptações e a estadia em Ancona era para ele estratégica, pois um marinheiro já informara que lá teriam que recolher dois grupos de insanos, um de depravados e outro de estultos que contavam piadas idiotas.

O fato é que estavam gestando uma guerra que logo ocorreria dentro da embarcação, esta chega então ao porto de Ancona, lá um dos marinheiros desce para conversar e negociar com um atravessador, perto dele se encontravam acorrentados dois grupos de insanos, primeiro foram recolhidos os depravados, neste podia se ver alguns que tinham um tipo de olhar perturbador em que brilhava uma faísca de insanidade, depois o atravessador pegou o outro grupo que estava num estado assustador, eram completos idiotas que falavam besteira sem parar e que nada do que diziam fazia qualquer sentido, eles conversavam entre si e com anjos imaginários que lhes respondiam sobre Deus e o diabo com a mesma facilidade com que se faz um cálculo aritmético simples. Estes idiotas julgavam ter a chave da filosofia, quando na verdade faziam piadas de péssimo gosto.

Em Ancona havia tanto este atravessador, uma espécie de faz-tudo e traficante de pessoas, havia o comandante do porto, que ordenou que se recolhesse logo aquela gente infame de Ancona e que aquele barco partisse logo para sua viagem sem destino e sem futuro. César agradece ao atravessador, que percebe que estava falando com um louco, logo César teve surtos de imperador, os grupos novos de insanos entraram no barco, César, Imperator, ele fazia galimatias, acabou expulso do porto pelo comandante, que o mandou queimar no inferno junto com aquele bando de loucos e dementes, o atravessador, por fim, obedecendo as ordens do comandante, enxotou César daquele porto, este que era imperador apenas em seu barco, no porto não passava de um rebotalho indesejado.

A embarcação, depois de uma tensa estadia de três horas, durante uma tarde, no porto de Ancona, deixa rapidamente aquele lugar, depois da pressa do comandante e do atravessador de se livrar daquela massa humana de insanos, César, Imperator, volta a dar ordens à sua tripulação, enquanto Nero já se encarregava, junto com a sua bruxinha, de cooptar aqueles novos insanos que adentraram a sujeira daquele barco, logo aqueles depravados, famintos, se empanturraram de carne podre, entre um mundaréu de moscas que voavam em volta de suas cabeças.

César, Imperator, convoca os insanos xingadores, por sua vez, para dar uma geral na embarcação, e estes percebem movimentações estranhas e conversas enviesadas, o grupo dos insanos arrogantes estavam irados, mal disfarçavam sua porfia, eles descontavam uma certa raiva nos mudos e nos anestesiados, enquanto isso os insanos criminosos tinham um plano próprio de instaurar o caos naquela embarcação e se livrarem destes imperadores postiços e deixar aquele lugar tomado pela anarquia.

Neste ínterim, os agressivos e animalescos, que apoiavam a conspiração de Nero, começaram uma altercação e logo uma briga de socos com os tais xingadores que apoiavam César, o grande imperador estava em seu leme, sem saber para onde ia, tendo seu marinheiro direcionado o barco agora para Pescara, para pegar mais três grupos de insanos, com os quais alguns daqueles marinheiros ganhariam algumas moedas de ouro, pois o porto de Pescara queria se livrar daqueles estorvos que emporcalhavam a cidade de Pescara.

Os animalescos, nesta briga com os xingadores, pareciam cachorros loucos, uns uivavam como lobos, num tipo de licantropia imaginária, uns tipos que babavam e davam guturais como lobisomens no cio, sendo sacaneados pelos viciados em luxúria que apoiavam César. Neste ponto, ainda não havia uma guerra, César, em seu leme, estava completamente alheio ao que se passava na embarcação, seu fascínio pelo mar e pelo horizonte o deixavam numa bolha de existência feita de maresia e miragens.

Os tagarelas que apoiavam César, se juntaram aos xingadores, a coisa ficou tão insuportável, que os animalescos ficaram mais surtados do que já estavam e caíram numa posição fetal patética como se rolassem pelo chão da embarcação como pequenos bichos que urravam de dor, enquanto os agressivos, que tinham socado vários daqueles xingadores, ficaram horrorizados com o avanço daqueles insanos tagarelas e saíram para um outro canto da embarcação, exaustos com aquela babel verbal daqueles chatos de galochas.

César se juntou aos delirantes de grandeza, e fez uma festa, logo os aparvalhados ficaram fazendo momices em volta de César, que ria e se dirigia a Nero com uma ironia, sem perceber os olhares que lhe cercavam naquele momento, aquela festa era temporária, o barco agora ia com um dos marinheiros em direção de Pescara, pois a loucura era uma espécie de tráfico de pessoas, e os marinheiros da nau dos insensatos, que habitavam a embarcação, mas não eram insanos, faziam escambo de gente o tempo todo, era uma malandragem, por isso dependiam de um tipo de rei louco, para simular uma ordem que eles, os marinheiros, eram os que manipulavam, os verdadeiros donos da situação e da embarcação.

A festa demencial de César e dos delirantes de grandeza, junto com os aparvalhados que comemoravam achando que estavam com um imperador divino durou a noite toda, varou a madrugada, desde aquela tarde em que a embarcação havia deixado Ancona para trás em direção de Pescara, pois os marinheiros estavam juntando moedas de ouro par fazer um pé de meia e depois abandonar aqueles loucos à própria sorte, a nau dos insensatos estava num misto esquizofrênico de festas e rixas no mesmo espaço.

Estranhamente, César e Nero, no dia seguinte, pela manhã, levaram uma conversa amigável de uma hora, nada que mudasse a situação, uma bomba poderia explodir a qualquer momento naquela embarcação insana que rumava na direção irresistível do caos. Os marinheiros já sabiam da movimentação, e também sabiam que aquilo seria benéfico para seus interesses particulares, pois ver aqueles loucos se engalfinhando facilitaria ainda mais o domínio oculto que eles exerciam naquela embarcação, com um rei palhaço que segurava um leme sem fazer absolutamente nada, a não ser, eventualmente, disparar ordens insanas como um tipo de perversidade infantil.

César não fazia ideia da conspiração de Nero, sua ingenuidade era hilária, ao passo que Nero era um tipo de perverso que sabia antecipar movimentos como um jogador de xadrez, ele só não sabia que havia um ar maléfico em volta, que eram os insanos criminosos, estes sim, dispostos a matar e fazer o diabo pelo poder, os marinheiros sabiam que o único grupo de insanos que eles deveriam prestar atenção e temer era aquele grupo de marginais doidos e sem escrúpulos, e que viam a vida como algo que poderia ser ceifado com um golpe de martelo.

Os marinheiros sabiam sobre a esperteza daqueles criminosos, ao passo que Nero se esquecera de ver esta sua retaguarda em seu jogo de xadrez, os mestres ali, ao fim, eram os marinheiros, que buscavam um jeito de se livrar dos marginais que povoavam aquele barco, mas ainda não tinham descoberto como. Nero dominava a situação com César, os criminosos estavam para tentar dar um contragolpe em Nero, e por fim a fatura poderia ser mesmo dos marinheiros, que traficavam pessoas, eram os donos de tudo, pois não eram insanos como todos que ali habitavam.

Depois do dia, no meio da madrugada, cinco dos criminosos insanos foram até um dos quartos da embarcação, acordaram os mudos e os anestesiados, eles amarraram ao mastro dois dos mudos, os espancaram e os deixaram sangrando com uma carta com o nome de Nero, jogaram três dos anestesiados ao mar, estes morreram afogados, no dia seguinte, César vê tudo e dá ordens de amarrar e surrar Nero, foi o que os xingadores fizeram, no que começou uma confusão por toda a embarcação.

Os agressivos começaram a socar os xingadores, e sorrateiramente, acabou que depois da confusão havia anestesiados e mudos que tinham sido esfaqueados, ninguém tinha visto nada, mas era obra dos insanos criminosos. Nero, por fim, estava desmaiado, amarrado ao mastro, acusado por César de agressão aos anestesiados, que eram como mortos-vivos e não podiam se defender.

César tenta dar um novo golpe de Estado dentro da embarcação e, tomado pela fúria, manda um dos marinheiros matar Nero, este, amarrado ao mastro, acordando, pede clemência, em vão, um dos marinheiros saca uma machadinha e crava na cabeça de Nero, que morre na hora, sua companheira, a bruxinha, não resiste ao choque, e se joga ao mar, ela nada em direção de um horizonte incerto até morrer afogada.

César ainda não sabia da conspiração feita pelos insanos criminosos, que eram muito espertos, no pior sentido, e muitos dos que apoiavam Nero acabaram sendo cooptados por estes bandidos loucos, e eles sabiam que teriam que lidar com os marinheiros, pois estes exerciam um tipo de poder mental, pois tinham o tesouro da embarcação e guardavam toda a documentação do mesmo com eles, nisto César dava ordens gritando para a embarcação seguir imediatamente para Pescara.

Chegando em Pescara, César desce junto com um dos seus marinheiros, este negocia com o atravessador, sob o olhar impaciente do chefe do porto, neste ponto César delira alheio à negociação espúria que ocorria entre seu marinheiro e o atravessador, era um grupo grande de acorrentados, um conjunto de insanos paranoides e insuportáveis, que lotariam mais uma parte daquela embarcação decadente, o marinheiro fecha negócio e embolsa uma pequena fortuna sem César perceber, ele achava que eram mais súditos para o seu império romano imaginário, este Calígula patético que agora se vangloriava de ter matado Nero.

Em meio da carne podre, os paranoides matam a fome, os agressivos ficam perturbados, um grupo destes paranoides começam a delirar contra vários dos insanos da embarcação a esmo, num tipo de alucinação coletiva, estes paranoides começam a ver insetos por toda a parte invadindo a embarcação, um destes era um velho que tinha tomado um chá alucinógeno e nunca mais voltara ao normal, este era o líder do grupo e sugestionava todo o resto e logo estes começam a ver aranhas e lacraias percorrendo a embarcação.

Os agressivos, que agora se juntavam aos insanos criminosos, se revoltam com aquele circo e resolvem fazer mais uma carnificina, doze dos paranoides são espancados e jogados ao mar, já entrava a noite, a embarcação já deixara Pescara há algumas horas, e o mar estava particularmente revolto, caía uma tempestade, uns insanos tagarelas se penduravam no mastro como se estivessem em meio de uma festa macabra, os xingadores gritavam contra os agressivos mais uma vez, e esta noite tempestuosa gerou mais uma pequena guerra em que os insanos criminosos começavam a ver meios de tomar o poder na embarcação que agora seguia para Bari, os marinheiros ficavam quietos, cuidavam do tesouro e contavam dinheiro em meio da confusão.

Em Bari, os marinheiros planejavam fazer uma grande negociação, pois o mais experiente deles pretendia vender parte de uns tecidos que estavam guardados na embarcação e ele conhecia um mascate que ficara rico em Bari e estava disposto a comprar a embarcação para usufruto dos marinheiros que trabalhariam para ele depois que os loucos da embarcação fossem descartados, e o plano para o tal mascate era a cargo dos marinheiros, eles teriam que vender estes loucos em outro país ou simplesmente se livrar desta carga humana como fosse, pois o mascate queria que a embarcação fosse usada para venda e compra de víveres por todo o mar Adriático.

De Pescara até Bari, a embarcação navegou por doze dias, neste ínterim, César tinha surtos de grandeza e de poder, os insanos criminosos começaram então a encher o ego e a cabeça de César de sonhos delirantes, de que todos ali ficariam ricos, mas dependia de César dar ordens para matar os seus marinheiros, os criminosos manipularam César até Bari, os marinheiros perceberam a movimentação estranha e um cheiro de intriga no ar, o mais experiente dos marinheiros logo ligou o alerta de que entre a venda da embarcação em Bari e a solução para tirar os loucos desta teria que ser rápida, ele então pensou em navegar a embarcação até a Dalmácia para tentar vender os loucos para serem escravizados por mercenários. Os insanos criminosos, no entanto, já tinham atentado que havia um tesouro dentro da embarcação e começaram a caçá-lo toda madrugada enquanto todos dormiam, o que fizeram por doze noites até Bari sem êxito.

A embarcação, depois de doze dias de navegação tumultuada, em meio de muitas tempestades, duas quedas em que um insano anestesiado e outro mudo caíram ao mar e se afogaram, chega ao porto de Bari, lá esperava o mascate junto com o atravessador e o comandante do porto, ali havia um punhado de dez insanos tagarelas que tinham sido expulsos da cidade pelo prefeito de Bari por perturbação pública, claramente insuportáveis, e que o atravessador, irritadíssimo, teve que segurar estes tagarelas acorrentados por dez dias seguidos de sol a pino no porto de Bari, e agora poderia se ver livre daqueles estorvos com a tal nau dos insensatos.

A embarcação então leva este pequeno grupo de tagarelas insuportáveis e o marinheiro, à revelia de César, que se encontrava cada vez mais delirante e alheio da realidade, toma o leme ao passo que César imaginava comandar tudo, e este marinheiro então segue até a Dalmácia, viagem que duraria um mês, e dizia a César que a embarcação seguia de volta à Roma para a sua coroação e retorno a seu império continental. César se empolga, e começa a ver seu reino de Roma novamente, ele imaginava a sua suposta vida passada como Calígula, e delira fatos históricos que nunca ocorreram.

A embarcação enfrenta novas tempestades, e dois dos insanos criminosos, no meio de uma madrugada, finalmente encontram o tesouro que os marinheiros guardavam e embolsam tudo em panos e lençóis improvisados e amarram com cordames que sobraram do soerguimento do mastro na construção da embarcação. Na manhã seguinte, um dos marinheiros dá falta do tesouro e diz aos outros marinheiros que eles tinham sido roubados e que tinham perdido tudo, eles desconfiam do grupo de criminosos, mas ficam com medo de enfrentá-los, e preferem esperar a chegada à Dalmácia para se livrar daquela gente e amealhar novamente alguma pequena fortuna vendendo massa humana para ser escravizada por mercenários.

Os insanos criminosos agora queriam matar César, e um dos marinheiros então faz um acordo final com este grupo, em que estes receberiam uma quantia na Dalmácia, fortuna que ficaria entre os marinheiros e eles, os criminosos, com a condição de deixar César vivo e não provocar o caos, pois toda aquela gente suja da embarcação seria vendida para mercenários e que a embarcação agora era propriedade do mascate que estava no porto de Bari, e eles usariam esta para vender e comprar víveres diversos, uma vez que a nau dos insensatos seria aposentada, o mascate disse aos marinheiros que eles teriam uma nova fonte de renda, pois era uma solução para os marinheiros se livrarem daquele trabalho caótico de tomar conta de loucos dentro de um navio para juntar fortuna.

A viagem agora vinha de um cheiro de carne podre cada vez mais insuportável, os insanos tagarelas ainda devoravam aquele misto de carne com mosca e gordura velha, já apareciam mais ratos na embarcação, tudo estava cada vez mais sujo, os marinheiros já sentiam engulhos frequentes e quando chegassem na Dalmácia, além de se livrarem daquele bando de insanos sujos e maltrapilhos, teriam que limpar tudo e jogar aqueles restos de carne de boi podre que estava há meses na embarcação e que era alimento destes infames delirantes que não sabiam o que comiam, apenas matavam a fome.

Os insanos agressivos disputavam com os ratos os nacos de carne, tudo parecia cada vez mais caótico, a presença abstrata de César era a única fonte virtual de ordem, mas não era nada, pois César piorava seu estado de demência e não conseguia mais ordenar uma frase inteira coerente, o marinheiro traduzia falsamente as suas falas para os insanos da embarcação, para tentar manter um mínimo de paz naquele cenário que desabava.

A tempestade estava cada vez mais forte nas madrugadas seguintes, cinco insanos anestesiados se afogaram no mar Adriático naquele intervalo, os marinheiros tentavam domar o leme e direcionar o mastro, o plano deles e dos criminosos tinha apaziguado uma possível guerra dentro da embarcação, e César delirava ser agora o dono dos mares, filho de Netuno, e que Éolo soprava o seu vento na direção de seu destino glorioso em Roma como o imperador do mundo, Calígula em uma versão requentada e patética, sem reino e sem seu palácio, com uma embarcação decadente e cheia de vermes, carne podre e loucos sem destino e que poderiam terminar na mão de mercenários.

César era um rei oco, tinha a dimensão existencial de um anão sem visão nenhuma, era um palhaço involuntário que só não era notado como tal por quem era tão insano como ele, os marinheiros o tinham na conta de um idiota fracassado e que cairia que nem uma jaca em seu sonho de esponja, não sobraria nada de sua empáfia imaginária de um rei de hospício. E o mascate já tinha dado ordens de que este César chato e insuportável seria despachado para os mercenários da Dalmácia junto com toda aquela plebe rude de insanos e desvairados.

Um dos marinheiros, que conduzia o leme de fato, levava a embarcação cada vez mais rápido na direção da Dalmácia, neste lugar sujo e com carne podre começavam a aparecer cada vez mais ratos, os insanos animalescos começaram a se misturar a estes ratos, uma porcaria imensa, enquanto os insanos viciados em luxúria voltavam a currar as duas moças que agora se encontravam num estado de torpor.

César delirava, no entanto, numa tarde de sol, com o mar Adriático relativamente calmo, ele sai de seu leme, desce até uma outra parte da embarcação que estava infestada de ratos, começa a remexer na carne podre que ali havia e, no meio dos ratos e das carnes, aparece uma serpente, que pula e dá o bote em César, ele leva três picadas seguidas bem na cara, esta incha, ele começa a ter a pele gangrenada, em dez minutos ele morre envenenado.

A embarcação agora estava sem governo, logo todos ficam sabendo da morte de César por picada de serpente, os insanos criminosos isolam esta serpente no mar, que some na imensidão do Adriático, e decidem que o marinheiro que comandava o leme era o novo líder da embarcação que, a esta altura, se aproximava da Dalmácia.

O cheiro de podre se misturava à maresia, o mar Adriático brilhava na aurora de um dia que seria de céu limpo, a embarcação enfim chega na Dalmácia, lá o grupo de marinheiros desce da embarcação, e um dos marinheiros que dominava o turco começa uma conversa com membros do porto da Dalmácia, lá eles ficam sabendo aonde estavam alojados os mercenários.

A embarcação estava ancorada no porto, com os insanos dentro achando que tudo estava bem, mas logo aparecem um grupo enorme de mercenários que invadem a embarcação e fazem todos aqueles insanos de prisioneiros para serem escravizados, todos saem acorrentados com violência, muitos apanham, no meio da confusão, uns morrem com golpes de adaga e cimitarra, dois são decapitados com cimitarra, as moças são estupradas e mortas pelos mercenários, os marinheiros embolsam uma fortuna e dividem o butim com os insanos criminosos.

Na manhã seguinte a embarcação deixa o porto da Dalmácia para seguir de volta a Ancona para comprar víveres para revenda em Roma, o mascate, que estava em Bari, já tinha orientado tudo e sabia de todas as mercadorias e preços, e o que estes marinheiros teriam que comprar.

Quando a embarcação deixa então o porto da Dalmácia, os mercenários seguem com os insanos escravizados até o Império Otomano, lá eles são revendidos, uns morrem de fome num trecho de deserto, e ao fim, já em meio a um outro grupo de mercenários, estes otomanos, os insanos que haviam sobrado são mortos e esquartejados, sendo jogados para os urubus numa praia abandonada.

A embarcação, agora comandada pelos marinheiros e pelos insanos criminosos, segue até Ancona, uma semana depois, numa madrugada, os insanos criminosos acabam matando todos os marinheiros e dominam a embarcação, ficam com todo o butim obtido com os mercenários da Dalmácia, passam mais cinco dias, e numa noite gelada e tempestuosa, o mar Adriático se agita ferozmente e a embarcação, a antiga nau dos insensatos, naufraga, e os insanos criminosos, que agora dominavam a embarcação, todos morrem afogados, era o fim desta a aventura de loucos.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Contos Psicodélicos – Volume II – conto pronto em 26/12/2020

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CUARASSY GUARÁ

“A vida vivida e espontânea que nos guiava, este era o tipo de conhecimento comum do qual compartilhávamos”

Meu primo era uma pessoa fácil de gostar, conhecia muita gente, com ele aprendi e, certamente, ele também aprendeu comigo. Nos dávamos bem, sua vida foi marcada, no entanto, por uma tragédia em seu começo, o câncer que matou sua mãe, minha tia, e agora este assassinato covarde que ceifou a sua existência aqui conosco na Terra.

Me faz pensar, ou melhor, perceber, que a Vila de Itaúnas se encontra em franca decadência, lugar de que ele tanto gostava e em que aconteceu seu assassinato por um cara esquisito que nunca tinha ouvido falar.

Este cara esquisito não é músico, é assassino, e que tinha comprado uma arma recentemente, e num enfrentamento físico com meu primo, logo sacou esta arma de fogo e efetuou os disparos, nas costas, que não deram chance de reação ou sobrevivência nesta última noite de sexta-feira, 18 de dezembro de 2020.

A família Medeiros e a família Del Nery estão em choque, no meu caso é a segunda vez que passo por uma tragédia familiar resultante de morte por assassinato por arma de fogo, pois meu irmão mais novo, Alex, morreu de tiros num assalto no Rio de Janeiro, em 8 de janeiro de 2015.

E agora recebo mais esta notícia chocante e revoltante, meu irmão tinha 24 anos, meu primo tinha 39 anos, vou fazer 39 e penso em como tudo é tão frágil e delicado. De como o mundo ainda é povoado por alguns covardes que causam tanta dor. Este assassino está para ser preso e espero que seja assim, que tudo seja feito dentro das regras do Estado de Direito.

Na família Medeiros, perdemos nosso segundo jovem adulto, primeiro foi minha tia Luciana, bem nova, de câncer, agora seu filho, Cuarassy, de 39 anos, num lapso, tudo muito rápido. Eu disse que não ia ver o tal vídeo, mas acabei vendo uns trechos sem querer, ao conferir uma reportagem de televisão pelo WhatsApp.

Conheço aquilo tudo, andei muito pela vila, lugar em que não piso nunca mais, não pelos moradores, mas pela memória que isto pode me suscitar daqui para a frente. A certeza é de que não vou mais para Itaúnas, é o terceiro homicídio na vila em poucos dias. É preciso atenção do poder público.

Disse que era fácil gostar de Cuarassy, e eu era um dos que me dava bem com ele, uma vida intensa, sem paradeiro, mas que estava em todos os lugares. Meu primo sabia viver, a capoeira foi sua escola, junto com a rua, nós nos juntávamos e formávamos uma amálgama.

Nossa relação se completava na identidade de família e de algumas semelhanças que nos unia, o sorriso frouxo dominava, algumas noites, algumas praias, a vida vivida e espontânea que nos guiava, este era o tipo de conhecimento comum do qual compartilhávamos.

Um dia vou te ver lá no céu, isso de certa forma me deixa sereno. Em meio de uma tragédia, esta imaginação fértil sobre a vida após a morte que me dá esperança de que nada tem fim.

Link de música : Legião Urbana : Vento No Litoral : https://www.youtube.com/watch?v=OR1_dmqAoGY

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/cuarassy-guara