PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 3 de julho de 2010

Trabalho Pós Foucalt - Vigiar e Punir - 1

A PRISÃO E A DELINQUÊNCIA EM FOUCALT




ALUNO: GUSTAVO VERVLOET DE MEDEIROS BASTOS



DISCIPLINA: ÉTICA E SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA



PROFESSOR: LEANDRO CHEVITARESI



CURSO: FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA



INTRODUÇÃO



O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da prisão e da delinquência, baseado, sobretudo, na obra Vigiar e Punir de Michel Foucalt. Tal análise vai percorrer os caminhos de como e porquê surgiu a prisão e de como e porquê ela se tornou o modelo padrão da punição de crimes.

Em seguida, uma vez feita a análise das razões de surgimento da prisão e de seu estabelecimento no sistema de punição, veremos quais são os motivos de seu aparente fracasso, afirmando logo depois o contrário, que tal fracasso é do interesse do sistema ao transformar simples infratores em delinquentes, surgindo todo um estudo e ciência criminológica neste estado de coisas.

Se verá então, neste texto, que, o fracasso da prisão, no sentido de correção de infratores, é o sucesso da ciência penitenciária, e, por conseguinte, da própria prisão, na produção de delinquentes a serviço das ilegalidades do poder como agentes deste mesmo poder que reproduz um estado de corrupção tolerada pelo sistema nas suas relações de poder, punindo apenas as ilegalidades populares.



CAPÍTULO I – PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E CORREÇÃO



Segundo Foucalt, em sua obra Vigiar E Punir, a prisão não é algo recente, não surgiu com os códigos penais, mas que adquiriu sua característica punitiva sob leis penais na passagem do século XVIII para o XIX. Ou seja, a prisão, antes dessa época, estava fora do aparelho judiciário. Foi então que, na época citada, a prisão se tornou a pena por excelência.

Com a prisão-castigo, nos primeiros anos do século XIX, as outras punições que os reformadores do século XVIII imaginaram foram esquecidas. A partir daí a prisão se tornou o único instrumento de punição dos crimes não podendo ser substituído por outro melhor, mesmo que a prisão não fosse o instrumento perfeito. Nas palavras de Foucalt: “não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.196).

A primeira função da prisão seria então a privação de liberdade. Esta seria, segundo Foucalt, uma das “obviedades” da prisão, sendo a segunda “obviedade” a transformação dos indivíduos. Portanto, estão aqui os temas correlatos do primeiro capítulo deste trabalho sobre Foucalt, ou seja, a privação de liberdade e a transformação do indivíduo na prisão, vamos elucidá-los.

A privação de liberdade se impõe como a melhor punição em uma sociedade cujos valores afirmam que a liberdade é um bem que pertence a todos, sua perda, portanto, tem a pretensão de ser um castigo igualitário, pretensão de justiça. Tal privação de liberdade pretende então ser um tipo de punição reparadora do delito cometido pelo infrator sob a forma de retirada do tempo do condenado. (Obviedade econômico-moral que estabelece equivalências quantitativas delitos-duração).

Por sua vez, a “obviedade” da prisão fundamentada no papel de correção através da transformação individual vem junto com a privação de liberdade, ou seja, a prisão teria como objetivo “regenerar” indivíduos pela privação de liberdade, este era o fundamento por excelência da prisão, e que permanecia sendo a ideologia da punição por detenção, mesmo que isto não fosse verdade na prática, onde não se produzia nenhum efeito de regeneração individual.

As técnicas corretivas vêm então fazer parte do aparato da detenção penal, sendo o fulcro no qual se produzirão os movimentos de reforma da prisão, que são, é bom lembrar, contemporâneos ao surgimento da própria prisão como instrumento ideal de punição e correção de indivíduos infratores. A reforma torna-se então o programa da prisão, uma “teoria da prisão”. E neste bojo vem a concepção da prisão como aparelho disciplinar, onde a ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta, inteira, como diz Foucalt: “seu modo de ação é a coação de uma educação total ... esse reformatório integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.199).

Percebe-se, então, que, junto com os movimentos de reforma da prisão, produziram-se novas técnicas disciplinares, onde o corpo e o tempo dos indivíduos são submetidos a uma coerção disciplinar que vai muito além do primeiro princípio da prisão como pura privação jurídica de liberdade. Essa é a conclusão de Foucalt, e a partir daí é que a disciplina se torna o ideal da correção, ou seja, já não mais a pura privação de liberdade como instrumento de correção ou transformação individual do infrator regenerando-o, mas sim uma disciplina radical do corpo e do tempo para a regeneração. Essa é a consequência da reforma: além da privação de liberdade, é necessário a disciplina total do indivíduo para a sua transformação.



CAPÍTULO II – O TRABALHO NA PRISÃO E A VIGILÂNCIA



O trabalho, junto com o isolamento, é uma das formas encontradas de transformação individual na prisão. Falando agora do papel do trabalho dos detentos na prisão, é bom destacar aí a polêmica entre os operários livres e o trabalho dentro da prisão, o que ocorre é uma oposição do operário e do delinquente, há greves desses operários contra as oficinas de prisão. Uma das causas dessa polêmica seria que o favorecimento do trabalho penal por parte do governo baixava os salários “livres”. A filantropia, por sua vez, daria mais importância às condições de trabalho dos detentos do que das do trabalhador livre.

Na verdade, o trabalho penal não seria, no entanto, a causa do desemprego ou dos problemas dos operários, já que era um tipo de trabalho de pouca influência sobre a economia, porquanto tinha pouco rendimento e extensão.

Portanto, a utilidade de tal trabalho penal não seria como uma atividade de produção, mas como princípio de ordem e de regularidade. O trabalho penal introduz a regra na prisão sujeitando os corpos dos condenados a uma disciplina de movimentos regulares, tudo isso sob uma vigilância que dispensa a repressão violenta em troca de uma obediência que é como que uma imitação da sociedade industrial, a vigilância pelo trabalho não precisa mais de meios violentos para impor a ordem, a ordem vem exatamente de uma vigilância total, que preenche todos os espaços e que controla o tempo e o corpo dos condenados. Nas palavras de Foucalt: “O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.204).

Segundo Foucalt: “O aparelho carcerário recorre a três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e da hierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo técnico-médico da cura e da normalização. A cela, a oficina, o hospital. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar. E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é a isso, em suma, que se chama o penitenciário” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 208).

A prisão, então, sob o signo da vigilância total (evocando aí o tema do Panóptico de Bentham, sendo a prisão como o seu lugar ideal ou mais privilegiado ou propício), se transforma de local de privação de liberdade (princípio primeiro tematizado como o ponto de partida sobre a reflexão sobre a prisão em Foucalt no primeiro capítulo deste trabalho), ou seja, como local de execução da pena, em local de observação dos condenados. Ou seja, a prisão passa de puro local de detenção para o cumprimento de uma pena para “um local de formação para um saber clínico sobre os condenados” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 209). Como consequência, o Panóptico tornou-se, por volta dos anos 1830-1840, o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão, no qual o condenado passa a ser um objeto de saber penitenciário. Por fim, o delinquente torna-se indivíduo a conhecer.



CAPÍTULO III – O SURGIMENTO DO DELINQUENTE



O delinquente surge em Foucalt como um novo objeto de saber, para o aparelho penitenciário isso implica uma mudança de foco no ato de punição e detenção, já que não é mais a infração que é punida e condenada, nem mesmo o infrator, mas este novo objeto, ou seja, o delinquente. Este é o novo personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado.

A mudança fundamental que ocorre com o surgimento do delinquente é que ele se distingue do infrator por não ser mais o ato infracional que o qualifica como delinquente, mas sim sua biografia, isto é, sua vida pregressa, o que implica um novo saber que deve levar em conta o contexto da infração como determinação do ser do condenado agora sob a denominação de delinquente.

Segundo Foucalt: “O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.211), ou seja, o legislativo não vai além do ato em si que levou à condenação, enquanto que o aparelho penitenciário insere a biografia do condenado para qualificá-lo como delinquente. O elemento biográfico será a grande novidade na história da penalidade, porque ele faz existir o criminoso antes do crime, o que faz com que a observação do delinquente vá além das circunstâncias em direção às causas de seu crime. “A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 211).

A partir daí a delinquência é entendida como uma patologia analisada como síndromes mórbidas, onde o criminoso se insere numa tipologia ao mesmo tempo natural e desviante, ou seja, o delinquente se distribui em classes quase naturais nas quais se estabelece um conhecimento positivo dos delinquentes e de suas espécies, diferenciando-se da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias. Nesse novo saber o que importa é qualificar “cientificamente” o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinquente. Surge a possibilidade, então, segundo Foucalt, de uma criminologia.

“O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinquente, unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.213). Foucalt conclui, então, que a ciência penitenciária surgiu junto com o delinquente, não foi um que produziu o outro, ou seja, a delinquência é o meio pelo qual a criminologia se impõe como uma espécie de vingança da prisão contra a justiça através da delinquência.



CAPÍTULO IV – SOBRE O FRACASSO DA PRISÃO



A prisão, segundo Foucalt, no seu projeto carcerário, veio substituir o espetáculo mórbido do suplício, ou seja, tinha a pretensão de ser a solução para o problema da punição das infrações sem derramamento de sangue, era uma nova filosofia corretiva que não admitia a selvageria dos suplícios, mas somente a limpeza de uma disciplina perfeita sob a arquitetura panóptica benthamiana. Portanto, esta nova filosofia disciplinar veio como um ideal de punição e correção com pretensão de diminuir a criminalidade de fato.

Porém, logo se constata o fracasso deste projeto carcerário, ou seja, a prisão se torna o grande fracasso da justiça penal, pois ela não diminui a taxa de criminalidade, nas palavras de Foucalt: “a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.221).

O principal problema da prisão, ou seja, de ela não diminuir a criminalidade, que deveria ser o seu objetivo e na verdade não deixa de ser, é que o número de reincidências aumenta mais que decresce, ou seja, a detenção provoca a reincidência, a maior parte dos condenados são antigos detentos. A prisão, portanto, não devolve à liberdade indivíduos corrigidos, mas sim delinquentes perigosos.

Agora, por quais razões a prisão fracassa no sentido de corrigir indivíduos criminosos? Uma das respostas de Foucalt para esta pergunta é que: “A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.222). Além disso, os ex-detentos não são favorecidos no sentido do trabalho, ficam sob a vigilância da polícia, e têm um passaporte que mostram em todo o lugar que passam mencionando a condenação que sofreram. Portanto, não são dadas possibilidades de regeneração aos ex-detentos e eles, na impossibilidade de encontrar trabalho, e condenados, por isso, à vadiagem, acabam reincidindo nos seus crimes. A prisão, por conseguinte, passa de lugar de correção de indivíduos infratores para fábrica de delinquentes, e esse é o seu fracasso, ela falha no seu objetivo e acaba por criar um estigma sobre os ex-detentos que fatalmente vão cometer novos crimes uma vez em liberdade, voltando à prisão e atestando o fracasso da mesma.

Foucalt, então, percebe que há um paradoxo nesta questão do fracasso da prisão, isto é, a prisão, há um século e meio, vem sempre sendo dada como seu próprio remédio. Ou seja, a chamada fábrica de delinquentes não pode deixar de ser chamada também de lugar de correção, e aí é que está o grande paradoxo foucaltiano na sua análise sobre a prisão. A prisão passa por uma reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente. Portanto, para Foucalt, a reforma da prisão é desde sempre fracassada. E, então, Foucalt pergunta: “O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.225).



CAPÍTULO V – O SUCESSO DA PRISÃO : A DELINQUÊNCIA



Foucalt levanta, a partir da pergunta do parágrafo anterior, a tese de que o fracasso da prisão não é uma fatalidade, mas sim algo que tem interesses por trás, daí resultando a sua permanência até hoje como o padrão da punição de delitos. Qual seria, então, a razão desse estado de coisas?

Se a lei define as infrações, com o aparelho penal tendo como função reduzir tais infrações e, por conseguinte, com a prisão como instrumento de repressão das infrações, o fracasso da prisão em cumprir este papel é flagrante e incontestável. Porém, Foucalt vê neste estado de coisas um interesse sistêmico. O que faz com que 150 anos de fracasso da prisão seja seguido da manutenção da mesma? Foucalt, com esse questionamento, chega então à pergunta fundamental: “Para que serve o fracasso da prisão?” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.226).

A razão encontrada por Foucalt para tal estado de coisas na prisão é de que a punição de detenção não serve como instrumento de repressão das infrações visando suprimi-las, mas sim com o objetivo de separar, distribuir e utilizar tais infrações no sentido de usar as penalidades como forma de gerir as ilegalidades. Portanto, com este argumento, Foucalt afirma que as infrações são classificadas de acordo com as penalidades que, por sua vez, distinguem as diferentes ilegalidades, umas toleradas e outras não. Nas palavras de Foucalt: “A penalidade não ‘reprimiria’ as ilegalidades, ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral. ... O ‘fracasso’ da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.227). Portanto, a utopia da reforma penal aplicada no fim do século XVIII visando produzir uma sociedade universal que daria fim a qualquer tipo de ilegalidade logo acaba com as novas ilegalidades populares.

Na passagem do século XVIII ao XIX há o desenvolvimento da dimensão política das ilegalidades populares, certos movimentos políticos passam a se apoiar em formas existentes de ilegalidade. Tais movimentos das ilegalidades operárias eram contra o novo regime de exploração legal do trabalho no começo do século XIX, junto com a ilegalidade camponesa que lutava contra o novo regime de propriedade da terra instaurado pela burguesia. As ilegalidades operárias e camponesas se tornam, por conseguinte, lutas sociais.

Foucalt, então, afirma: “Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente ‘fracassar’, não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade ... Essa forma é a delinquência propriamente dita”. (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.230).

A delinquência torna-se um efeito da penalidade de detenção que permite diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades. A delinquência continua sendo uma forma de ilegalidade dentre todas as outras, mas é a ilegalidade que o sistema carcerário organizou e fechou num lugar definido e ao qual deu um papel instrumental em relação às outras ilegalidades.

O sucesso da prisão para Foucalt, por trás de seu aparente fracasso (que ela fracassou em reduzir os crimes), é que a prisão conseguiu produzir a delinquência, tipo específico e utilizável de ilegalidade. “O sucesso da prisão: nas lutas em torno da lei e das ilegalidades, especificar uma ‘delinquência’. Vimos como o sistema carcerário substituiu o infrator pelo ‘delinquente’” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.230). Ou seja, a prisão consolidou a delinquência no movimento das ilegalidades. E essa ilegalidade controlada é diretamente útil. Mas, por que é útil? Ao se diferenciar das outras ilegalidades populares, a delinquência pesa sobre elas. A delinquência, ao ser vigiada e controlada, torna-se um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes, daí o interesse cínico de ser a prisão um meio onde nasce e se organiza a delinquência, há um interesse político e econômico, ou seja, de favorecer os interesses dos grupos dominantes e de combater as ilegalidades populares. A delinquência torna-se, por fim, um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades.

Como diz Foucalt: “Pode-se dizer que a delinquência, solidificada por um sistema penal centrado sobre a prisão, representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da classe dominante ... Todo um funcionamento extralegal do poder foi em parte realizado pela massa de manobra constituída pelos delinquentes: polícia clandestina e exército de reserva do poder” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.233). Ou seja, a delinquência tem uma importância fundamental para o poder vigente, ela atua de maneira ilícita para manter o poder dos grupos dominantes, então ela é reproduzida na prisão para tais objetivos, o sucesso da prisão é o sucesso do poder dominante e o combate deste poder contra as ilegalidades populares via delinquência.

Mas, Foucalt enxerga ainda outra relação sistêmica no que se refere à delinquência. Nas suas palavras: “A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinquência não teria sido possível sem o desenvolvimento dos controles policiais ... a delinquência, objeto entre outros da vigilância policial, é um dos instrumentos privilegiados dessa mesma vigilância” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.233).

Foucalt entende, portanto, que, além de ser fabricada pela prisão, a delinquência tem uma relação direta com a polícia no sentido de colaboração no seu trabalho de vigilância da população, mas numa atuação via agentes ocultos infiltrados no campo social, a delinquência ajuda a polícia como observatório político, daí ser esta relação mais uma face do sucesso da prisão, a relação agora se dá numa tríade: polícia-prisão-delinquência. O sistema polícia-prisão se utiliza da delinquência da seguinte forma: “A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares da polícia” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.234). Fecha-se aí o circuito do sistema, segundo Foucalt, tudo no interesse dos grupos dominantes no combate das ilegalidades populares, onde há uma diferenciação das ilegalidades para a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante.

O que ocorre, por fim, para Foucalt, é que a delinquência é investida pelo poder ao se destacar das outras ilegalidades, combatendo as ilegalidades populares e favorecendo as ilegalidades da classe dominante. E, para este fim, há uma acoplagem direta e institucional da polícia e da delinquência, momento em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder, onde há um deslocamento para as técnicas policiais da prática delinquente que se torna ilegalidade lícita do poder.



CAPÍTULO VI – AS REAÇÕES CONTRA A DELINQUÊNCIA



A produção sistêmica da delinquência e a separação dela das outras ilegalidades, sua colonização pelas ilegalidades dominantes, efeitos do sistema polícia-prisão, encontrou, como era de se esperar, várias resistências, provocou lutas e reações.

Havia uma intenção de separar os delinquentes das camadas populares, o que foi feito a partir de um processo de “moralização” das classes pobres, formando uma espécie de “legalidade de base”, num momento em que o sistema do código substituíra os costumes.

Os jornais populares, por sua vez, passam a combater a “romantização” da delinquência pela literatura de crimes (metafísica burguesa de crimes burgueses), gerando uma desconfiança geral de todo o movimento operário em relação aos condenados de direito comum.

No entanto, o conflito das camadas populares contra a delinquência não acabou com os chamados “crimes de cima”, ou seja, não acabou com a delinquência dos ricos, fonte de toda a revolta dos pobres. Como diz Foucalt: “Ora, essa delinquência própria à riqueza é tolerada pelas leis, e, quando lhe acontece cair em seus domínios, ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.239).

A partir dessa indulgência do poder com o próprio poder, ou seja, da lei com a delinquência dos ricos (que acabam por se tornar uma coisa única, pois os que fazem as leis são da classe dominante e corrupta), há um contranoticiário policial que, então, se insurge contra esta situação cínica e hipócrita, denunciando a “podridão moral” da burguesia, ao invés de mostrar os crimes dos pobres, que, perto da delinquência burguesa, não são tão graves.

Foucalt conclui, então, sua análise da prisão e da delinquência, afirmando que: “Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão ... Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a acusação de imoralidade, mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 240).

Portanto, Foucalt não acredita que o crime seja algo de uma suposta essência criminosa subjetiva, mas sim uma coisa objetiva gerada pela sociedade nas suas relações de conflitos entre grupos que se opõem, no caso aqui da delinquência e de sua utilização pelo sistema polícia-prisão contra as ilegalidades populares e a favor da ilegalidade burguesa que detém o poder. Para ser claro, a delinquência não passa de massa de manobra do poder que então mantém o sistema polícia-prisão mantendo, por conseguinte, a delinquência.



CONCLUSÃO



Podemos concluir, portanto, que Foucalt deixa claro que a prisão, por trás de seu pretenso fracasso, tem, ao produzir a delinquência, o seu sucesso que eu chamaria de político. Uma vez que os crimes burgueses se beneficiam de tal estado de coisas, há um interesse sistêmico que se autoalimenta através do fenômeno da delinquência, uma vez que os delinquentes são usados como agentes do poder corrupto burguês que só reprime ilegalidades de origem popular, independente das acusações do contranoticiário popular, sendo então presente neste mesmo fenômeno uma conivência do poder com o próprio poder. É o que podemos chamar de hipocrisia burguesa que se fecha no circuito polícia-prisão-delinquência. Há um interesse político do status quo em manter as ilegalidades burguesas toleradas pelo sistema, mantendo as ilegalidades populares sob punição exemplar.

A prisão superou o espetáculo dos suplícios através da disciplina do corpo dos condenados que se tornam dóceis engrenagens do sistema penitenciário, e que, uma vez libertos da prisão, saem como delinquentes agentes do poder no interesse corrupto das classes dominantes. Não há fracasso algum da prisão, mas sim o chamado sucesso da reprodução tolerada das ilegalidades burguesas via produção penitenciária da delinquência.



BIBLIOGRAFIA:



Foucalt, Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis, Ed. Vozes, 2007.

Foucalt, Michel, Microfísica do Poder, São Paulo, Ed. Graal, 2007.

Foucalt, Michel, As Palavras e as Coisas, Edições 70, 2002.

Foucalt, Michel, A Arqueologia do Saber, Forense Universitária, 2008.

Foucalt, Michel, A Ordem do Discurso, Edições Loyola, 2005.

Foucalt, Michel, A Verdade e as Formas Jurídicas, Nau Editora, 2002.

Foucalt, Michel, O Nascimento da Clínica, Forense Universitária, 2004.

Foucalt, Michel, História da Sexualidade I : A Vontade de Saber, Graal, 1988.

Foucalt, Michel, História da Loucura, Perspectiva, 2007.

Foucalt, Michel, Os Anormais, Martins Fontes.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

conclusão e bibliografia

CONCLUSÃO CRÍTICA




A presente monografia tematizou todo o percurso ético-categorial dusseliano até chegar ao que interessa realmente para a sua Ética da Libertação, que é a práxis de libertação. Primeiro, discorri sobre o horizonte categorial da obra, partindo da concepção histórica inovadora de Dussel, e então, depois de feita esta incursão histórico-crítica, passei aos pressupostos da ética dusseliana, com os tipos de racionalidade e a relação desses tipos de racionalidade na fundamentação dos princípios éticos dusselianos, princípios que se resumem na tríade material, discursiva e de factibilidade, tendo como primeiro momento a ética fundamental ou acrítica e como segundo momento a ética crítica, ou seja, a primeira parte da obra dusseliana faz uma categorização dos horizontes éticos usuais da tradição do pensamento ético e moral, e a segunda parte faz uma desconstrução crítica de tais categorizações, fazendo uma transposição das mesmas para um horizonte crítico que anuncia, com isso, a emergência do novo.

Desta feita, cheguei ao último capítulo da obra Ética da Libertação de Dussel, para fazer uma análise e uma crítica da práxis de libertação. A análise apenas corroborou o que Dussel edificou em sua obra, expondo as temáticas do capítulo VI (último capítulo) de sua Ética da Libertação. Por fim, na parte de crítica da práxis de libertação, me dei uma liberdade maior para fazer um aprofundamento das conexões presentes na obra, com a liberdade crítica de uma hermenêutica da práxis de libertação dusseliana, tentando alcançar as entrelinhas de sua obra e procurando realizar uma reflexão original sobre o significado de todo o percurso dusseliano em sua obra.

Por fim, chego a tais conclusões: Dussel não chega exatamente num plano concreto de ação para a práxis de libertação, sua crítica ética em sua obra Ética da Libertação fornece os pressupostos para uma ética crítica do capitalismo global, mas não atinge o fim prático da transformação, nem chega ao modelo concreto do que seja uma utopia do possível, ele apenas traça categorialmente seus pressupostos éticos em nome de uma transformação radical do sistema vigente. Pode-se dizer que, no que tange ao horizonte conceitual, a ética dusseliana é bem estruturada e consegue penetrar todos os elementos da vida humana concreta e histórica, mas faltaram informações práticas, especificações de quais são exatamente os limites empíricos impostos à práxis de libertação, os quais foram expostos apenas em linhas gerais. Talvez se possa saber melhor do que uma práxis de libertação é realmente capaz, no mundo concreto e histórico, na próxima obra dusseliana, Frentes de Libertação, o que obriga a dizer que a obra estudada nesta presente monografia é forte quanto aos fundamentos éticos universais que a regem, o que deixa Dussel isento do relativismo ético em que caíram vários pensadores e teóricos, mas a obra é insuficiente quanto às situações específicas de uma práxis de libertação, o projeto de libertação dusseliano é a libertação das vítimas por uma práxis de libertação cotidiana, e o mundo cotidiano é imprevisível quanto ao êxito empírico da teoria ético-libertadora dusseliana.

Talvez tenhamos a real dimensão da práxis de libertação ao se estudar as frentes de libertação que estão espalhadas pelo planeta Terra, ou seja, os princípios éticos estão devidamente fixados teoricamente, mas falta uma visualização empírica de tal projeto de libertação dusseliano, o projeto de um mundo que obedeça aos princípios enunciados por Dussel, pois.

Dussel, em sua Ética da Libertação, faz uma extensa análise passando por diversas correntes filosóficas, é uma tarefa árdua a serviço dos seus princípios éticos, Dussel obedece à “tríade”: horizontes ético-material, moral-formal e de factibilidade. Dentro dos três fundamentos, Dussel compõe a sua ética crítica, as indicações teóricas já foram dadas à práxis de libertação, as causas da negação da vítima e suas possibilidades de libertação. É agora, portanto, no século XXI, que este novo sujeito sócio-histórico materializado pelas vítimas do sistema vigente vai emergir de uma zona de exclusão e opressão. O sistema-mundo não vai durar para sempre, a História nos dirá, então, quais são as possibilidades reais de transformação do sistema vigente para um sistema em que a vida humana tenha um desenvolvimento pleno, e que não seja, portanto, dominada por uma pura reprodução sistêmica fetichizada. O veredicto, por fim, do projeto de libertação fornecido pela Ética da Libertação dussseliana, quanto ao seu êxito ou não no mundo concreto, será dado pela História, assim como a História refutou o projeto de libertação comunista que, na visão dusseliana, não foi exatamente o projeto marxista de libertação do proletariado, mas uma rede de corrupção burocrática e de repressão ideológica que ia de encontro ao princípio-democracia enunciado por Dussel.

A História nos dirá, por fim, se o mundo democrático do estado de direito, o qual é o mundo em que se pode dar a utopia do possível para Dussel, superará ou não a sua fase de fetichismo do capital submetido ao horizonte economicista neoliberal. A ética dusseliana, pode-se dizer, enfim, que é uma ética democrática, mas não nos moldes de uma democracia liberal, mas de uma democracia a qual denomino de democracia ético-social, este seria o mundo da utopia do possível, para Dussel, em seu projeto de libertação das vítimas do sistema vigente, qual seja, a realização de sua ética da vida.























BIBLIOGRAFIA:

Dussel, Enrique, Ética da libertação, Petrópolis, Ed.Vozes, 2002.

Dussel, Enrique, Para uma ética da libertação latino-americana, 5 vol, SP, Ed.Loyola, 1980.

Dussel, Enrique, Filosofia da libertação, SP, Ed.Paulus, 1995.

Dussel, Enrique, 1492: o encobrimento do outro, Petrópolis, Ed.Vozes, 1992.

Dussel, Enrique, Método para uma filosofia da libertação latino-americana, SP, Ed.Loyola, 1986.

Lévinas, Emmanuel, Entre nós, Petrópolis, Ed.Vozes, 2005.

Lévinas, Emmanuel, Ética e infinito, Portugal, Edições 70, 2000.

Zea, Leopoldo, Discurso desde a marginalização e a barbárie, RJ, Ed.Garamond, 2005.

Foucalt, Michel, Microfísica do poder, SP, Ed.Graal, 2005.

Marx, Karl, O capital, RJ, Ed. Ediouro, 2002.

continuação

CAPÍTULO III : Uma crítica sobre a práxis de libertação na obra Ética da Libertação de Dussel




3.1 – sobre as possibilidades da práxis de libertação

A práxis de libertação, em Dussel, é o fim próprio de sua ética, a ética dusseliana formula, até chegar à práxis de libertação de fato, uma teoria crítica sobre a negatividade das vítimas no mundo atual globalizado, toda a teoria tem como fundo a crítica do sistema capitalista mundial, sendo fundamental para a sua crítica ética o princípio material do dever de produzir, reproduzir e desenvolver a vida, é a tese crítica central da Ética da Libertação de Dussel, é na corporalidade negada, que sofre, a negatividade material da vítima, que se inicia a construção teórica e categorial que busca para a vítima um suporte para a sua auto-libertação, é este, o princípio material, que estabelece a primeira crítica de Dussel ao sistema vigente, a práxis de libertação seria a ação necessária da vítima contra a sua opressão e exclusão, tendo como primeiro efeito do domínio sistêmico um sujeito que sofre em seu corpo as dores de uma exclusão material. Temos então o sujeito negado em sua condição material, sofrendo concretamente no corpo a fome ou o frio, vivendo em completa miséria, este é o primeiro apelo social de Dussel, a vítima desnuda e vulnerável em seu corpo frágil, no limite extremo do critério vida-morte dusseliano, mais para a morte que para a vida.

Dussel tem na corporalidade negada da vítima, no corpo que sente fome e frio, que é explorado na reprodução do capital, a fonte principal de sua crítica ética. O sujeito ético dusseliano assume aqui uma forma ampla, pois, aparece primeiramente como conteúdo material, pulsional, universalidade da corporalidade, do princípio material dusseliano. Dussel consegue transcender, com este princípio, os conteúdos culturais e valorativos, temos agora um sujeito ético-corpóreo universal, a primeira manifestação do sujeito ético em Dussel, aparecendo como negatividade, como vítima do sistema vigente, em toda vítima concreta está a vítima universal. Na práxis de libertação, a comunidade das vítimas tem como primeiro movimento o de negar a negação material que sofre.

Para a intersubjetividade, o princípio material deve ter, por conseguinte, um princípio formal de validação, é aqui que a ética dusseliana se encontra com a moralidade discursiva, temos então para o sujeito ético a luta pelo reconhecimento simétrico discursivo, por sua participação na discursividade moral, que, para a vítima, é negada. Temos então a negação do discurso das vítimas no sistema vigente, o que fará nascer a comunidade crítico-discursiva simétrica das vítimas, é a partir desta comunidade crítica das vítimas que surgem os movimentos sociais com uma discursividade própria que entra em conflito com o discurso do sistema vigente, a vítima terá, sobretudo na ciência social crítica, o seu programa de ação, a práxis de libertação ganha com isso uma justificação para suas reivindicações perante o sistema, a libertação das vítimas ganha fundamentação científica, as vítimas têm teoria, têm discurso, se organizam, e, mesmo na ilegalidade de suas ações, crêem na justiça de suas aspirações, são ilegais para o sistema, mas legítimas como luta social, e que, em Dussel, passa a ter justificação ética, justiça para os oprimidos e excluídos que se torna um dever ético de libertação.

Portanto, temos, para a práxis de libertação, o momento negativo de negação da negatividade da vítima, negação crítica de sua negatividade material e discursiva, é a desconstrução necessária como o movimento crítico que antecede a edificação do novum, é a denúncia da contradição sistêmica e a negação do bem que o sistema impõe, bem que é sofrimento para as vítimas. A práxis de libertação usa, então, da estratégia de explorar as fissuras do sistema, o momento negativo é o momento da crítica do bem sistêmico. O momento positivo da práxis de libertação é quando as vítimas usam da criatividade para construir o novo, temos um programa científico de ação, uma teoria da ação, e, logo depois, a ação efetiva com tática e estratégia, com o realismo da factibilidade empírica, com a orientação prática da factibilidade ética, com a subsunção dusseliana de todos os seus princípios éticos enunciados para a sua Ética da Libertação na razão libertadora, agora temos o passo definitivo da práxis de libertação em Dussel, quando esta parte para a ação transformadora, ação cotidiana que podemos ver nos movimentos sociais críticos do sistema, que devem, antes de tudo, estarem organizados o suficiente para uma ação eficiente e que transformem de fato alguma coisa, pois a práxis de libertação, para o sistema, em princípio, é uma ação ilegal, e que pode vir a sofrer a repressão violenta dos organismos policiais, pois a práxis de libertação se constitui, na prática, num embate entre as vítimas e as leis vigentes, há um enfrentamento que pode ser pacífico ou violento, sendo a ação violenta do sistema contra as vítimas o gerador da crise de legitimidade do sistema, enquanto a práxis de libertação das vítimas ganha legitimidade, denunciando o sistema e anunciando o novo.

A práxis de libertação tem na organização a fonte de um planejamento prático, um plano de ação tático e estratégico, pois se consolida no uso das razões estratégica e instrumental, possibilidade empírica da ação transformadora, a práxis concreta de libertação não pode agir sem antes ter uma organização tática e estratégica precisa quanto ao fim auspicioso da ação libertadora, na sua desconstrução do sistema vigente e edificação de uma nova estrutura institucional, submetida aos princípios éticos libertadores das vítimas, temos aqui a utopia do possível, da qual voltarei a falar adiante.

Mas, o que devemos ter como base da práxis de libertação é sua organização estratégica, e, na Ética da Libertação dusseliana, não se trata de um plano de ação ideológica comunista, anarquista, ou muito menos reformista, é um plano de ação cotidiano que não se fundamenta com uma ideologia, mas sim com princípios ético-críticos com um modelo teórico para a ação das vítimas de se auto-libertarem, não temos aqui, portanto, um vanguardismo no estilo da revolução soviética, o que se vê é um Dussel ponderado quanto à ação libertadora das vítimas, ele entende a libertação ou a práxis de libertação como uma interferência crítica cotidiana e que só assume feições revolucionárias em casos extremos, o que temos é um Dussel que, se quisermos dar uma ideologia que funda a sua Ética da Libertação, é o princípio racional democrático, todo o projeto de libertação dusseliano considera, antes de tudo, o respeito pela simetria discursiva dos sujeitos no sistema, simetria que se pode alcançar com transformações libertadoras que, se se querem como tais, devem fundamentar tais ações num projeto democrático-libertador. Mas, não temos em Dussel, ainda que com o pressuposto do princípio democrático para toda práxis de libertação, uma ação ideológica, pois a práxis de libertação em Dussel já carrega em si (intrinsecamente) o princípio-democracia, não é práxis de libertação se não for democrática, o que refuta a tese revolucionária comunista de ditadura do proletariado, não há possibilidade de libertação sem que haja, antes de mais nada, em Dussel, democracia.

Para explicar melhor o que Dussel entende por democracia, temos de nos atentar à sua crítica ética. Portanto, o sentido do princípio-democracia, em Dussel, se trata de uma dinâmica de libertação pela ética, das vítimas do sistema performativo capitalista. O que se entende por princípio-democracia na obra dusseliana é, sobretudo, a inclusão material e a simetria discursiva das vítimas no sistema vigente que, para tanto, deve ser transformado cotidianamente, até que se alcance uma democracia legítima, e não uma democracia nos moldes excludentes e assimétricos do modelo neoliberal globalizado. Há, em Dussel, um sentido amplo para a palavra democracia, que deve ir além de uma democracia puramente política, e alcançar as exigências éticas de libertação das vítimas, ou seja, o princípio-democracia dusseliano é um princípio ético-social, e não somente um princípio político, tal como é concebida a democracia do liberalismo político. Por fim, o princípio-democracia é o princípio regente de sua Ética da Libertação, quer dizer, é a racionalidade ou idéia racional regulativa de fundo em relação a todos os critérios e princípios ético-libertadores apresentados por Dussel em sua obra. A racionalidade democrática, em seu sentido pleno, ou seja, como democracia ético-social, e não somente como democracia política, é o a priori de toda ação libertadora das vítimas realizada enquanto práxis de libertação.

O que Dussel critica, na verdade, é o sistema capitalista globalizado, a hegemonia ideológica do economicismo neoliberal que gera exclusão material e discursiva de uma maioria de vítimas. O elemento sócio-histórico de opressão e exclusão do modelo capitalista liberal chega ao ápice em sua fase global, e Dussel cria o seu modelo teórico categorial para uma orientação da crítica ao sistema com um fundamento ético, sendo o critério de vida-morte exatamente a chave mestra de toda a reflexão dusseliana, e o primeiro critério, digo até, o mais importante, para a teoria crítica da Ética da Libertação de Dussel, e o fundo no qual a práxis de libertação se dará, práxis de afirmação da vida negada da vítima pelo sistema, práxis que só vemos como necessária a partir do critério vida-morte que denuncia a exclusão material das vítimas, e que, na visão dusseliana, foi esquecida por muitos modelos teórico-éticos.

O avanço que se tem com a ética dusseliana de libertação, sobretudo, é a consideração do mundo concreto, material, corpóreo, e que é o primeiro princípio universal que transcende o relativismo ético do valorativo e do cultural, temos no sujeito pulsional, por fim, a primeira manifestação do sujeito sócio-histórico emergente (comunidade crítica das vítimas), pulsão alterativa que se dá num horizonte material que é universal, a práxis de libertação se funda, então, em princípios universais, embora seja um movimento crítico da alteridade do Outro que o sistema, o excluído, pois a práxis só tem função se libertar a vítima universal que está em toda vítima concreta, é a afirmação da alteridade negada da vítima com uma teoria ética universal, ética universal que perpassa a particularidade cultural e valorativa transversalmente.

As possibilidades empíricas da práxis de libertação, por sua vez, devem estar subsumidas pelo horizonte de factibilidade ético-crítico, como já dito anteriormente. A uma práxis de libertação, para ter êxito, é necessário, não só a organização, mas a prática de um verdadeiro movimento popular, a práxis de libertação se concretiza com os movimentos sociais libertadores agindo concretamente nos limites impostos pelo sistema, tornando-se uma práxis eficiente de acordo com o aprendizado prático alcançado com ações cotidianas de transformação do sistema vigente, temos aqui uma ação cotidiana de transformação que, embora cotidiana, e que, por isso, possa, muitas vezes, parecer uma ação banal e não transformadora, fará parte de um conjunto de ações de movimentos sociais libertadores que têm em vista um resultado que só será notado a longo prazo, a possibilidade de realização da libertação para a práxis de libertação será resultado, no fim, de ações cotidianas ético-libertadoras com um projeto concreto de libertação, projeto de transformação radical do sistema vigente, mas que se conquista com pequenas transformações cotidianas.

A práxis de libertação tem como objetivo ético e político, em Dussel, por sua vez, a realização de um projeto democrático, um modelo crítico-discursivo simétrico de libertação das vítimas e um modelo material de afirmação corpórea das vítimas, e a subsunção, por fim, de tais modelos, no horizonte crítico-prático dos limites empíricos da práxis junto com os limites éticos de factibilidade, tendo-se na razão libertadora a ação efetiva da práxis de libertação, é nela que temos a reunião dos princípios ético-universais material, discursivo e de factibilidade, pode-se dizer que a práxis de libertação só se torna uma ação eficiente com uma razão libertadora que deve obrigatoriamente obedecer, no caso dusseliano, aos princípios enunciados por Dussel ao longo de sua Ética da Libertação, a práxis de libertação obedece, por fim, ao modelo teórico e categorial edificado por Dussel, seria a práxis de libertação a justificação prática da teoria ética dusseliana de libertação, pois tal ética só se fundamenta enquanto um projeto de ação empírica, um projeto de libertação que se realiza numa práxis de libertação que concretiza, portanto, um modelo pressuposto de uma ética crítica em favor das vítimas do sistema vigente, qual seja, a Ética da Libertação de Dussel.

Poderia se dizer aqui que a Ética da Libertação de Dussel se trata de um modelo ético que se pretende como universal, Dussel se propõe a edificar uma ética universal (corporalidade e discursividade universais), mas que tem como fundamento crítico a alteridade do Outro que o sistema, a vítima deste sistema, de nosso capitalismo “transnacional” (globalizado), o sujeito universal da corporalidade e da discursividade negadas aparece como alteridade do Outro que o sistema, a vítima, temos aí a exterioridade como a crítica ao sistema vigente. No entanto, universalidade e alteridade em Dussel se harmonizam transversalmente, pois o que diz respeito à vítima em particular em Dussel, se refere, ao mesmo tempo, ao sujeito universal corpóreo e discursivo, não havendo, portanto, e como já dito anteriormente, espaço na ética dusseliana para qualquer relativismo cultural ou valorativo, é antes de mais nada o sujeito pulsional alterativo que é, não obstante, o sujeito ético universal, sendo a cultura e os valores, componentes importantes para toda ética, mas não os fundamentos de uma ética que se quer como universal, como pretende Dussel com sua Ética da Libertação. É a partir desta fundamentação universal dos princípios éticos que se dará, por conseguinte, a práxis de libertação em Dussel.

A práxis de libertação, por sua vez, segue um modelo ético universal que visa, não obstante, afirmar a exterioridade da vítima excluída do discurso, a alteridade do Outro negado do sistema, a corporalidade que sofre numa vulnerabilidade universal. A práxis de libertação, por fim, se fundamenta em princípios éticos que são universais, mas tem como o seu sujeito da ação a vítima que aparece como alteridade, exterioridade, Outro, mas que, ao se propor uma reflexão ética sobre isto, esta vítima nos aparece em sua universalidade, a práxis de libertação afirma a alteridade da vítima que, por sua vez, revela a emergência de um sujeito ético universal, o sujeito concreto do corpo, e não um sujeito metafísico ou puramente cognoscente, é o sujeito que antecede até mesmo a ontologia, seria em Dussel o sujeito da vida cotidiana, este é o fio da ação cotidiana de libertação, é uma práxis de libertação com fundamentos éticos universais para um sujeito ético universal, sujeito este pré-cognitivo e trans-ontológico, sujeito corpóreo, pulsional, vivente, concreto e vulnerável, é o sujeito ético que está o tempo inteiro dominado pela dialética vida-morte que aparece como o primeiro critério para uma ética crítica da libertação em Dussel.

Sabemos, contudo, que quando se fala de uma universalidade ética, esta não se situa fora da história, pois o sujeito ético é aqui, sobretudo, um sujeito histórico, sujeito finito e mutável, qualquer práxis de libertação será, portanto, histórica, ou seja, toda práxis de libertação corresponderá a uma época histórica, como a dos burgueses que queriam se livrar da nobreza e do clero decadentes, ou da classe operária que queria o fim da dominação sistêmica burguesa, para tanto, precisamos estabelecer qual será a práxis de libertação mais adequada à nossa época de início do século XXI. Dussel trata de um projeto libertador que está de acordo com o desenrolar da História, logo, toda ação da práxis de libertação se constituirá como intervenção histórica, todo movimento popular será um movimento histórico de emancipação, a libertação aqui tratada em Dussel, portanto, não é nada mais que uma libertação histórica, logo, transitória, embora não seja uma libertação inútil, pelo contrário, a libertação dusseliana é uma libertação constante, sempre que houverem vítimas haverá práxis de libertação, o histórico se refere aqui à finitude do efeito de toda ação libertadora, pois não haverá libertação absoluta, posto que, como já dito, um sistema empiricamente perfeito é impossível.

A práxis de libertação tem, então, um significado histórico e um significado universal, é efetuada, a um só tempo, por um sujeito histórico, que é, não obstante, o sujeito ético universal tematizado por Dussel em sua Ética da Libertação, a vida humana concreta do sujeito ético é o ponto de referência universal de sua práxis de libertação, historicidade e universalidade serão então as características do sujeito ético dusseliano, e a práxis de libertação será uma práxis histórica que segue princípios éticos universais.

Dussel delimita historicamente o surgimento e consolidação do sistema-mundo para, exatamente, dar a orientação histórica necessária a toda práxis de libertação, o sentido de transformação histórica pode não ser o sentido radical de uma revolução histórica, mas será, para o nosso terceiro milênio, o caminho mais eficiente traçado por Dussel para uma práxis de libertação, partiremos então para ações cotidianas e simples que servirão de estímulo a uma transformação radical in the long run. O sistema-mundo que tem como centro o Atlântico Norte (EUA e Europa ocidental) deverá ser transformado para a sobrevivência da periferia mundial (África, Ásia, América Latina), este será o sentido prático de uma práxis de libertação no século XXI, a nova orientação histórica é a transformação ou o fim do sistema-mundo vigente para uma ordem justa que inclua as vítimas materialmente e discursivamente, criando-se novos critérios e princípios que darão corpo, para Dussel, a sua utopia do possível. A transformação histórica obedece aqui aos limites de ordem lógica e empírica, toda ação deverá ter estratégias e táticas eficientes quanto aos fins práticos de libertação propostos, a práxis de libertação consegue seu êxito, portanto, se tiver a exata medida de suas possibilidades dentro da coação legal sistêmica, por isso a importância dada ao critério crítico-factível por Dussel na sua concepção de práxis de libertação. A práxis de libertação dusseliana está no horizonte que ele denomina como a utopia do possível.



3.2 – a utopia do possível

A utopia do possível, para Dussel, está submetida ao limite empírico de realização do projeto libertador. O contexto cultural, político, econômico, social, ecológico etc., serão determinantes para a configuração de um projeto de libertação que seja empiricamente eficiente e que liberte efetivamente a vítima da dominação sistêmica, a utopia do possível é a realização de um projeto de libertação que, além de possuir factibilidade lógico-empírica, também está submetida à factibilidade ética, o critério do crítico-factível é o que determina toda práxis de libertação que queira ser bem sucedida, que seja realmente importante para a realização de um projeto de libertação efetivo empiricamente, o fundamento ético somente não basta, a práxis de libertação é uma práxis ética, mas também limitada pelo horizonte lógico e empírico, portanto, a utopia do possível é o fim da práxis de libertação em Dussel, um fim ético limitado empiricamente, o elemento utópico em Dussel não se refere comumente ao metafísico, a utopia é real e histórica, não é a fantasia do mundo perfeito, mas também não é a barbárie da contradição sistêmica capitalista global, é o mundo em que a vítima não será mais a vítima, o mundo em que todos estão materialmente e discursivamente incluídos, tudo dentro de um mundo que é empírico, finito e histórico.

A vida concreta da vítima é a vida a ser transformada, a utopia do possível é a utopia que é empiricamente viável no mundo concreto e histórico, não é, portanto, um devaneio ideológico, mesmo que tal utopia esteja eticamente fundamentada no princípio-democracia, que não é, como dito anteriormente, somente uma democracia política (horizonte ideológico), mas uma democracia ético-social. Toda ação de uma práxis de libertação deve ter em conta as possibilidades de êxito e fracasso, a práxis de libertação é a ação do eticamente possível limitado pelo empiricamente possível, temos primeiramente uma limitação ética para a práxis de libertação, e por fim um horizonte empírico que delimita a práxis no mundo real, concreto e histórico.

O critério crítico-factível é o mais importante na realização da utopia do possível pela práxis de libertação, a ação transformadora deve então, aliar um programa teórico-científico, com um programa estratégico-tático de ação, a teoria é a “idéia” que orienta a razão libertadora, e a ação será a práxis de libertação em função desta “idéia”, qual seja, a da libertação das vítimas do sistema capitalista globalizado, esta é, por fim, a idéia que podemos dizer ser o fim anunciado por toda a Ética da Libertação de Dussel, o mundo concreto é o mundo da exclusão, a vida humana deve ser o horizonte ético do século XXI, a vida humana concreta que sofre no corpo as contradições do sistema performativo capitalista global. A transformação dusseliana seria então a tarefa de aproximar o mundo concreto e histórico da idéia regulativa de um mundo sem vítimas, discursivamente simétrico, eticamente perfeito, mas que é confrontado o tempo todo com o horizonte empírico, portanto, se preserva o conteúdo histórico de toda práxis de libertação, é uma ação constante de transformação cotidiana, a utopia do possível se adequa aqui ao horizonte cotidiano de toda Ética da Libertação dusseliana, sem cair em ilusões metafísicas, utopia que se dá no mundo concreto, finito e imperfeito, o mundo do sujeito sócio-histórico da transformação, mundo em que as vítimas lutam para não morrer, em que a vida humana quer se desenvolver na sua plenitude, mundo em que a vítima sofre os efeitos (não-intencionais) da contradição performática do sistema vigente e luta para se libertar, para ter a sua vida reconhecida.



3.3 – práxis de libertação como obrigação histórica

O princípio-libertação é o princípio deontológico da práxis de libertação. Temos, então, um dever ético de responsabilidade pelo outro, o que constitui, por conseguinte, o dever ético e histórico de libertar as vítimas de um sistema performativo. A obrigação ética do princípio-libertação, qual seja, a de libertar as vítimas do sistema vigente, ganha um sentido histórico de transformação sistêmica radical in the long run, o dever ético é agora uma obrigação histórica da práxis de libertação de edificar o novum em que as vítimas do sistema atual possam viver plenamente. Temos novamente aqui a historicidade como determinante para a consolidação do dever ético de libertação de toda vítima de um sistema performativo, sendo a práxis de libertação, tanto um conjunto de ações eticamente como historicamente justificadas. O sentido da História em Dussel, ao contrário de Hegel em que é o Ser Absoluto, é a transformação, esta é a palavra-conceito específica da Ética da Libertação de Dussel, o mundo concreto e histórico é o mundo a ser transformado, pois. A práxis de libertação é, por fim, o modo em que a transformação pode se dar enquanto realização cotidiana de um projeto de libertação.

continuação

CAPÍTULO II: A práxis de libertação na obra Ética da Libertação de Dussel


Chegamos, agora, ao tema propriamente dito desta monografia: a práxis de libertação. O capítulo I serviu como uma orientação no plano categorial e reflexivo dusseliano em sua obra Ética da libertação. Temos então, agora, neste capítulo II, a possibilidade de entender mais profundamente o tema da práxis de libertação, pois já nos situamos bem em toda a problemática levantada por Dussel em sua obra, desde a configuração do sistema-mundo até os critérios e princípios que ele utiliza para edificar sua arquitetônica ético-crítica.

Abordarei, neste capítulo II, o capítulo VI da obra dusseliana: o princípio-libertação. Mas, por uma questão de prioridade reflexiva desta monografia, o presente capítulo será tematizado na problemática que envolve a práxis de libertação, que é uma questão mais ampla que somente o princípio-libertação, que seria o princípio de tal práxis libertadora. Temos então, neste capítulo II, a questão da práxis de libertação no horizonte da factibilidade crítica ou da factibilidade real a posteriori, que se sustenta, não obstante, em todas as categorias, critérios e princípios abordados no capítulo I desta monografia.









2.1 – a questão da organização

Situamo-nos, neste capítulo VI da Ética da libertação (capítulo II da presente monografia), no nível prático de factibilidade estratégica, será então o uso da razão estratégica, subsumindo a ética material crítica e a moral formal crítica, junto com uma razão analítica (teórica) e uma razão instrumental (técnica), que dará o direcionamento preciso da práxis de libertação (ação crítica estratégico-prática), com a devida subsunção desta razão estratégica crítica na razão libertadora para que se realize o projeto libertador.

O primeiro passo da práxis de libertação se dá na organização das frentes de libertação, tal que é a articulação do intelectual com o sujeito histórico transformador, pois na ação transformadora é necessário um suporte teórico, ou seja, a práxis de libertação não se efetua sem uma teoria que lhe dê sustentação, é toda a questão da articulação entre teoria e práxis como a própria estratégia do projeto libertador.

Dussel cita Marx como um dos mais importantes intelectuais que realizaram esta conexão teoria-práxis, pois Marx, na sua teoria crítica da economia política, deu o suporte teórico que faltava para uma ação transformadora revolucionária. Marx forneceu uma ciência social crítica revolucionária que era, em um só tempo, o projeto de libertação comunista e a desconstrução teórica do economicismo standard da burguesia liberal (com arautos como Adam Smith e David Ricardo), principalmente com o seu conceito inovador de mais-valia, que serviu como a crítica fundamental da lógica do capital, era a explicação histórico-econômica das causas da negatividade material das vítimas (no caso, o proletariado).

Marx atuou tanto teoricamente como na práxis revolucionária, era cientista e estrategista, não ficou encastelado num academicismo livresco, pois entendeu que a transformação da realidade era muito mais importante que a sua mera interpretação, seu objetivo era a auto-emancipação do proletariado (classe social vítima do capitalismo industrial burguês). Foi a partir de Marx que se definiu melhor o papel de intervenção do intelectual na práxis de transformação histórica, sendo a revolução, na visão dusseliana, o paroxismo da práxis de libertação, pode ocorrer como tal, mas não é a revolução a única via possível de uma práxis libertadora, em Dussel tal práxis se dá mais de forma cotidiana, diariamente, a revolução seria uma situação-limite da práxis de libertação.

O mais importante em Marx, contudo, é que, em sua concepção, o proletariado é auto-responsável por sua libertação, ou seja, é a comunidade de vítimas do sistema que deve se auto-libertar ante o sistema, exigindo para tanto, clareza tática e precisão teórica para uma luta estratégico-libertadora que queira ser bem sucedida, ou seja, é o saber-fazer que exige planejamento prático com precisão científica, não há tática revolucionária sem uma ciência revolucionária.

Dussel cita também a intelectual e militante polonesa Rosa Luxemburg na sua exposição sobre a questão da organização das frentes de libertação na práxis de libertação, a qual, segundo Dussel, demonstrou a mesma coerência de Marx no tocante à articulação teoria-práxis, tão necessária para a organização dos movimentos sociais libertadores das vítimas.

Sua concepção revolucionária manteve a necessária subsunção da factibilidade crítica da práxis de libertação dos princípios ético-material crítico e moral-formal crítico, Rosa Luxemburg não desfez o vínculo necessário entre os princípios e a ação tática, pois os princípios impunham limites estritos à atividade prática, pois são os princípios que delimitam, no nível da organização estratégica, na concepção de Rosa Luxemburg, os fins a alcançar, os meios de luta, e os modos ou métodos de luta (os três níveis da razão estratégico-instrumental), e isto para toda ação revolucionária (ou transformadora) que quiser ter êxito, constituindo assim a razão estratégico-crítica, que é estritamente ética, unindo então teoria e práxis na libertação das vítimas, pois é somente com esta união de teoria e práxis, segundo Dussel, que a organização das frentes de libertação é possível e se torna factível.

Dussel também destaca a crítica de Rosa Luxemburg em relação ao vanguardismo, sobretudo o leninista, pois Lênin, na visão de Rosa Luxemburg, centralizou o poder de decisão do movimento libertador comunista na organização ortodoxa do partido comunista com um comitê central, o que se tornou o modelo ideal de organização no burocratismo stalinista, e que, para Dussel, foi o motivo do fracasso da revolução soviética. Tal organização centralizadora subestimou a capacidade de auto-organização das massas, pois o vanguardismo leninista consistia numa organização “de cima para baixo”, o que significava que a concepção teórico-formal do movimento libertador pertencia aos intelectuais vanguardistas (a vanguarda), que, deste modo, tinham nas massas oprimidas a matéria a ser organizada por eles, eram os intelectuais auto-conscientes que fixavam os fins e a própria organização das massas, massas que eram as “realizadoras” do que era determinado pela vanguarda. Quer dizer, tal modo de organização, para Rosa Luxemburg, era um erro, o que ficou provado historicamente com a queda da URSS. Era preciso que as massas se educassem para se auto-libertarem, sendo a participação do cientista, perito ou militante, apenas como suporte da ação popular, e não a ação popular como suporte da vanguarda intelectual, inversão que levou a uma extrema disciplina burocrático-partidária que atingiu seu ápice no stalinismo, o projeto de libertação comunista idealizado por Marx se tornando instrumento de cegueira ideológica e de subjugação das massas ao “projeto do partido”.



2.2 – emergência de novos sujeitos sócio-históricos

Dussel pergunta agora pelo sujeito da práxis de libertação, e afirma que todo sujeito ético da vida cotidiana já é um sujeito possível da práxis de libertação, seja ele vítima ou solidário com a vítima, sendo a comunidade de vítimas o meio operacional privilegiado desta ética da libertação.

Dussel, para definir o sujeito da práxis de libertação, faz primeiro uma crítica do sujeito moderno submetido ao “paradigma da consciência”, e expõe a sua superação na crítica heideggeriana, além de sua supressão na filosofia analítica (na sua vertente do positivismo lógico), e o seu reaparecimento de forma diferenciada em outras filosofias.

O sujeito moderno aparece pela primeira vez em Descartes. Era uma subjetividade cognoscente representada pelo ego cogito, sujeito anímico descorporalizado e reduzido a uma função estritamente cognitiva, era o começo do “paradigma da consciência”. Depois temos o “sujeito transcendental” kantiano, que reforça o dualismo moderno de separação da alma e do corpo. Kant reduz a sua reflexão a um formalismo que perde completamente o critério material do conteúdo ético dos atos humanos, formalismo auto-referente da subjetividade que será mais radical ainda no Eu absoluto de Fichte, subjetividade auto-consciente, autônoma, sem corporalidade viva como referência. Hegel, por sua vez, afirma o saber absoluto como a própria realidade negando o nível objetivo de uma subjetividade corporal, razão e realidade são idênticas em Hegel, identidade absoluta que perde o contato com a própria vida cotidiana.

Em Ser e tempo, Heidegger pressupõe o horizonte fundamental do Da-sein, que é o ser-aí já pressuposto na própria atividade cognoscente do sujeito, o ser-no-mundo. Tal concepção heideggeriana antecipa-se ontologicamente ao pressuposto cognitivo da relação sujeito-objeto moderna, é uma crítica ao sujeito moderno como ego cogito, pois antes da atividade cognoscente o sujeito já está sempre no mundo empírico, cotidiano e concreto, âmbito pré-cognitivo em que o sujeito deixa de ser ego cogito e se torna ser-no-mundo, é toda a filosofia da “compreensão” heideggeriana que supera a filosofia do ego cogito cartesiana, sujeito corporal concreto que se antecipa ontologicamente à subjetividade cognoscente ôntica.

A filosofia analítica, por sua vez, na sua vertente do positivismo lógico, situava-se metodicamente no nível abstrato de inteligibilidade, deixando de fora o sujeito, e considerando apenas as proposições em si mesmas, não importando o sujeito concreto da enunciação, o que limitava tal filosofia ao mero critério de inteligibilidade (se uma proposição tem sentido ou não), jamais podendo incluir nela um critério de verdade, pois perdeu o horizonte objetivo do sujeito concreto no reducionismo do linguistic turn. Contudo, tal filosofia permanece, ainda assim, dentro do “paradigma da consciência moderna” (pressupõe o sujeito consciente da enunciação, mesmo que deixado de fora na abstração metódica do critério de inteligibilidade de uma proposição) e, seguindo tal paradigma, é de orientação solipsista (não-intersubjetiva). Tal supressão do sujeito também ocorre na “teoria de sistemas” de Luhmann, em cujo sistema os indivíduos fazem parte do “entorno”, sem qualquer poder funcional dentro do sistema, o sistema luhmanniano é auto-referente, auto-regulado. Tal supressão do sujeito na filosofia analítica do positivismo lógico, na epistemologia popperiana e no sistema luhmanniano, se deve, sobretudo, à concepção de que a razão instrumental (meio-fim) e a analítica (sujeito-objeto teórico) são as únicas racionalidades que podem ter validade empírica e universal. Também neste caminho epistemológico sem sujeitos está a epistemologia teorética abstrata de Althusser, como reação ao sujeito proletário metafísico stalinista, reinterpretação marxista sem sujeito com influência do estruturalismo de Lévi-Strauss.

De outro lado, está a crítica foucaltiana contra a “soberania do sujeito”, uma visão epistemológico-histórica que terá no último Foucalt a afirmação do sujeito pulsional concreto na subjetivação dos lugares da enunciação pela ação disciplinar. E Dussel cita também o pensamento pós-moderno, que será uma crítica à “filosofia do sujeito” cartesiana, num ressurgimento da “pluralidade” fragmentária da Diferença na identidade.

Na pragmática, por sua vez, temos a recuperação do sujeito nos “atos-de-fala” da comunidade de comunicação, é quando a filosofia da linguagem supera a redução abstrata da filosofia analítica sem sujeito (na sua vertente do positivismo lógico, do primeiro Wittgenstein). O sujeito prático intersubjetivo supera o sujeito solipsista do “paradigma da consciência”, passamos ao nível da intersubjetividade dos “jogos de linguagem” do segundo Wittgenstein, sendo, para Dussel, a passagem fundamental determinante para a sua ética da libertação.

Por fim, antes de situar o sujeito da ética da libertação, Dussel cita ainda Lévinas e Freud. O primeiro indo aquém da ontologia heideggeriana na corporalidade do prazer e além dela na Alteridade pela responsabilidade pelo outro, e o segundo ampliando a subjetividade com a conceituação do inconsciente, negando um sujeito totalmente auto-consciente.

Dussel passa agora então ao sujeito humano concreto vivo como modo de realidade, sujeito que subsume todas as etapas demonstradas anteriormente pelos outros pensadores citados por Dussel, e que será o sujeito de sua ética da libertação, indo de encontro às reduções sistêmicas do cálculo meio-fim que tornam tal sujeito invisível, reintroduzindo o referencial ético-material de vida-morte, tendo em conta os sujeitos vivos que operam nos sistemas performativos como “partes funcionais”, revelando aí o sujeito negado que se materializa na vítima desses sistemas performativos, o Outro que o sistema, o oprimido ou excluído, vítima não-intencional que mostra a irracionalidade da lógica performativa sistêmica auto-referente e fetichizada, subjetividade vitimizada que aparece como interpelação pela vida que lhe é negada, interpelação que se não for respondida provoca a morte da vítima. Dussel fala aqui de um sujeito histórico, social, cultural, corpóreo. E afirma que o sujeito da práxis de libertação é a comunidade das vítimas e aqueles co-responsavelmente articulados a ela, abrindo o horizonte intersubjetivo do que afirma ser o “sujeito sócio-histórico”, negando qualquer subjetividade metafísica, e afirmando uma subjetividade intersubjetiva que é uma comunidade de vida e de comunicação que têm características e objetivos comuns, sendo a emergência desses novos sujeitos a passagem de uma subjetividade passiva para outra de maior auto-consciência, a consciência ético-crítica da vítima como vítima que efetua uma crítica auto-consciente do sistema que causa a vitimização, tornando-se o sujeito sócio-histórico, desta maneira, uma subjetividade libertadora.











2.3 – a questão reforma-transformação

Dussel agora faz uma diferenciação entre a práxis funcional, de reforma, e crítico-libertadora. Afirma que a tarefa da ética é mostrar e normatizar a compatibilidade do sistema vigente com a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana de cada sujeito ético com direito à participação discursiva simétrica. Quando não ocorre tal compatibilidade, a intervenção ético-crítica se faz necessária. É neste contexto que Dussel compreende a relação entre reforma, revolução e transformação.

O reformista quer reformar o sistema vigente a partir de dentro, a ação reformista é aquela que cumpre com os critérios e princípios do sistema vigente, é uma crítica feita dentro dos parâmetros do sistema. Mas, contudo, o reformista não é o intelectual tradicional ou funcional do sistema vigente, ele adota na sua aparente crítica os critérios do sistema que pretende criticar, podemos ver isto no surgimento da social-democracia alemã, capitalista em seu horizonte fundamental, e socialista em suas formulações lingüísticas, o que Rosa Luxemburg critica como deturpação do pensamento de Marx numa interpretação funcional ao capital.

Entretanto, para a Ética da Libertação, discordando de Rosa Luxemburg, a ação ética contrária à práxis funcional ou reformista não é necessariamente a revolução, mas a transformação, o que está de acordo com a orientação cotidiana da vida fornecida por esta ética crítica de Dussel. “Transformar”, no processo estratégico e tático, é mudar uma norma, ato, instituição, microestrutura ou sistema completo de eticidade, sem ser necessariamente uma revolução, este “transformar” dusseliano diz mais respeito às mudanças cotidianas do que às mudanças radicais como as que ocorrem numa revolução, a revolução seria, como já dito anteriormente, o paroxismo da práxis de libertação, mas não sua característica usual.

O que está de acordo com a transformação dusseliana e com a sua práxis de libertação é o fato do sujeito sócio-histórico organizado situar suas estratégias, táticas e métodos dentro do quadro definido pelos princípios ético-críticos (níveis ético-material crítico, moral-formal crítico, e de factibilidade ético-crítica), tal é a libertação possível para Dussel, o que não faz de tal transformação ético-crítica não-revolucionária uma ação reformista, em absoluto, pois o reformista critica de acordo com os critérios vigentes do sistema, ao passo que o agente transformador age criativamente numa crítica desconstrutiva de tais critérios, sugerindo novos critérios e princípios. A ação ético-crítica ou libertadora tem sua referência na comunidade crítica das vítimas, combatendo o fetichismo do sistema performativo da razão instrumental materializado no sistema vigente (leia-se: capitalismo globalizado ou transnacional) do progresso quantitativo e transformando-o num progresso qualitativo que inclui todos os critérios e princípios ético-críticos expostos por Dussel em sua Ética da libertação, e que constituirá o processo histórico de libertação.

2.4 – coação legítima, violência e práxis de libertação

Dussel tenta distinguir a coação legítima da violência, ou melhor, quando a coação perde legitimidade e se torna violência, fazendo isto segundo as categorias analíticas de sua ética da libertação, de acordo com o direito de todo sistema institucional de contar com os meios jurídicos e instrumentais suficientes de coação pela ordem de tal sistema, obedecendo, claro, a convenção discursiva dos afetados em simetria (legitimação), que permita, por sua vez, reproduzir e desenvolver a vida de cada sujeito ético no âmbito sistêmico. A instituição vigente deve apoiar-se, enfim, numa coação legítima, o que significa em Dussel que tenha factibilidade ética, objetividade pública da instituição para além da mera aceitação subjetiva, a coação é legítima quando cumpre com as exigências dos princípios material, formal-discursivo e de factibilidade ética.

Dussel, de acordo com a sua posição sobre a coação legítima, discorda de Max Weber, para quem a dominação é constitutiva da legitimidade do sistema institucional, sendo para Dussel apenas o cumprimento de princípios éticos. Dussel não denomina como violência o uso da força pelo sistema institucional por meio de leis, tribunais, armas, organismos policiais e lugares de reclusão, o problema é quando as vítimas de um sistema formal vigente não podem viver ou foram excluídas com violência e discursivamente de tal sistema, quando a coação legal perde legitimidade, podendo se tornar simplesmente violência para a consciência ético-comunitária das vítimas, quando se reproduz somente o sistema em detrimento da vida humana, é quando as vítimas partem para a coação defensivo-ilegal que é, contudo, legítima eticamente para as vítimas, apesar de ilegal perante o sistema.

Dussel fala da arma que evoluiu para o século XX como algo capaz de ameaçar a vida sobre o planeta Terra, a fetichização do que era antes um meio para a vida humana, conseqüência da autonomização do sistema auto-referente militarista com a tecnificação das armas, poderio militar que desde a queda da URSS tem a hegemonia dos Estados Unidos, sendo este o quadro no qual se poderá, no século XXI, refletir sobre a libertação das vítimas no planeta Terra.

A doutrina da “não-violência” de Mahatma Gandhi, o método tático da guerra sem armas de fundamentação ético-religiosa é, para Dussel, uma tática política eficiente, mas só funcionaria num estado de direito, não nas ditaduras e nas situações revolucionárias. A tática dusseliana seria a de tornar evidente a contradição do sistema numa coação legal que aparece como violência, é o começo da deslegitimação da coação legal, de sua ruína moral, os movimentos sociais denunciam a dominação do sistema vigente sobre as vítimas e reivindicam direitos emergentes ainda não sancionados positivamente sob a forma de leis, legitimidade crítica da ação das vítimas perante a legalidade coativa do sistema que agora é violência contra as vítimas.

Para Max Weber, a legitimidade do sistema se funda na dominação, não podendo, para Dussel, ter validade ético-normativa, Habermas, por sua vez, apoiou a legitimidade na normatividade da ética discursiva, mas se trata em Dussel, de legitimar o sistema segundo os princípios de uma ética da libertação, já expostos nesta monografia. A crise de legitimidade, em Dussel, é articulada com uma crise na reprodução da vida (miséria das vítimas), sendo, para a Ética da Libertação, necessário saber o momento em que a legitimidade do sistema vigente se torna ilegítima.

Para Dussel a nova legitimidade deve ser libertadora e não dominadora, para além dos três tipos de dominação weberiana (carismática, burocrática ou tradicional), a comunidade de vida e comunicação crítica das vítimas levanta-se contra o sistema estabelecido com outros critérios de verdade, validade e factibilidade, críticos e intersubjetivos, outros princípios normativos, a legitimidade nova da práxis de libertação (legitimidade dos novos sujeitos sociais emergentes) diante da legalidade do sistema, que já não é legítimo para as vítimas. Temos então, atualmente, movimentos sociais que reivindicam a inclusão das vítimas no processo econômico da revolução liberal mundial, espaços dentro da globalização econômica que desenvolvam a vida, o que se torna urgente diante da concentração de renda mundial, em que os pobres morrem e não têm a sua dignidade reconhecida, e que tampouco participam discursivamente do que é decidido no cenário político, econômico e social mundial, onde também vemos o poderio militar dos Estados Unidos com o messianismo “democrático-guerreiro” de George W. Bush incapaz de combater o terrorismo e com prejuízos financeiros decorrentes da invasão do Iraque. Temos agora, diante da repressão legal ilegítima do sistema, pois se tornou violência, a legitimação das reivindicações das vítimas nos movimentos sociais, coação legítima que visa se tornar legal, práxis de libertação que busca o fim de um sistema dominador para o começo de um sistema libertador, em Dussel, a utopia possível de sua Ética da Libertação.

A ordem vigente, por sua vez, quando exerce o monopólio da coação de forma legítima e legal, o público não se submete a uma decisão subjetiva meramente individual, dominação que é o momento da “hegemonia”, como diz Gramsci, quando o sistema estabelecido goza de boa aceitação por parte dos dominados, e que, em Dussel, para se legitimar, deve cumprir os princípios éticos material, formal e de factibilidade já citados anteriormente, a legalidade agora é legítima.

No estado moderno europeu, temos, junto com o momento da “hegemonia” de Gramsci, o “estado governativo” baseado na soberania onipresente do rei absoluto, fundamento da legalidade, com a concepção política de centralização do poder, pretendendo uma certa homogeneização “nacional” de todos os membros, com o desaparecimento da esfera autônoma do privado e do mercado, nascendo assim o “totalitarismo” moderno. Ao contrário, no “estado de direito”, existem normas válidas intersubjetivamente a partir do consenso livremente aceito no princípio racional democrático, articulando mutuamente legalidade e legitimidade.

Para a Ética da Libertação de Dussel, a ordem legal (positiva), para ser legítima, deve cumprir com a inclusão material e discursiva das vítimas, pois a partir das vítimas podemos descobrir novos significados para a coação de direito, sua legalidade e legitimidade, sendo a crítica da contradição performativa do sistema os movimentos sociais das vítimas que se organizam perante a ordem vigente, colocando em crise a legitimidade do sistema, mesmo que as ações das vítimas contra o sistema sejam ainda ilegais, pois suas ações ganham legitimidade para si mesmas, e a violência do sistema instaura a crise em sua ordem legal vigente, ilegítima para as vítimas. A práxis de libertação é legítima em sua ação crítica diante do sistema, as ações ilegais de reivindicação dos direitos das vítimas no sistema performativo se estabelecem como uma práxis de libertação legítima para as vítimas.

Dussel tematiza agora a guerra como o extremo da ação tática em sua factibilidade ética (momento da razão instrumental), assim como o paroxismo da transformação estratégica era a revolução (momento da razão estratégica), sendo tanto as guerras como as revoluções determinantes para a fisionomia do século XX, como disse Hannah Arendt. Por fim, temos o colapso da revolução soviética de 1917, se realizando enfim a revolução liberal mundial. Se a coação-limite da transformação estratégica é a revolução, agora Dussel trata a guerra como o extremo da ação tática, sendo uma estrutura estratégica em que os exércitos se enfrentam por causas diversas, podendo ser uma guerra de dominação territorial ou uma guerra de defesa da soberania, sendo apenas a última legítima para o âmbito da factibilidade ético-crítica, de ações táticas que neguem a negação das vítimas.

Depois da revolução russa de 1905, Rosa Luxemburg levantou a questão da greve geral e nacional de massas, uma decisão tática da práxis de libertação que logo se tornará legal, inaugurando uma nova época para a evolução do movimento operário, a greve é uma ação tática social, uma ação sócio-sindical, dentro de uma estratégia política, um fenômeno histórico para Luxemburg, que diz: “necessidade histórica determinada pelas condições sociais”. Para Dussel, por sua vez, a greve deve estar no âmbito da ação eticamente possível, quer dizer, as ações da greve geral não são feitas apenas com a organização, mas deve estar a serviço de um verdadeiro movimento popular, que, em Dussel, serve como “tarefa educativa”, é a partir das ações das vítimas reivindicando direitos diante do sistema que surge a conscientização das massas (as vítimas do sistema performativo capitalista, no caso), a comunidade crítica das vítimas toma consciência ético-crítica da legitimidade de sua práxis de libertação.

A práxis de libertação como tática e estratégia, realização de uma factibilidade ético-crítica, está sempre entre o anarquismo antiinstitucionalista e o reformismo integracionista, devendo por isso ter bem claros os critérios e princípios que a regem, para realizar a utopia do possível, o projeto de libertação.



2.5 – o critério ético de factibilidade e o “princípio-libertação”

A práxis de libertação, em Dussel, tem sempre como referência as vítimas do sistema vigente, ação possível de transformação segundo os critérios e princípios enunciados por Dussel na sua Ética da Libertação. O critério de transformação ético-crítico, por sua vez, é um critério de factibilidade em referência às possibilidades de libertação da vítima ante o sistema dominante que aparece como contradição pela existência desta vítima, e agora, de acordo com a factibilidade ético-crítica, a transformação necessária pode ser visualizada como possível ou impossível.

O critério crítico-factível de toda transformação se dá na confrontação entre um movimento social organizado das vítimas e um sistema formal dominante, estamos agora no âmbito de sua factibilidade empírica, as possibilidades empíricas, tecnológicas, econômicas, políticas etc., considerando a negatividade da vítima no sistema vigente, critério que consiste na avaliação da capacidade estratégico-instrumental da comunidade das vítimas de transformação diante do poder do sistema vigente, critério que vai além da mera factibilidade ética de poder ou não efetuar o decidido, agora temos a confrontação direta com o sistema vigente e não apenas a justiça ética de um movimento social libertador, mas, contudo, para Dussel, a factibilidade empírica do que foi acordado entre as vítimas cumpre com os princípios ético-material crítico e moral-formal crítico para ser uma avaliação de factibilidade ético-crítica.

Diante do poder histórico-concreto do sistema vigente, as vítimas (sujeitos sócio-históricos emergentes) têm pouco poder, mas a práxis de libertação pode explorar as fragilidades do sistema vigente em seu momento de crise, é quando as vítimas se organizam e se tornam críticas do sistema. Dussel, por sua vez, deixa claro a inevitável contradição de todo sistema por ser histórico, isto é, surgem e desaparecem de acordo com as transformações da sociedade, aqui se trata, sobretudo, da imperfeição de todo sistema histórico e de sua finitude. Cabe então, à ciência social crítica, nas palavras de Dussel, explicar a impossibilidade essencial do sistema dominante de se perpetuar in the long run, as causas da negação das vítimas, e estudar as possibilidades de superação da crise do sistema e de sua transformação, tudo isso dentro de um programa científico articulado com a intenção libertadora das vítimas, sendo que a comunidade das vítimas deve calcular instrumental e estrategicamente as possibilidades efetivas de transformação, tendo ajuda da ciência social crítica (suporte teórico), mas na ação (ou seja, como práxis de libertação), onde realmente se dá o processo de libertação.

É importante lembrar que a práxis de libertação deve encontrar as fissuras do sistema vigente, por onde poderá penetrar criticamente, deixando evidente sua contradição absurda. Por outro lado, as vítimas devem avaliar realisticamente (ou empiricamente) as possibilidades de ação, pois dificilmente podem fazer frente ao sistema dominador, podendo um movimento social aparecer e desaparecer visto a fraqueza inevitável das vítimas, mas, para Dussel, a auto-avaliação das vítimas de sua capacidade de ação, deve estar sob uma discursividade comunitária crítica das vítimas num sistema democrático simétrico, de onde temos um programa concreto de ação, sendo a comunidade das vítimas o sujeito sócio-histórico da ação.

O princípio-libertação, por sua vez, é o princípio deontológico, ou seja, enuncia o dever-ser que obriga eticamente a realização da transformação do sistema vigente libertando a vítima de seu domínio, é uma obrigação, por conseguinte, da razão libertadora (razão ético-crítica prático-material, discursiva consensual e estratégico-instrumental), que é cumprida pela comunidade das vítimas, por sua capacidade de transformação do sistema vigente, capacidade da razão estratégica e instrumental (factibilidade crítica da práxis), que considera as condições técnicas, econômicas, políticas, culturais etc., para a transformação. O princípio-libertação trata do dever de todo ser humano de intervir criativamente no progresso qualitativo da história, obrigação da desconstrução negativa de normas, ações, microestruturas, instituições ou sistemas completos de eticidade que produzem a negatividade da vítima e, por conseguinte, da construção positiva de novas normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos de eticidade que incluam as vítimas. O princípio-libertação é, antes de tudo, a obrigação ética da vítima de se auto-libertar (obrigação da práxis de libertação). Faz-se agora, em Dussel, a passagem de fundamentação dialético-material de um juízo de fato para um juízo normativo, passagem do critério de factibilidade crítica (possibilidade real da libertação) ao princípio-libertação (dever de operar a práxis de libertação), princípio que subsume todos os outros princípios de Dussel, princípio que é uma obrigação universal, sendo mais comum à vítima de um sistema dominador.

A libertação da vítima que o princípio-libertação torna uma obrigação se dá através da desconstrução crítica da contradição sistêmica (negatividade material e discursiva das vítimas) e a construção de novas normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos de eticidade, onde as vítimas possam viver e ter participação discursiva simétrica. A práxis de libertação, por fim, procura transformar o sistema a partir das vítimas para que estas vivam, e não porque sejam as instituições intrinsecamente perversas (como para o anarquismo) ou sistematicamente justificadas (como para o conservadorismo ou o reformismo).

A Ética da Libertação reconhece concreta e positivamente o sujeito ético vivente e comunitário, sobretudo quando este irrompe como as vítimas de um sistema auto-referente que as nega (material e formalmente), reconhecimento histórico e social da diversidade intersubjetiva de comunidades sócio-históricas, especialmente das vítimas, diversidade que inclui a universalidade da razão material e discursiva, diversidade de rostos que são articulados “transversalmente” em sua natureza alterativa, o que, em Dussel, se trata do momento analético do método dialético, que parte da possibilidade distinta da Alteridade, para encontrar a universalidade na profundidade da diversidade, pois, em Dussel, em cada vítima concreta está a vítima universal. A razão ético-material, discursivo-formal e estratégico-instrumental são articuladas pela razão “transversal” a todas as alteridades distintas, particulares, se chegando ao “êxito” pelo exercício da razão estratégico-instrumental ético-crítica em que o “bem” é realizado, operação factível real da práxis de libertação como atualidade transformativa final, realização do “devido” (projeto explícito de libertação), do novum, o bem ético por excelência.

Contudo, a norma boa não é ainda o bem, a ação boa realiza a norma boa, sendo tal ação a atualidade do bem, mas não o bem propriamente. As instituições, por sua vez, também não são o bem, nem o sistema de eticidade, o bem é, por fim, um momento do próprio sujeito humano, com validade intersubjetiva e monológica. O “bem” supremo seria a plena reprodução e desenvolvimento da vida humana das vítimas, se trata de uma idéia regulativa em Dussel que se realiza parcialmente em cada ato humano julgado como bom. Mas o bem realizável pelo processo de libertação não é um bem absoluto, mas um bem histórico, a sociedade perfeita é empiricamente impossível. O bem fruto da práxis de libertação, por sua vez, é o êxito de uma empresa difícil à qual se opõem as forças superiores das estruturas do sistema dominador como o bem vigente e tradicional, o novo bem das vítimas que é obra, para Dussel, das quatro virtudes cardeais levadas ao paroxismo: fortaleza, temperança, prudência e justiça.

A Ética da Libertação de Dussel é uma ética da responsabilidade a priori pelo outro, mas também da responsabilidade a posteriori dos efeitos não intencionais das estruturas dos sistemas que se manifestam às vítimas, ética da responsabilidade que vai além de uma mera boa vontade, é uma responsabilidade que se configura como obrigação, não sendo apenas sistêmica ou ontológica, mas também pré-ontológica e transontológica, porque o é a partir do Outro, a partir das vítimas.

Dussel fornece, em sua obra Ética da Libertação, os critérios e princípios para fazer ações (a priori) e poder julgá-las como “boas” ou “más” de acordo com as vítimas, se tais ações favorecem ou não a libertação das vítimas, na tarefa do progresso qualitativo humano, na reprodução da vida e da discursividade participativa dessas vítimas. A responsabilidade pelo outro se transforma na “própria racionalidade da razão”, torna-se necessário um processo de libertação das vítimas.

Por fim, a Ética da Libertação dusseliana tenta justificar filosoficamente a práxis de libertação das vítimas em nossa época da História, a da globalização, em que o fetichismo do capital exclui a maioria de seus benefícios, revelando a contradição performática do capitalismo mundial, se erguendo então um princípio universal completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever da produção e reprodução da vida de cada sujeito humano. Dussel constrói a sua ética sobre juízos de fato e não de valor, e o fato a que ele se refere é a exclusão da maioria da humanidade do processo da modernidade e do capitalismo, é a partir deste fato que surge a obrigação ética das vítimas de se auto-libertarem.

continuação

CAPÍTULO I: A arquitetônica de Enrique Dussel em sua obra “Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão”




1.1 - o sistema-mundo

Enrique Dussel começa sua obra traçando na história mundial o processo que levou à formação do sistema-mundo que conhecemos e no qual vivemos hoje, ele explica como se deu historicamente a divisão de nosso mundo entre “centro” e “periferia”, origem fundante de sua reflexão ética e do caráter social desta reflexão.

O processo histórico revelado por Dussel se inicia num mundo que ele define como um complexo chamado de sistema inter-regional, indo de encontro às teses helenocêntricas que consideram a Grécia clássica como o “berço” da civilização ocidental.

O estágio I do sistema inter-regional tem origem nas civilizações egípcias e mesopotâmicas, quer dizer, muito antes da Grécia clássica. Os egípcios têm origem na África bantu, com a emigração dos povos bantu para a margem do rio Nilo, fugindo da seca e do deserto que se formava na região norte africana, sendo a comunidade dos sábios egípcios, segundo Dussel, a origem da sabedoria grega, evidenciando aí seu movimento de ruptura com a concepção helenocêntrica da história ocidental. Indo até o rio Tigre, no Oriente Médio (Ásia), temos uma cultura crescendo com os mesopotâmicos e os sumérios, foi lá que surgiu um sistema de eticidade sob a forma de leis favoráveis aos mais fracos ou pobres, o Código de Hammurabi . Esse processo histórico que dá origem ao sistema civilizatório nuclear da África norte e do Oriente Médio tem início por volta de 4.000 a.C, quando a Grécia ainda era um mundo bárbaro. O Egito e a Mesopotâmia são as duas altas culturas deste período, entre outras culturas ditas menores na zona intermediária entre as duas, como os fenícios, púnicos, hebreus e moabitas.

Neste estágio I do sistema inter-regional encontram-se ainda civilizações que não fazem parte deste sistema, as culturas orientais da Índia e da China, que surgem por volta de 2.000 a.C, outras duas colunas da revolução neolítica. E, além dessas duas colunas do oriente, temos as culturas do continente americano, existentes muito antes do “descobrimento” da América por Cristóvão Colombo, sendo as principais e as mais desenvolvidas, a dos astecas, maias e incas. A cultura meso-americana (maia-asteca) é o quinto núcleo da alta cultura, e a cultura inca-quíchua o sexto núcleo da alta cultura. Todas estas seis altas culturas (Egito, Mesopotâmia, Índia, China, Maia-Asteca e Inca-Quíchua), segundo a interpretação dusseliana, possuíam seus códigos morais e sistemas de eticidade que, mesmo que não houvesse um corpo teórico que lhes dessem uma evidência maior, representavam toda uma compreensão prática da existência sob a forma de leis ou costumes.

A partir da emergência do mundo indo-europeu surge outro tipo de eticidade, diferente da ética corporal (dê pão ao faminto etc.) das culturas egípcias e mesopotâmicas. Esta nova eticidade tende então a valorizar a alma, veículo de ascensão ao Uno, ao Verdadeiro, e negar o corpo como algo que impede a libertação da alma ao inseri-la na multiplicidade do mundo fenomênico, ou seja, há uma nova cosmovisão, característica dos primeiros grandes impérios (os hindus na Índia, os persas no Irã, os gregos e romanos no Mediterrâneo e, mais distantes, os taoístas e confucionistas na China e os budistas desde o Nepal). É o segundo estágio do sistema inter-regional asiático-afro-mediterrâneo, sendo a cidade de Alexandria o grande centro de confluência dessas diversas tradições, sobretudo no século III d.C, em que lá se encontram as culturas grega e romana. Expressam este novo estágio a filosofia grega, Plotino por exemplo, o Tao-Te King de Lao-Tse, e a sabedoria dos Upanixades na Índia, todos com referência ao Uno e ao desprezo da corporalidade. Esse dualismo antropológico (corpo/alma) irá culminar em Descartes e Kant, e no Ser Absoluto da História de Hegel, para citar apenas alguns exemplos na modernidade.

O terceiro estágio do sistema inter-regional asiático-afro-mediterrâneo é hegemonizado pelo mundo muçulmano, região central e estratégica geograficamente, por ter contatos com todos os pólos do sistema (China, Índia, mundo bizantino e russo, e a cultura regional periférica da Europa medieval latino-germânica). Isto se dá por volta do século VII d.C, quando o ethos muçulmano se desenvolve, e durará até 1492.

Neste estágio o mundo romano oriental e o helenístico se transformarão no mundo bizantino, e o mundo persa e o norte da África se muçulmanizarão. Os muçulmanos terão domínio sobre a região do Turan-Tarim, totalidade da rota comercial do sistema, área central de comércio que só será superada a partir do século XV pelo Atlântico hispânico. (Obs: A Europa medieval se vê isolada do centro do sistema desde o século VII d.C, pois o Mediterrâneo oriental está tomado territorialmente pelos muçulmanos).

O ethos semita (judeu, cristão e muçulmano) é a cultura hegemônica deste estágio da história mundial. Uma ética crítica emerge das vítimas do Império Romano então decadente, com o critério ético da “corporalidade carnal” humana, ao invés da “alma” dos indo-europeus, critério de corporalidade já formulado no primeiro estágio pelos egípcios e babilônios, critério expresso por uma razão mítica e não teórica, podendo ser observado no Alcorão. Uma ética de pobres, de oprimidos, de marginais, de bárbaros (Cosmovisão semítica, não européia).

O mundo muçulmano era muito mais avançado técnico-cientificamente que a obscura Europa medieval, a gênese da modernidade se deu a partir da incorporação por parte dos europeus destes avanços, e não a partir de fatores internos medievais ou renascentistas europeus, como muitos entendem. A filosofia também teve um particular desenvolvimento na cultura semita, existiu uma autêntica “ilustração” filosófica árabe, dando início ao processo de secularização da filosofia a partir do século IX, sendo completada pelos europeus na modernidade.

O sistema-mundo começa historicamente, na concepção dusseliana, em 1492, a partir deste ano se inaugura a modernidade. Dussel segue em sua polêmica contra o paradigma eurocêntrico da história (contra uma suposta universalidade européia), com o paradigma mundial do sistema inter-regional que culmina no sistema-mundo. Dussel quer com isso negar a divisão historiográfica européia em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna, sendo a história algo muito mais amplo e complexo que tais categorias pseudocientíficas e ideológicas.

Seguindo então o paradigma mundial em vez do eurocêntrico, temos uma divisão do sistema-mundo em centro e periferia, sendo a Europa o centro, e a periferia a recém-incorporada Ameríndia, as costas da África e da Ásia e a Europa oriental, e posteriormente o Império Otomano, a Rússia, Índia, Sudeste Asiático e a África continental. A modernidade seria então, para este paradigma mundial, um fenômeno próprio do sistema como “centro e periferia”, mudando o conceito eurocêntrico de modernidade.

Mas, como a Europa se tornou o centro do sistema-mundo? Segundo Dussel, com o descobrimento, conquista, colonização e subsunção da Ameríndia, dando à Europa uma vantagem comparativa determinante sobre o mundo otomano-muçulmano, a Índia ou a China. Com a gestão central do sistema-mundo, a Europa se torna a consciência reflexiva da modernidade e da história mundial. Não é o Renascimento desde o século XIV, nem a revolução científica do século XVII, mas a incorporação (sobretudo material) da Ameríndia o fato histórico inaugural da modernidade, foi esta a maior vantagem da Europa em relação às outras culturas, abrindo-se a partir daí possibilidades de poderio econômico (mercantilismo) e político (colonização) jamais vistos na história mundial, configurando a Europa como o centro do sistema-mundo.

Este é o único sistema-mundo da história mundial, o sistema moderno europeu e capitalista. Sendo a Ética da libertação de Dussel uma visão do sistema-mundo que não se submete ao seu centro (Atlântico Norte- Europa ocidental e Estados Unidos), mas que, por se situar desde a periferia do sistema, busca dialogar com o centro a partir de outra situação originária, a situação sócio-histórica, econômica e política da periferia, demonstrando criticamente as contradições da gestão feita pelo centro do sistema-mundo, considerando novas possibilidades teóricas e sobretudo práticas que equilibrem a disparidade social e econômica entre o centro (os ricos) e a periferia (os pobres), resultado do processo histórico que se iniciou com o próprio sistema-mundo em 1492, que evoluiu do capitalismo mercantil, depois para o industrial, e hoje para o transnacional (globalizado).

O que vemos hoje é a hegemonia econômica e político-militar dos Estados Unidos, as decisões do G-8 que todos têm que acatar, o FMI e o Banco Mundial ditando regras econômicas aos países periféricos (constrangidos por uma dívida impagável que se sustenta nos juros, dívida que não considera o fato histórico da exploração material e humana da periferia pelo centro em seu passado histórico, escravidão, extração de minerais preciosos etc.), apoiados na ideologia neoliberal como o último recurso teórico-econômico-político mundial. O centro do sistema-mundo (Europa e Estados Unidos) ignoram a existência da periferia e consideram a globalização como a homogeneidade necessária ao sucesso da política econômica neoliberal em sua fase mundial com a queda do Muro de Berlim e da URSS, homogeneidade que esconde a contradição performativa do sistema capitalista financeiro e transnacional que produz as suas vítimas, sobretudo na periferia do sistema-mundo (América Latina, África bantu, mundo muçulmano, Índia, Sudeste Asiático, China e Europa oriental “pós-cortina de ferro”), resultado de uma racionalização simplificadora (homogênea) que deve tornar “manejável” tal sistema. Em suma, a globalização oculta a sua crise, que é a exclusão ou opressão das vítimas resultante da dominação das mesmas, daí a dialética globalização-exclusão que subentende-se no sub-título da obra dusseliana Ética da libertação e que será o pano de fundo da reflexão desta obra.

A modernidade chegou a uma situação-limite, ecologicamente, com a destruição da natureza em nome do lucro (exploração de matéria-prima), e socialmente, com a morte das vítimas (de fome, de frio etc.). Dussel então considera a necessidade urgente de uma superação da modernidade do sistema-mundo de 500 anos, ou seja, uma reorientação ecológica, social, política, econômica etc., que salvem a humanidade de um caminho que se revela cada vez mais como um caminho autodestrutivo, que, nas palavras de Dussel, “não produzem, reproduzem e desenvolvem a vida”, mas que, absurdamente, “produzem e reproduzem o sistema”, gerando somente a morte. Daí ser a sua obra, em suas palavras, “transmoderna”, pois é uma reflexão sobre alternativas que superem o paradigma moderno de dominação e exploração, alternativas factíveis como se verá mais adiante. Dussel propõe uma ética da libertação das vítimas do sistema-mundo, libertação que pode ser cotidianamente conquistada, pois Dussel faz questão de afirmar que a sua ética é uma ética cotidiana, uma ética da vida, que se constrói num pensamento filosófico anti-hegemônico, libertando-se, por conseguinte, da falácia reducionista do etnocentrismo europeu pseudo-universalista, e afirmando a alteridade negada das vítimas, do Outro que o sistema.



1.2 – os critérios e princípios presentes na obra Ética da libertação

Dussel monta em sua Ética da libertação uma arquitetônica categorial que se serve de diversos critérios e princípios éticos, apoiando-se, por conseguinte, em diversos tipos de racionalidade. São os tipos de racionalidade ou categorias racionais, os seguintes: a razão prático-material, a razão ético-originária, a razão discursiva, a razão estratégico-hermenêutica, a razão teórica ou instrumental e a razão ética de factibilidade, de um lado, como níveis da ética fundamental ou acrítica (Ética-I de Dussel); e a razão crítica prático-material, a razão crítica ético-pré-originária, a razão discursiva crítica, a razão hermenêutica crítica (a razão instrumental, estratégica ou analítica), e a razão libertadora, de outro lado, como níveis da racionalidade ética crítico-libertadora (Ética-II ou Ética crítica de Dussel). A análise destes tipos de racionalidade será feita a partir da descrição dos critérios e princípios éticos utilizados por Dussel em sua obra.



1.2.1 – o critério e o princípio material universal da ética

O critério material universal de verdade prática serve como marco de referência para determinar as mediações adequadas de produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito em comunidade, tendo-se a vida humana como o modo de realidade do sujeito ético, partindo deste critério todo o conteúdo exigido pela vida humana, tal como comer para viver, ou melhor, para não morrer. Portanto, quando se fala de razão prático-material, temos nela a razão que fundamenta a passagem de um juízo material de fato (descritivo) para um enunciado material ético-normativo, ou seja, é a razão prático-material que faz a fundamentação dialético-material que transforma o comer, por exemplo, de um juízo de fato para um dever ser, quer dizer, do simples ato de comer para ser um ato de comer que cumpre a norma ético-material do “devo comer senão eu posso morrer”, cumprindo assim o princípio deôntico ético-material universal. Portanto, a verdade prática é a vida humana concreta (nos seus limites e conteúdos universais, compondo por dentro a particularidade cultural), e a partir da razão prático-material, temos a normatividade desta verdade prática, na fundamentação dialético-material operada por esta razão.

Ao lado da razão prático-material temos a razão ético-originária. Esta razão se apóia na verdade prática da vida humana para afirmar a igualdade entre os humanos viventes, esta razão implica no reconhecimento do Outro (humano) como igual, igualdade que se fundamenta na universalidade da verdade prática numa comunidade de vida. É a razão ético-originária que fornece o elemento humanizador da verdade prática e da razão prático-material, quer dizer, ela dá ao enunciado normativo ético-material o conteúdo humano, a sua referência à vida humana.

A razão prático-material e o critério de verdade prática trazem à baila na reflexão ético-filosófica a questão da corporalidade, o sentido antropológico forte perdido pelo dualismo moderno que despreza o corpo e afirma o Ego cogito cartesiano ou a autoconsciência absoluta hegeliana, ou os pressupostos transcendentais kantianos, ou ainda a comunidade de comunicação ideal de Habermas. A questão da corporalidade ou da materialidade objetiva e imediata aparece fortemente em Marx e Freud, questão pulsional que também aparece na vontade de poder dionisíaca nietzscheana (monológica, é bom lembrar) e no désir métaphysique lévinasiano da Alteridade.



1.2.2– o critério de validade e o princípio moral formal universal

A moral formal, para Dussel, serve para fundamentar e aplicar concretamente os enunciados normativos da ética material, é com a formalidade discursiva da moralidade que tais enunciados ganham validade comunitária e universal, diferenciando-se a verdade prática da validade formal, ao contrário de uma teoria puramente consensual de verdade como em Habermas (identificando validade formal com verdade). Em Dussel, a validade se articula necessariamente com a verdade, mas não se identifica com a verdade.

O conceito de validade refere-se ao acordo intersubjetivo do que se tem monológica e comunitariamente como verdadeiro, verdadeiro que já tem uma implicação intersubjetiva antes de sua validação, tendo então a validade sempre como referência um pressuposto veritativo. Na validade temos um acordo que se dá como um consenso discursivo de algo tido como verdadeiro. Trata-se do critério intersubjetivo de validade, não há validade sem verdade, e nem verdade sem validade, neste critério toda argumentação é, simultaneamente, um instrumento de verificação e de validação, é o critério procedimental ou formal por excelência que se articula com o critério de verdade prática para produzir facticamente (com o concurso da razão estratégica e instrumental) o bem (eticidade vigente), que veremos no princípio de operabilidade ou de factibilidade ética mais adiante no 1.2.3.

Passando-se agora ao princípio moral universal de validade, distingue-se o enunciado normativo material do enunciado normativo moral formal, o primeiro com pretensão de verdade prática, e o segundo com pretensão de validade formal. Distingue-se, então, o conteúdo veritativo da forma como se alcança a validade.

Mas, antes de se fazer uso da razão discursiva, temos o uso da razão ético-originária no reconhecimento do sujeito ético como igual, que, enquanto indivíduo afetado por um discurso, deve, por direito e por obrigação moral, participar da argumentação, posto que é igual em dignidade a qualquer outro participante do discurso. Temos então, com a razão ético-originária, num primeiro momento, o reconhecimento do outro como igual na comunidade de vida, exigência material da ética, e agora, como participante (em iguais condições que os outros, numa situação de simetria discursiva) da comunidade de comunicação, com o dever (e direito) moral de argumentar, exigência formal da moral. É a razão ético-originária, portanto, que funda a exigência moral do dever de argumentar, no reconhecimento da igual dignidade de cada sujeito ético, transformando o critério procedimental da argumentação no princípio moral de validade (reconhecimento simétrico dos argumentantes). Agora o princípio moral formal universal de validade é a mediação formal ou procedimental do princípio ético material, trata-se de uma norma universalmente e intersubjetivamente válida para aplicar o conteúdo (com verdade prática) do enunciado normativo ético-material. O princípio moral de validade consiste então em exigências deônticas de um procedimento de aplicação dos conteúdos materiais éticos.









1.2.3 – o critério e o princípio ético de factibilidade

O âmbito de factibilidade constitui o último momento da ética fundamental (ou fundamento da ética) de Dussel, encerrando a primeira parte de sua Ética da libertação, que é a preparação para a sua crítica ética efetiva da segunda parte (Ética-II).

A factibilidade é, pois, o último momento da realização do “objeto” prático. O critério de factibilidade envolve as condições ou possibilidades lógico-empíricas de realização de um objeto prático, tais são os condicionantes tecnológicos e econômicos sobretudo.

O perigo, para Dussel, no entanto, para um critério de factibilidade que não possua um princípio ético, é a autonomização ou totalização do âmbito formal dos meios-fins da razão instrumental como critério último de verdade e validade, inversão que Marx denomina de fetichismo, que resulta na coisificação do homem submisso à lógica do capital, por exemplo.

Dussel, então, para evitar o fetichismo da razão instrumental, considera como necessário o uso de tal razão dentro das exigências de verdade prática e de validade intersubjetiva, quer dizer, subsumida pela ética material e pela moral formal. O critério de factibilidade da razão instrumental é então subsumido pelo princípio de operabilidade ou princípio ético de factibilidade. A partir de agora, com este princípio, não bastam só os condicionantes lógicos e empíricos (técnicos, econômicos, políticos, culturais etc.) para a realização de um objeto prático, mas se deve com este princípio, considerar a possibilidade ética de sua realização, considerando-se o que é permitido eticamente e, sobretudo, o que é exigido eticamente, o que deve ser feito ou que não pode deixar de ser feito segundo as exigências ético-materiais (verdade prática) e moral-fomal (validade intersubjetiva).

A razão instrumental e estratégica são subsumidas, por fim, pelas razões prático-material, ético-originária e discursiva. As últimas operam como a racionalidade ético-orientadora em relação às primeiras, e as primeiras operam como razão que mediatiza a factibilidade empírica das últimas. Sem razão instrumental-estratégica, a razão ético-discursiva cai na ilusão utópica, e sem a razão ético-discursiva, a razão instrumental-estratégica cai na perversidade dos sistemas formais auto-referentes fetichizados.

O princípio de operabilidade é ético e universal. Só a norma, o ato, a instituição etc., que cumpram com este princípio, são agora não só possíveis, mas bons, justos, ética e moralmente adequados. O sujeito ético que efetua a dita ação é bom. No entanto, o facticamente possível, a partir deste princípio, deve ser sustentável a longo prazo, ou seja, que cumpra a longo prazo com as exigências ético-materiais e moral-formal, isto é, que permita, a longo prazo, a reprodução e o desenvolvimento da vida do sujeito humano enquanto participante livre atuando em simetria, o que exige uma responsabilidade ética das conseqüências a posteriori do “operável” decidido a priori com verdade prática, validade intersubjetiva e factibilidade técnico-ética que deve agora realizar-se na práxis, sendo a práxis, enquanto ato humano, a única que pode ser “boa”, quer dizer, é o ato humano realizado na práxis que é bom e não a norma que é boa, um sistema de eticidade se diz bom sempre em relação com o ato humano ou com o sujeito ético (o único que pode ser bom), sendo tal ato bom, se cumprir com as exigências ético-materiais, moral-formal e de factibilidade empírico-ética, sendo um ato absolutamente bom empiricamente impossível, sendo o ato bom somente por proximidade.



1.2.4 – o critério e o princípio crítico-material ou ético

Agora se inicia a ética crítica de Dussel, que parte da negatividade das vítimas do sistema vigente, tendo como momento material da crítica a negação da corporalidade expressa no sofrimento das vítimas. Trata-se da tomada de consciência da negatividade material das vítimas, é a consciência ético-crítica, que é a superação da consciência ingênua, a consciência de que o sistema vigente não é bom e que deve ser criticado e transformado por produzir vítimas e, portanto, não desenvolver a vida (exigência material da verdade prática).

A verdade (o bem) do sistema é negado por contradizer-se performativamente no fato empírico de causar suas vítimas, mesmo que não-intencionalmente. Dussel inicia aí a sua crítica da globalização, do sistema-mundo vigente, que se totaliza e reproduz-se a si mesmo e não desenvolve a vida, ao invés, produz uma maioria de oprimidos e excluídos, quer dizer, se contradiz no sofrimento e na morte de suas vítimas, uma contradição para toda instituição que deve evitar a dor e postergar a morte, é, portanto, deste fato empírico, que se faz a crítica ética do sistema em Dussel, partindo da existência das vítimas o critério crítico-material ou ético, ou seja, do juízo empírico de fato de haver vítimas do sistema vigente. E, junto com a crítica do sistema, se estuda alternativas criativas possíveis para o desenvolvimento da vida, ao considerar as vítimas do sistema que devem ser tomadas a cargo por um dever de responsabilidade desde o reconhecimento da vítima em sua alteridade, ou seja, pelo reconhecimento do Outro como outro (distinto), exercício da razão ético pré-originária (momento anterior à crítica), ou seja, a tomada de consciência da negação originária da vítima do sistema (momento analético), sendo todos responsáveis, a priori e deonticamente (revelação do outro como interpelação), pelas vítimas, e a própria comunidade de vítimas auto-responsável por si mesma na luta de sua libertação na crítica e transformação do sistema vigente que as oprime e exclui, tornando-se uma comunidade crítica de vítimas.

O momento deôntico que funda o princípio ético-crítico parte do critério de fato antropológico da negatividade da vítima que sofre e morre, parte-se do juízo de fato para o enunciado normativo que me põe como responsável pela vítima no reconhecimento desta como outro (razão ético pré-originária), fundando na responsabilidade pela vítima um dever ético, sou seu refém (responsável pelo outro no sistema), ofereço a minha face substitutivamente (o refém lévinasiano), critico o sistema e assumo as conseqüências desta crítica em nome da vítima, mesmo que custe a minha própria vida (no embate perseguidor do sistema), sendo a crítica, portanto, a negação ética de uma negação empírica, sendo o sujeito último da crítica a própria comunidade de vítimas.

A responsabilidade entra em jogo como crítica e transformação das causas que originam a vítima como vítima, sendo o momento negativo do princípio ético-crítico a crítica do sistema que produz a negatividade das vítimas, e o momento positivo a transformação do sistema vigente para que a vítima deixe de ser vítima, de maneira monológica e comunitária, numa verdadeira pulsão criadora do novo histórico, social, político, ecológico etc. É um princípio ético do progresso qualitativo, diferente do progresso puramente tecnológico e quantitativo da Modernidade.



1.2.5 – o critério e o princípio crítico-discursivo de validade

Dussel trata agora da consensualidade crítica das vítimas, a partir de um novo critério de validade discursiva intersubjetiva, a validade crítica da razão libertadora, validade anti-hegemônica que organiza a emergência de sujeitos históricos (movimentos sociais) que lutam por reconhecimento (novos direitos das vítimas e realização de novas estruturas institucionais), é toda a questão do exercício da razão crítico-discursiva pela consciência ético-crítica.

A Ética da Libertação dusseliana supera, no entanto, a aporia inevitável da Ética do Discurso de que toda argumentação pressupõe entre os participantes uma simetria (comunidade ideal de comunicação) que é impossível empiricamente, supera ao entender que as vítimas excluídas assimetricamente da comunidade de comunicação hegemônica se reúnem em uma comunidade crítico-simétrica.

Numa comunidade crítica de vítimas, que se torna então uma comunidade de comunicação crítica anti-hegemônica, tem-se o exercício da razão discursiva crítica já pressupondo o concurso da razão ético pré-originária, pelo fato da exterioridade das vítimas, que são o Outro que o sistema vigente, vítimas que se reconhecem mutuamente numa pulsão alterativa. A razão discursiva crítica começa o seu processo diacrônico ao descobrir a não-validade dos consensos do sistema vigente, por terem excluído assimetricamente as vítimas do discurso. O novo consenso crítico das vítimas será, portanto, pelo fato de ser negado pelo consenso vigente sistêmico, inevitavelmente anti-hegemônico, ilegal e ilegítimo (o que demandará uma luta libertadora que legitime e legalize o novo consenso ante o sistema).

O critério crítico-discursivo intersubjetivo de validade pressupõe um acordo crítico de validade anti-hegemônica, trata-se da validade da crítica ética, validade intersubjetiva das vítimas, que é, por outro lado, a invalidação do consenso intersubjetivo hegemônico, consensualidade crítica que é a conscientização das vítimas, consciência ético-crítica da não-verdade do sistema e da não-validade de seus acordos, e, sobretudo, aprendizado de argumentação anti-hegemônica, de onde se origina um novo paradigma prático com verdade e validade críticas, que inaugura o projeto de libertação, explicando-se as causas da negatividade das vítimas, consciência ético-crítica em sentido pleno.

O princípio ético crítico-discursivo comunitário de validade parte da crítica da exclusão das vítimas da comunidade de comunicação hegemônica, enquanto afetadas diretamente pelos consensos de tal comunidade, daí a necessidade de criação de uma comunidade de comunicação própria, a comunidade de comunicação crítica das vítimas, de onde tais vítimas irrompem como dissenso que se opõe à consensualidade de validade hegemônica, dissenso ético criador que é origem de um novo discurso com uma nova racionalidade, lugar ético de enunciação da exterioridade vitimizada que constitui novo consenso verdadeiro e válido.

Por fim, o exercício comunitário da razão crítico-discursiva terá duas tarefas prioritárias: a crítica científica da eticidade vigente e a projeção criativa pela razão crítica utópica de projetos de libertação. A primeira tarefa exigirá uma análise racional-crítica e científica das causas da vitimização, exercício da ciência humana e social crítica, com a responsabilidade ética pelo outro por parte do cientista em sua investigação, daí a necessária articulação da ciência humana e social crítica com a reflexão prática da própria comunidade de comunicação das vítimas, permitindo o surgimento de uma consciência crítico-cotidiana ilustrada. A segunda tarefa envolve a utopia possível como programa de ação, tal que é realizada pela razão instrumental-estratégica crítica subsumida dentro do horizonte ético-material e formal-moral crítico, sendo fonte de alternativas concretas factíveis, possíveis empiricamente, aplicando-se o princípio crítico ético de factibilidade transformadora. A utopia se faz projeto possível e, posteriormente, programa empírico. O problema da aplicação do projeto de libertação possível será tratado no próximo capítulo, que é o problema da factibilidade crítica da práxis de libertação.