PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 9 de julho de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE VI

“Conrad logo entra para a marinha mercante inglesa”

HENRY JAMES, “DAISY MILLER”

Daisy Miller saiu em revista em 1878 e, como livro, em 1879. E esta narrativa é uma das poucas ou a única de Henry James que conquistou logo um sucesso popular, uma vez que a obra deste escritor tem uma característica de ser evasiva, em que muito do que se diz guarda também uma parcela do não-dito, e que em Daisy Miller isso se quebra um pouco, pois este texto tem uma clareza em que se apresenta a personagem título como uma moça cheia de vida, representando os ideais da jovem América, e com uma estória que se passa na Europa, tal que é o velho continente como o lugar em que se confronta esta América nas personagens que nos aparecem como turistas na Suíça e em Roma.
Tais personagens americanos estão imersos numa Europa que pende entre sugestões de cultura e uma certa nobreza e ao mesmo tempo com uma sujeira imoral de um mundo promíscuo, e aqui tudo nos aparece com tais personagens que também estão numa distância das razões práticas que orientam o comportamento, e o resultado moral é nada mais que tais personagens se fundam num mundo de conveniências, num cuidado puritano fruto da insegurança da situação em que se encontram.
E como nos diz Calvino, já sobre a trama: “O rigorismo – americano ou europeu – é representado pela tia de Winterbourne que não por acaso decidiu morar na Genebra calvinista e por mrs. Walker, que é um pouco a contrapartida da tia, imersa na mais indolente atmosfera romana. Os emancipados são a família Miller, expeditamente à deriva numa peregrinação europeia imposta a eles como dever cultural inerente ao seu status: uma América provinciana, talvez de novos milionários de origem plebeia,” e temos, por fim, Daisy, como vai pontuar Calvino, “a única que consegue realizar-se como personalidade moral autônoma.”  
Por fim, o mundo do mal que é apontado em James aparece em Daisy como uma disputa de sua alma, primeiro pelo mordomo Eugenio, depois pelo romano Giovanelli, que aparece como um caçador de dotes, e temos enfim o fantasma da malária que estava arrebatando meio mundo, e em Roma era o miasma que cerca a estória de Henry James. E Calvino, ao fim, faz a sua análise sintética da trama de James, quando nos diz: “O pior veneno das intrigas com que os americanos da Europa castigam a família Miller é uma alusão contínua e obscura ao mordomo que viaja com eles e que – na ausência de mr. Miller – exerce uma autoridade não bem definida sobre mãe e filha.”
E segue Calvino : “Os leitores de A outra volta do parafuso sabem quanto o mundo dos empregados domésticos pode encarnar para James a presença informe do “mal”.” Temos que, ao fim da estória, a malária é a estranha entidade mediterrânea que vai ceifar a vida de Daisy Miller, num sacrifício de uma personagem que não havia se submetido nem ao puritanismo de seus compatriotas, e nem tampouco ao paganismo nativo. Há então o holocausto no Coliseu, e os miasmas são tão etéreos quanto o espírito narrativo que se esfumaça na escrita de Henry James que, como dito, guarda muito do não-dito como algo que está ainda assim quase à superfície, e isto numa narrativa em que temos mais clareza do que a narrativa habitual do autor.

OS CAPITÃES DE CONRAD

Joseph Conrad morreu em 3 de agosto de 1924 com 66 anos, vinte dos quais passou navegando e outros trinta escrevendo, e teve sucesso literário ainda em vida, mas a crítica europeia lhe deu um grau maior justamente após a sua morte, quando, por exemplo, saiu em dezembro de 1924 um número da Nouvelle Revue Française dedicado inteiramente a ele, com textos de Gide e Valéry.
E temos então a imagem de um homem que reunia um aspecto duplo e ao mesmo tempo de duas profissões que vão se revelar complementares, indissociáveis no quesito que lhe faz ter sentido, pois Joseph Conrad é um contraste no qual se tinha a experiência de vida prática e movimentada da marinha mercante, de um lado, e o talento inconteste de romancista popular, aqui juntando a herança de Flaubert, com a sofisticação da forma, e também ecos da dinastia decadentista da literatura mundial.
O caráter do escritor Joseph Conrad será o de um autor de aventuras, e que nos diz numa literatura renovada a trama que envolve lugares extraordinários, e que coloca Calvino, por exemplo, em relação à arrumação de sua biblioteca particular, num dilema que diz muito da situação da crítica literária diante do autor, e temos Calvino se digladiando na sua estante, quando nos diz: “Na minha estante ideal, Conrad tem lugar garantido junto com o aéreo Stevenson, que é quase o seu oposto, como vida e estilo. Contudo, mais de uma vez estive tentado a deslocá-lo para outra prateleira – com acesso mais difícil para mim -, a dos romancistas analíticos, psicológicos, dos James, dos Proust, dos recuperadores incansáveis de cada migalha de sensações vividas; ou até na dos estetas mais ou menos malditos, à maneira de Poe, tomados de amores transpostos; quando também as suas obscuras inquietudes de um universo absurdo não o remetam para a divisória – ainda não bem-ordenada e selecionada – dos “escritores da crise”.”
E Calvino, enfim, se decide: “Porém, conservei-o sempre lá, ao alcance da mão, com Stendhal que com ele se parece tão pouco, com Nievo que não tem nada a ver com ele. Porque, mesmo sem acreditar em muitas coisas dele, sempre acreditei que fosse um grande capitão e que inserisse em seus contos aquela coisa que é tão difícil de escrever: o sentido de uma integração com o mundo conquistada na vida prática, o senso do homem que se realiza nas coisas que faz, na moral implícita no trabalho, no ideal de saber estar à altura da situação, tanto na coberta dos veleiros quanto numa página.”
Temos no trabalho detalhado o espírito da narrativa de Conrad, pois O espelho do mar, por exemplo, é uma coletânea de prosas sobre temas de marinhagem, no qual se reúne a técnica dos desembarques e das partidas, as âncoras, os velames, o peso da carga, e mais coisas da navegação, num apuro técnico em que a narrativa ganha em correção e objetividade e evita o esteticismo ou a afetação retórica, que só aparece ao fim quando Conrad exalta a tão famosa superioridade naval inglesa, mas que ainda assim mantém o fundo no qual se faz a narrativa conradiana, que é o reflexo fiel de um mundo objetivo, prático, mundo que Conrad conheceu e trabalhou, que é o do mar e dos navios.  
Por sua vez, Conrad era inglês por escolha, e na história literária é um hóspede ilustre da literatura inglesa, pois nasceu polonês, mas Conrad logo entra para a marinha mercante inglesa, para depois despontar na literatura inglesa como escritor aventureiro, e na sociedade inglesa ele não se inseriu por crença religiosa e nem assimilou suas tradições familiares, mas sim fez sua entrada pelo mundo do trabalho feito no mar, como um capitão-gentleman.
Com Lord Jim, que de capitão passa a comerciante, temos a galeria das personagens conradianas em que figuram traficantes europeus imersos nos trópicos que vão povoar os romances de Conrad, mundo real no qual o autor travou conhecimento prático quando, por exemplo, fez a sua experiência naval no arquipélago malaio, e na narrativa que ele ergue temos esta tensão na qual temos, de um lado, a etiqueta aristocrática do oficial de marinha, e de outro, a degradação dos aventureiros falidos.
Conrad, por sua vez, tem revelada esta tensão, pois o escritor viveu num período de transição do capitalismo e do colonialismo britânico: a passagem da navegação a vela para a era do vapor. Portanto, seu mundo real e literário era o da civilização, como nos diz Calvino, “dos veleiros dos pequenos armadores, um mundo de clareza racional, de disciplina no trabalho, de coragem e dever contrapostos ao mesquinho espírito de lucro”. Então, para Conrad, o novo mundo dos navios a vapor das grandes companhias levava suas personagens aos dilemas entre se trair ou lutar contra o avanço do capital, sonhando quixotescamente ou sendo empurrado para um lugar despersonalizado de burocratas coloniais, tais como as sobras humanas da Europa, retratadas pela narrativa conradiana, que passaram a se reunir nas colônias, figuras decadentes às quais Conrad contrapõe os aventureiros românticos como Tom Lingard.
Temos na narrativa conradiana a confiança na força humana, e sem qualquer veia de rigor filosófico, pois o ambiente de cosmovisão era este em que se confrontavam a queda de um mundo de otimismo racional burguês diante de uma espécie de limbo no qual tínhamos terreno fértil para a eclosão do irracionalismo e do misticismo. E como nos diz Calvino, por fim: “Conrad via o universo como algo obscuro e inimigo, mas a ele contrapunha as forças do homem, sua ordem moral e coragem. Perante uma avalanche negra e caótica que lhe vinha em cima, uma concepção do mundo repleta de mistérios e desesperos, o humanismo ateu de Conrad resiste e finca os pés.”

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/34846/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicos-3



WILLIAM BLAKE, AMÉRICA E MILTON

“A poesia de William Blake tem este caráter duplo histórico e mítico”

A poesia de William Blake, sobretudo a que se inicia na década de 1790, nos apresenta sua ideia de revolução, e que consiste primeiramente numa descrição histórica e social que vai retratar uma insurreição política, tal como vemos no poema Revolução Francesa. E a partir do poema Uma canção de liberdade tal tendência se altera por se orientar agora por uma alegoria mítica, e então, quando Blake compõe poemas como América e Europa, o poeta já está numa configuração ambivalente de construção e elaboração de seu conteúdo poético que transita, portanto, entre uma noção positiva e negativa desta tendência revolucionária.  
De modo diverso de seu despótico personagem Urizen, William Blake se via diante de pensadores radicais, estes que viviam a reação à revolução francesa, e que mesmo Blake sendo bem conhecido (ou vulgarmente conhecido) como aquele poeta-pintor místico, retratado por alguns biógrafos como o poeta das visões de anjos, demônios e profetas do velho testamento, Blake era um poeta plenamente consciente dos confrontos pelos quais passava a sociedade europeia e inglesa, e das vicissitudes decorrentes da revolução industrial em curso.  
Um equívoco comum, portanto, decorrente desta visão de Willliam Blake como uma espécie de místico como foi um de seus mestres, Swedenborg, o objetivo do poeta-pintor não era uma renúncia do mundo, como sugeriram alguns de seus críticos mais desavisados, abordando temas clichês da poesia de Blake como a sua loucura, seu pendor visionário, ou seu misticismo, mas sim Blake tinha um verdadeiro programa de reforma do mundo, num plano tanto social como poético. E tal plano só foi modificado para um sentido mais mental do que social após a frustração do poeta com os caminhos da revolução pelas mãos de Danton e de Robespierre, fase nova em que aparecem poemas épicos como Milton e Jerusalém.  
Portanto, neste abandono da referência histórica direta, Blake ganha força poética, e se dedica a criar um grande sistema mítico de complexidade simbólica e artisticamente potente, e entre 1794 e 1795, por exemplo, Blake comporia dois ciclos de livros na forma de dramas ou pequenos épicos, estes que seriam veículos nos quais o poeta-pintor elabora suas figuras divinas que recriam antigos mitos cosmogônicos, assim como estados dicotômicos da mentalidade humana.  
William Blake passa, então, a erigir um sistema, com suas personagens míticas, num processo de revelação de estruturas de ascensão e queda dos meios de dominação política ou religiosa, num esforço de mapear a revolução numa complexa rede de mitologia com caráter simbólico e alegórico, colocando no mesmo esquema divindades obscuras e personagens históricos, estes últimos que, por sua vez, traçavam linhas constantes de ação, e que eram uma repetição histórica como espécies de arquétipos sociais específicos.  
A poesia de William Blake tem este caráter duplo histórico e mítico, e que exige de seu intérprete uma visão primeiro alegórica, e depois contextualizada historicamente, e no extremo deste exercício de exegese teríamos então o sentido simbólico da poesia de Blake, sobretudo quando se trata de suas obras posteriores como Vala ou Jerusalém, onde podemos ver temas como o binômio queda/ascensão ou a relação entre o homem e o cosmos que vai nortear o último Blake destes trabalhos finais.

POEMAS:

AMÉRICA (fragmentos) : O poema se abre no contexto das figuras históricas, e a imagem do fogo irrompe, sob a forma de flamas, no que temos: “Washington, Franklin, Paine & Warren, Allen,/Gates & Lee,/Envoltos pelas ardentes flamas vislumbraram as/terríveis hordas que dos céus surgiam./Escutaram o brado retroante do Anjo de Albion,/E a peste sob as suas ordens emergiu das nuvens,/Precipitando-se sobre a América como uma/tenebrosa tormenta.”. Albion e a América, e a tormenta que tudo envolve, eis: “Sombrio estava o céu & inóspita a terra;” (...) “A Fúria! A Ira! A Loucura, como um furacão/assolaram a América./E as rubras flamas de Orc rugiram feéricas entre/as praias, e a multidão tumultuada./Os cidadãos de Nova York fecharam seus livros/& trancaram seus cofres;/Os marinheiros de Boston ancoraram seus/barcos e os descarregaram./O escrivão da Pensilvânia arrojou sua pena ao/chão/E o pedreiro da Virgínia, apavorado, atirou ao/longe seu martelo.”. O povo das cidades se retrai diante do feérico Orc, com suas rubras flamas, e a América está sucumbida, e a imagem poética agora é clara: “A América já sem esperanças foi bruscamente/tragada pelo Atlântico,” (...) “Contra os Anjos de Albion: Logo a Pestilência/alastrou suas rubras estrias,/Nos membros dos Guardiões de Albion. A/praga atingiu o Espírito de Bristol/E a lepra o Espírito de Londres deixando caídas/suas legiões.” (...) “O Guardião de Albion contorcia-se nos céus”. Albion também sofre, e o poema não pede clemência, apenas descreve a sua visão infernal, no que temos, como um documento alegórico de um mundo real: “Jaziam sobre a neve o Guardião de Londres e o/venerável Mitrado de York,” (...) “A peste alastrava-se velozmente pelas ígneas/correntezas conduzidas pelas flamas de Orc/E pelas hordas de ferozes americanos que/corriam impetuosamente pela noite,/Até os Guardiões da Irlanda, Escócia & Gales.”. O Bardo diante do inferno total de Orc, se esconde na gruta, quando se vê: “Nos recônditos meandros de suas grutas, tomado/pela peste, escondia-se o Bardo de Albion.” (...) “Pelas cidades, vales e montes, ardiam as rubras/flamas:/Derretiam-se os céus de norte a sul; e Urizen,/sentado/Entre trovões, pairando sobre os céus, erguia/sua cabeça coberta/Pelas chagas da lepra,/De sua sagrada ermida. E suas lágrimas/precipitavam-se torrenciais,/Sobre os vórtices do sublime abismo,” (...) “Contra as hordas derrotadas, plenas de/lágrimas & trêmulas de frio.”. E Urizen, reinando soberano, sobre as hordas derrotadas.

MILTON : O poema é um esquema complexo de lógica mitológica, ao livre sabor poético de William Blake, que neste poema cria um sistema do mundo, com todos os seus vórtices, é uma espécie engenhosa de cosmologia embebida na mitologia que, por sua vez, vira poesia nas visões puras do poeta-pintor, no que temos: “Esta é a Natureza do infinito:/Todas as coisas possuem seus próprios Vórtices,/e quando um navegante da Eternidade/Passa este Vórtice, percebe que ele turbilhonante/gira para trás/E torna-se uma esfera que se engloba a si mesma/como o sol, a lua, ou como um firmamento de/constelada magnitude”. Temos quase uma gênese das esferas, mito de criação, cosmogonia, pois, e o poema com grandes proporções, uma enormidade megalomaníaca nas ideias que contém, no que segue: “A terra é uma planura infindável, e não como/aparece/Ao ignóbil transeunte confinado às sombras da/lua./O céu é um Vórtice já há muito transpassado;/A terra, um Vórtice ainda intocado pelos/navegantes da Eternidade.”. E o Homem, com suas dimensões, também nos aparece neste poema que sonha abarcar a totalidade do mundo: “E os quatro estados da tranquila Humanidade/em seu Repouso/Foram-lhe então mostrados. Primeiro o de/Beulah, o gostoso Sono” (...) “O Segundo Estado é Alla & o terceiro Al-Ulro./Mas o quarto, o fantástico, é denominado Or-/Ulro./O Primeiro localiza-se na Cabeça, o Segundo/no Coração/O Terceiro nos vasos seminais e o Quarto,/No Estômago e Intestinos, terrível, letal e/indescritível./E aquele, cujos Portais se abrem nessas regiões/do Corpo,/Pode nestes Portais vislumbrar estas/deslumbrantes Imaginações.”. O corpo, num mapeamento místico, meio parecido com um mapa de chacras, tem aqui a imagem do Homem, que em seu próprio corpo tem chaves cósmicas e portais para este infinito que abre o poema como chave mestra, no que o poema segue: “Outros Filhos de Los engendram Momentos &/Minutos & Horas/E Dias & Meses & Anos & Eras,” (...) “E cada Momento possui um Leito de ouro/destinado ao suave repouso,” (...) “Cada minuto detém uma tenda de sedosos Véus/azuis:/E em cada Hora estende-se um Portal de ouro” (...) “Cada Dia & Noite possui brônzeas Muralhas &/Umbrais de diamante” (...) “Em cada Mês ergue-se um alto Terraço de pisos/de prata.” (...) “Em cada Ano, imponentes Muralhas de gigantescas/Torres/Cada Era rodeia um profundo Poço com pontes/de prata & ouro;/E cada período de Sete Eras é circundado por/Iridescentes Flamas./Sete Eras equivalem a Duzentos anos./Tudo tem seu Guardião, cada Momento, Minuto,/Hora, Dia, Mês & Ano;/São criações das Mágicas mãos dos quatro/elementos;/Os Guardiões são Anjos da Providência em/perpétuo dever./Toda fração de Tempo menor que um pulsar de/artéria/Equivale a Seis Mil Anos./Pois neste Ciclo é criada a obra do Poeta, e nele/os Grandes/Eventos do Tempo se iniciam e são concebidos/No fulcro de um instante, Pulsação arterial./O céu é uma Tenda Eterna erguida pelos Filhos/de Los;”. Por fim, William Blake retrata as divindades do tempo, e os ciclos e eras entram no jogo, mais simbólico que isso, impossível, pois o reino das alegorias adora a imagem das eras, no que o tempo se torna largo e bem estruturado, suas divisões são dadas pelas divindades, o reino da terra aqui é dos deuses, e o infinito é o portal da percepção aberto, este desiderato da poesia de William Blake.

POEMAS:

AMÉRICA

(1793)

Fragmentos

O Poema “América”, que retrata a Guerra de Independência americana, cuja descrição apocalíptica poderá hoje parecer-nos a antevisão profética de uma explosão nuclear, pertence ao ciclo de poemas revolucionários escritos por Blake. Deste ciclo fazem parte outros poemas como “Europa” e “A Revolução Francesa”.
O Espírito visionário e rebelde de Blake o identificará sempre às forças libertárias, esta energia poderosa & solene que, como um turbilhão de fogo, assolará eternamente a opressão. Esta força transmutadora é no poema “América” representada por Orc, o Guardião do Eterno Fluxo, cujos fogos alastrar-se-ão através da América e Inglaterra.

AMÉRICA

(fragmentos)

Washington, Franklin, Paine & Warren, Allen,
Gates & Lee,
Envoltos pelas ardentes flamas vislumbraram as
terríveis hordas que dos céus surgiam.
Escutaram o brado retroante do Anjo de Albion,
E a peste sob as suas ordens emergiu das nuvens,
Precipitando-se sobre a América como uma
tenebrosa tormenta.
Como a peste que ceifa os milharais recém-
surgidos.
Sombrio estava o céu & inóspita a terra;
Assim como os gafanhotos que devastam os
campos,
Assim como as vagas do maremoto que varrem
as costas.
A Fúria! A Ira! A Loucura, como um furacão
assolaram a América.
E as rubras flamas de Orc rugiram feéricas entre
as praias, e a multidão tumultuada.
Os cidadãos de Nova York fecharam seus livros
& trancaram seus cofres;
Os marinheiros de Boston ancoraram seus
barcos e os descarregaram.
O escrivão da Pensilvânia arrojou sua pena ao
chão
E o pedreiro da Virgínia, apavorado, atirou ao
longe seu martelo.
*
A América já sem esperanças foi bruscamente
tragada pelo Atlântico,
E a terra perdeu mais uma porção de Infinito;
Coléricas, as hordas precipitaram-se em meio à
noite.
Enfureciam as purpúreas flamas! A peste
retrocedia para irada investir-se
Contra os Anjos de Albion: Logo a Pestilência
alastrou suas rubras estrias,
Nos membros dos Guardiões de Albion. A
praga atingiu o Espírito de Bristol
E a lepra o Espírito de Londres deixando caídas
suas legiões.
As multidões em delírio gritavam desesperadamente,
despojando-se de suas armaduras forjadas,
Desnudas, ao chão arremessavam suas espadas
& lanças.
O Guardião de Albion contorcia-se nos céus do
este,
Pálido, volvendo para cima seus luminosos
olhos, rangendo os dentes,
Trêmulo & uivante agitava as pernas fremendo
cada músculo e tendão.
Jaziam sobre a neve o Guardião de Londres e o
venerável Mitrado de York,
Suas frontes sobre os montes nevados e suas
insígnias desfaleciam aos ventos.
A peste alastrava-se velozmente pelas ígneas
correntezas conduzidas pelas flamas de Orc
E pelas hordas de ferozes americanos que
corriam impetuosamente pela noite,
Até os Guardiões da Irlanda, Escócia & Gales.
Atormentados pela Peste, abandonaram suas
fronteiras e estandartes calcinados
Pelos fogos infernais, detratavam os céus ancestrais
com vergonha & dor.
Nos recônditos meandros de suas grutas, tomado
pela peste, escondia-se o Bardo de Albion.
Um capuz carnoso cobriu-lhe o rosto & terríveis
escamas alastraram-se por suas costas;
Encobertos pelas negras escamas, seus Anjos
assolaram os céus ancestrais.
Abriram-se então os portais do casamento, e os
sacerdotes protegidos com suas crepitantes escamas,
Correm às tocas, escaparam rapidamente das
chamas de Orc,
Que em redemoinho giravam ao redor das
abóbadas douradas qual turbilhantes anéis de fogo de
desejo,
Desnudando as fêmeas, e abrasando-se com os
ardores juvenis.
*
Pois os espíritos femininos dos mortos,
languidescendo nos laços da religião,
Reanimaram-se & libertaram-se dos pesados
grilhões & suspensas em imensos arcos,
Sentiam ressurgir os ardores juvenis e os
ardores dos tempos antigos,
Nos seus lívidos membros qual videiras ao
surgir das tenras uvas.
*
Pelas cidades, vales e montes, ardiam as rubras
flamas:
Derretiam-se os céus de norte a sul; e Urizen,
sentado
Entre trovões, pairando sobre os céus, erguia
sua cabeça coberta
Pelas chagas da lepra,
De sua sagrada ermida. E suas lágrimas
precipitavam-se torrenciais,
Sobre os vórtices do sublime abismo, cobertas
por neves cinzentas
E faces trovejantes; Suas asas debatiam-se sobre
o abismo;
Uivante em prantos, arrojou-se uivante e
sombrio,
Contra as hordas derrotadas, plenas de
lágrimas & trêmulas de frio.

MILTON

(1804-1808)

Fragmentos

Se as portas da percepção se purificassem, cada coisa
apareceria ao homem tal como é, infinita.”

                                                                 William Blake
Em “Milton”, o Espírito deste grande poeta regressa à terra para cumprir sua verdadeira missão poética, e então aproxima-se de Blake, a fim de inspirá-lo.
Neste poema, o Cosmos configura-se como um Éden central, ao redor do qual encontra-se Beulah, plano onde as almas repousam. Em seguida precipita-se o Abismo, e mais além Ulro, o tenebroso Caos.

MILTON

Esta é a Natureza do infinito:
Todas as coisas possuem seus próprios Vórtices,
e quando um navegante da Eternidade
Passa este Vórtice, percebe que ele turbilhonante
gira para trás
E torna-se uma esfera que se engloba a si mesma
como o sol, a lua, ou como um firmamento de
constelada magnitude
Entretanto prossegue em sua maravilhosa
trajetória pela terra,
Ou como forma humana, um amigo com o qual
conviveu-se benevolentemente.
O olho humano, seu Vórtice abarcando,
vislumbra o leste & o oeste
O Norte & o sul, com suas vastas legiões de estrelas
O sol surgente e a lua no fulcro do horizonte
Os seus milharais e vales de quinhentos alqueires
A terra é uma planura infindável, e não como
aparece
Ao ignóbil transeunte confinado às sombras da
lua.
O céu é um Vórtice já há muito transpassado;
A terra, um Vórtice ainda intocado pelos
navegantes da Eternidade.
...........................................................................
E os quatro estados da tranquila Humanidade
em seu Repouso
Foram-lhe então mostrados. Primeiro o de
Beulah, o gostoso Sono
Sobre os sedosos leitos ao suave modular das
melodias e das Flores de Beulah
Doces formas Femininas aladas ou flutuantes no
cristal do ar.
O Segundo Estado é Alla & o terceiro Al-Ulro.
Mas o quarto, o fantástico, é denominado Or-
Ulro.
O Primeiro localiza-se na Cabeça, o Segundo
no Coração
O Terceiro nos vasos seminais e o Quarto,
No Estômago e Intestinos, terrível, letal e
indescritível.
E aquele, cujos Portais se abrem nessas regiões
do Corpo,
Pode nestes Portais vislumbrar estas
deslumbrantes Imaginações.
*
Outros Filhos de Los engendram Momentos &
Minutos & Horas
E Dias & Meses & Anos & Eras, deslumbrantes
palácios;
E cada Momento possui um Leito de ouro
destinado ao suave repouso,
(Um Momento equivale à pulsação de uma
artéria)
Entre dois Momentos encontra-se uma filha de
Beulah.
Que nutre os que Dormem com cuidados
maternais.
Cada minuto detém uma tenda de sedosos Véus
azuis:
E em cada Hora estende-se um Portal de ouro
magistralmente esculpido.
Cada Dia & Noite possui brônzeas Muralhas &
Umbrais de diamante
Que cintilam qual pedras preciosas com signos
ornados.
Em cada Mês ergue-se um alto Terraço de pisos
de prata.
Em cada Ano, imponentes Muralhas de gigantescas
Torres.
Cada Era rodeia um profundo Poço com pontes
de prata & ouro;
E cada período de Sete Eras é circundado por
Iridescentes Flamas.
Sete Eras equivalem a Duzentos anos.
Tudo tem seu Guardião, cada Momento, Minuto,
Hora, Dia, Mês & Ano;
São criações das Mágicas mãos dos quatro
elementos;
Os Guardiões são Anjos da Providência em
perpétuo dever.
Toda fração de Tempo menor que um pulsar de
artéria
Equivale a Seis Mil Anos.
Pois neste Ciclo é criada a obra do Poeta, e nele
os Grandes
Eventos do Tempo se iniciam e são concebidos
No fulcro de um instante, Pulsação arterial.
O céu é uma Tenda Eterna erguida pelos Filhos
de Los;
E o vasto Espaço que o Homem contempla em
sua morada
Na cobertura ou jardim no cimo de uma colina
De vinte e cinco pés de altura, é seu Universo;
Em cujos horizontes o Sol se põe, e as Nuvens
inclinam-se
Tentando alcançar a Terra & o Mar no
clariperfeito Espaço.
Os Firmamentos não se expandem, mas se
curvam e se assentam por todos os lados.
Os Pólos abrem suas válvulas douradas;
E se ele abandona sua morada seus céus o
acompanharão
Até onde for, e sua perda, a vizinhança deplora.
Tal é o espaço denominado Terra & tal sua
dimensão
Enquanto essa falsa aparência que se apresenta
ao racionalista
Como um Globo rolando através da Vacuidade,
é uma decepção de Ulro.
E disto nem desconfiam o Telescópio ou o
Microscópio;
Alteram os parâmetros dos Órgãos do Espectador,
deixando intocados os objetos;
Pois cada Espaço maior que um Glóbulo vermelho
de sangue Humano
É visionário e foi pelo martelo de Los criado.
E cada espaço menor que um Glóbulo de
sangue estende-se
Às larguras da Eternidade, da qual esta terra
Vegetal não é senão a mera imagem.
O Glóbulo vermelho é o insondável Sol por Los
criado,
Para mensurar o Tempo & o Espaço aos Mortais
a cada manhã.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/34847/17/william-blake-america-e-milton