CASSIANO RICARDO, O
POETA SOLDADO E SEU GRUPO BANDEIRA
“a missão do grupo Bandeira era, portanto, também
civilizatória“
O poeta Cassiano Ricardo tinha a ideia política de que o
Brasil não precisava organizar seu governo com modelos estrangeiros, pois o
movimento Bandeira já possuía uma concepção própria e adaptada à cultura
brasileira, ou seja, o poeta participava de um movimento político que buscava a
originalidade na construção de um modelo de governo e de política no Brasil.
O rumo que o Bandeira tomava vinha desde os primórdios do
século XVI, contexto em que já existia a origem deste modelo de Estado
Brasileiro, fundado na hierarquia dos valores individuais e sociais, numa ética
de um governo forte e na prática da disciplina. Na obra do poeta Cassiano
Ricardo teremos esta concepção no retrato que ele faz das Bandeiras como
responsável pela formação social do Brasil no seu livro de poemas intitulado
Marcha para oeste, onde o poeta também busca justificar o governo Vargas, já na
sua versão autoritária do Estado Novo. E tal concepção se aprofunda em seu
ensaio intitulado Brasil, publicado em 1936, no qual ele já concebe a ideia de
Estado Bandeirante.
E temos também neste movimento Bandeira e nas ideias
concebidas pelo poeta Cassiano Ricardo a colocação da cultura no centro da
prática política e de sua reflexão, pois a cultura será estratégica como
difusora de uma ideologia nacional, na união do Estado forte e dos
intelectuais, abafando conflitos e erigindo um governo e um país ordeiro e
unido. A missão do grupo Bandeira era, portanto, também civilizatória, na forja
de uma identidade nacional. Os intelectuais, por conseguinte, são estes
missionários da cultura brasileira, os que vão mediar esta ideia original de civilização
nacional, e é quando o poeta Cassiano Ricardo reforça a sua concepção do poeta
soldado, este escritor que terá voz ativa na política e na cultura nacional.
Por fim, o grupo Bandeira e seu projeto político autoritário chegarão ao poder
por meio da proclamação do Estado Novo em 10 de novembro de 1937.
Por conseguinte, com o Estado Novo, o grupo Bandeira se
desfez e seus membros foram colocados em funções públicas, com os intelectuais
mais afinados com o novo regime em pontos estratégicos da administração
nacional, com Cassiano Ricardo, com o passar dos anos, se tornando o diretor do
Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (em São Paulo), diretor do
Departamento Cultural da Rádio Nacional e do Jornal estatal carioca A manhã,
jornal chapa branca do governo Vargas.
O grupo Bandeira, por fim, tinha a ideia de um Estado
Bandeirante, e este veio, de certo modo, a se realizar com Vargas e seu Estado
Novo. E na obra de Cassiano Ricardo temos esta passagem fundamental que se dará
entre suas obras Martim Cererê e Marcha para oeste, pois na análise do fenômeno
chamado Brasil temos um amadurecimento político do poeta Cassiano Ricardo em
Martim Cererê, e que será o elo para outra grande obra, a Marcha para oeste, de
1940, com a figura do Bandeirante no centro desta obra poética, que foi também
uma via de legitimação do Estado Novo como uma espécie de Estado Bandeirante em
ação no país.
POEMAS :
POEMAS MURAIS (1950)
PEDIDO A UM
OFICIAL-DE-GABINETE :
O poema lida com a carga de disciplina oficial, o mundo do trabalho na sua
distribuição desigual, em que o nomeado do Diário Oficial vê a penúria de que o
povo sofre, no que temos : “Na manhã azul-ferrete/ainda com a estrela-d`alva/entrou
no teu gabinete/como nas asas de um pássaro/o teu Diário Oficial.”. A pessoa vê
seu nome no Diário Oficial e, de súbito, fica contente, se torna um
privilegiado diante do desamparo geral da nação, no que segue o poema :“Estás
mais contente, agora,/do que um pássaro de cristal.”. E o mundo desigual logo
dá as caras, no que segue : “Mas, se a vida é assim festiva,/para alguns, a
outros dói/como ferro em carne viva./(Vivê-la já é ser herói.)/Ah, os que vivem
no escuro/da competição brutal/que é a vida sem futuro,/sem o Diário Oficial,”
(...) “Desses uma pobre viúva/com os seus três órfãos de guerra,/três anjos
sujos de terra,/virá ao teu gabinete/contar-te o que tem sofrido/neste mundo
desigual.”. A presença deste mundo injusto carrega toda a rotina de trabalho,
no que segue a descrição desta coletividade angustiada : “Rostos diários, em
série,/pés amigos de tapete,/desfilarão, afinal :/o obediente funcionário,/os
candidatos a emprego,/o orador do sindicato,”. E o poeta enfim pede
cordialidade, acima dos problemas todos, no que segue :“A todos – peço-te agora
–/sê paciente, sê cordial.” (...) “Que o poder não diz : “não posso”/Ao que,
talvez, no outro dia,/em decúbito dorsal,/estás arriscado a ver/com retrato no
jornal/(o teu “não” foi-lhe um punhal),/diante de ti, por um vão/do teu Diário
Oficial,/entre a xícara de café/e uma rosa matinal ...”. E no fim se dá esta
importância da cordialidade como antídoto para o desamparo da miséria.
A BANDA ESQUIZOFRÊNICA
: O poema é sobre
uma banda de música de loucos, com um diretor, no que segue esta descrição
insólita que é o poema, no que segue : “A manhã, com a sua trança de sol sobre
o ombro,/passeia como uma rainha louca, na ilha./Sob as árvores se vê, então,
cúbica e alva,/a casa dos insanos.”. Aqui está a criação do diretor do
hospital, na casa dos insanos, a sua nova criação, a banda de música, no que
segue : “E com que ênfase o diretor da ilha exibe,/aos que visitam o hospital,
a sua/criação mais recente, uma banda de música/de loucos. Inspirou-o, por
certo,/uma concepção babilônica, ou pagã, da alegria.”. A descrição logo se
torna cubista, simbólica, como o mundo sobrenatural dos loucos, no que temos : “Com
que ênfase ele reúne os vinte e quatro/músicos cubistas, com que convicção
simbólica/como se fosse justamente, ele, o maior louco.” (...) “Vinte e quatro
habitantes do feérico, e um maestro,” (...) “E eis que a banda de música
executa,/na rosa áspera dos metais” (...) “a sua música feroz.”. A música é
feroz, como o mundo enigmático da loucura, que tem muito de sobrenatural,
simbólico e insensato, num mundo que o poeta logo generaliza para o humano em
geral, em que indaga, ao fim, sobre este sol dos loucos, no que o poema segue :
“Tem-se dó do louco, vai-se ver,/ele se considera/sobrenatural e feliz./Meu dó
não é do louco, é do gênero humano./E o sol dos loucos? será o mesmo/que fulge
nos cadernos de música?/Não sei se o é, ou não./Sei que a rainha louca da manhã
desata a sua/trança de sol.”. O hospital é aqui retratado no poema como uma
ilha da loucura, no que segue : “nesta ilha/em que não se sabe onde a realidade
se despede do sonho,”. A realidade não deixa o sonho, nesta ilha tudo se
mistura, a banda esquizofrênica segue com sua música, na glória e felicidade
dos insensatos, e o poeta que busca a idealização de que o louco é capaz, no
que o poema dá seu último canto : “Ah, em meio a tudo o que eles –
autossuficientes –/pensam que são, quisera eu ser, apenas,/o que o tocador de
clarineta da banda esquizofrênica/pensa que é. Me bastaria a sua glória.”
POEMA APÓCRIFO : O poema é apócrifo, sem autor, num
muro, no que o poema descreve esta ação anônima, rica em poesia e bem ideal de
uma ação de arte espontânea, no que temos : “Quero escrever um poema,/no muro/que
dá para o amanhã.” (...) “E que o meu poema/seja cruelmente apócrifo.” (...) “E
que o simples transeunte,/o anônimo da rua,/pergunte :/mas que noturna mão/terá
escrito este poema/que a manhã já encontra/no muro?”. Sua ação anônima tem um
toque de romantismo ou idealização do artista e seu confronto com o comum, e
sua inscrição no muro pode então dar lugar especial ao poeta, o poema no muro
se torna especial, no que segue, agora com a indagação de quem praticou tal
ação : “Ah, os poemas escritos/no rosto das paredes./Cheios de alusões/e de
terríveis datas./Não se sabe por quem, a que hora./Flores de espanto que o
silêncio/abafa./Cujo autor se ignora.” (...) “Mas quem terá escrito/o que
apareceu, agora,/no muro desta rua?/Um bêbedo? um proscrito?/Serei, depois,
levado/ao interrogatório;/e Ciclope – o que tem/um só olho na testa –/me
indagará : o teu nome?/Então eu lhe direi,/como o herói da fábula :/“O meu nome
é Ninguém.”” (...) “Mas, quem foi que o escreveu?/A estrela-d`alva? Eu?/Somos,
todos, autores/do poema/que Ninguém escreveu.”. Por fim, a ação tem autoria
ignorada, é um poema de todos, e que aqui é o que Ninguém escreveu.
O ARRANHA-CÉU DE VIDRO
(1954)
O ARRANHA-CÉU DE VIDRO
: O poema junta a
imponência urbana ao poema que descreve também um arco-íris, no que temos : “Impossível
descrever a tormenta/sobre a cidade, sobre o arranha-céu de vidro./A hora do
pânico./Uma cintilação crua e os fios da iluminação pública e do/Tráfego/síncope
das palavras.” (...) “Mas surge o arco-íris, grande flor celeste,/girassol
fantástico sobre o arranha-céu de vidro.”. O arco-íris é aqui um arco de
aliança, no que temos : “O arco de aliança, o sinal do armistício/Assinado
entre Deus e as suas criaturas./Arco no céu, e íris em nossos olhos/pra nos
lembrar que ainda somos náufragos.” (...) “Ou porque a tempestade, hoje,/perdeu
o prestígio da fúria./Ou porque uma faísca elétrica,/inesperada, não é mais
tétrica/que uma cadeira elétrica, à hora exata.”. O arranha-céu tem aqui sua
versão poética, mundo de vidro, e que vira rosácea de ouro, em uma festa
náutica, enfim : “A tempestade sobre o arranha-céu de vidro/é uma palavra só,
esférica./Que haverá de mais mil e uma noites/que o arranha-céu de vidro/cintilando
– do que cada relâmpago/o transformar numa rosácea de ouro?/Parece que está
havendo dentro dele/uma festa náutica.”
POEMAS :
POEMAS MURAIS (1950)
PEDIDO A UM
OFICIAL-DE-GABINETE
Na manhã azul-ferrete
ainda com a estrela-d`alva
entrou no teu gabinete
como nas asas de um pássaro
o teu Diário Oficial.
Sobre a mesa um telegrama,
a xícara de café
e uma rosa matinal.
Estás mais contente, agora,
do que um pássaro de cristal.
Tua fala é mais sonora
e sabe a um secreto sal;
e o teu andar adquiriu
já um certo ritmo especial.
Mas, se a vida é assim festiva,
para alguns, a outros dói
como ferro em carne viva.
(Vivê-la já é ser herói.)
Ah, os que vivem no escuro
da competição brutal
que é a vida sem futuro,
sem o Diário Oficial,
sem xícara de café
e sem rosa matinal.
Desses uma pobre viúva
com os seus três órfãos de guerra,
três anjos sujos de terra,
virá ao teu gabinete
contar-te o que tem sofrido
neste mundo desigual.
Uma professora ingênua
te trará as suas queixas,
olhos azuis de quimera
de tanto esperar governo
numa sala azul de espera
(ó esperança nacional).
E mesmo o chefe político
cheio de santa inocência
virá em nome do povo
com os seus pedidos em flor,
com o barro municipal
que lhe ficou no sapato,
os olhos cheios de amor,
pedir pontes e colégios
pra sua terra natal,
madrugador como a estrela
mas nem sempre venturoso
como a rosa matinal.
Rostos diários, em série,
pés amigos de tapete,
desfilarão, afinal :
o obediente funcionário,
os candidatos a emprego,
o orador do sindicato,
a mulher de perfil grego,
o que vem, ainda bisonho,
pedir a primeira audiência
prevista entre rosa e sonho.
o que visita o governo
por vocação oficial,
o que só acredita em lágrima
quando lágrima oficial,
e só acredita em sorriso
quando sorriso oficial
e só acredita em anjos
de céu que seja oficial.
A todos – peço-te agora –
sê paciente, sê cordial.
Principalmente se um dia
por um atalho da vida
entrar no teu gabinete,
triste como um caramujo,
com uma rosa na mão,
que furtou ao edital,
o homem que amanheceu
num banco do jardim público
à espera da sua hora
numa súplica final.
A esse – o desconhecido –
sem albergue ou hospital,
filho do pó e da rua
com residência na lua
e cujo nome não consta,
por errado, ou ilegível,
(pois a dor é analfabeta)
entre as nomeações do dia
do teu Diário Oficial;
a esse, que amanheceu
num banco do jardim público,
e viu como, de manhã,
se apaga a última estrela
da constelação austral :
a esse, o desconhecido,
o que te traz uma rosa
mais que as outras, matinal;
mais que aos outros, sê cordial.
Extremamente cordial.
Que o poder não diz : “não posso”
Ao que, talvez, no outro dia,
em decúbito dorsal,
estás arriscado a ver
com retrato no jornal
(o teu “não” foi-lhe um punhal),
diante de ti, por um vão
do teu Diário Oficial,
entre a xícara de café
e uma rosa matinal ...
A BANDA ESQUIZOFRÊNICA
I
A manhã, com a sua trança de sol sobre o ombro,
passeia como uma rainha louca, na ilha.
Sob as árvores se vê, então, cúbica e alva,
a casa dos insanos.
São insanos, realmente, ou pássaros humanos
os que o destino aí pôs? E aí gorjeiam,
tão intempestivamente e com tamanho
furor sonoro?
E com que ênfase o diretor da ilha exibe,
aos que visitam o hospital, a sua
criação mais recente, uma banda de música
de loucos. Inspirou-o, por certo,
uma concepção babilônica, ou pagã, da alegria.
Ou o pensar que arte e loucura são flores
diversas, num só ramo, como a lágrima
é irmã gêmea do orvalho; ou o acreditar
que a real alegria, a única, é inconsciente;
é a dos pássaros, ou então a dos homens,
quando cantaram como pássaros; ou quando,
hoje, pássaros pensam ser.
Com que ênfase ele reúne os vinte e quatro
músicos cubistas, com que convicção simbólica
como se fosse justamente, ele, o maior louco.
Inspirou-o, por certo, uma maior razão para a alegria
na sem-razão dos loucos.
Como se houvesse uma maior razão para a alegria
na sem-razão dos loucos.
Como se, afinal, uma alegria tão socrática
por tornar, cada um, menos naturalmente triste,
não tornasse, ao contrário, a cada um,
mais triste.
Vinte e quatro habitantes do feérico, e um maestro,
homem de juízo, amigo da ordem :
O que dirige a banda, com uma vara de giesta,
na mão.
E eis que a banda de música executa,
na rosa áspera dos metais (e com a predominância
dos flautins, dos saxofones e dos pratos,
e dos agudos, e dos sustenidos)
a sua música feroz.
O dó é uma convenção, não a primeira nota
de uma escala.
Tem-se dó do louco, vai-se ver, ele se considera
sobrenatural e feliz.
Meu dó não é do louco, é do gênero humano.
E o sol dos loucos? será o mesmo
que fulge nos cadernos de música?
Não sei se o é, ou não.
Sei que a rainha louca da manhã desata a sua
trança de sol.
Sei que o meu coração fica batendo
entre a condicional e o si bemol.
II
Pobres músicos, de onde vieram a esta ilha?
O primeiro
bebeu no cálice da metamorfose,
e o seu eu se inflamou como uma flor desobediente,
num reino azul-garrafa.
O segundo
é cômico, ao mesmo tempo que patético.
Um terceiro matou o pai, num gesto súbito
de arrebatamento filosófico.
Este perdeu o senso e acredita ter descoberto o segredo
de qualquer coisa que ainda guarda em segredo.
Aquele, ao que me informa o diretor da ilha,
chorava, quando bêbedo, dizendo
haver morrido,
e ali ter que ficar, até a hora do enterro, sentado,
sobre o seu próprio corpo. (Onde Heliodora
que não chegava a tempo de lhe trazer uma única flor?)
Aquele outro dispõe de oito luas
como Saturno, e é, ainda, proprietário de Sírius.
Este outro se especializou em palavras esdrúxulas,
rápidas como pétalas.
E um último se dizia Napoleão.
Por fim, ei-lo aqui, e nesta ilha
em que não se sabe onde a realidade se despede do sonho,
e onde a própria ciência consagra oficialmente as
hipóteses,
o que vale para ele, é uma fotografia – uma fotografia
que traz no bolso;
e em que aparece, travestido
de Napoleão.
Ah, em meio a tudo o que eles – autossuficientes –
pensam que são, quisera eu ser, apenas,
o que o tocador de clarineta da banda esquizofrênica
pensa que é. Me bastaria a sua glória.
(obs : o poema continua, aqui está a sua primeira metade, ou
seja, as partes I e II)
POEMA APÓCRIFO
I
Quero escrever um poema,
no muro
que dá para o amanhã.
No muro junto ao qual
caem os fuzilados
(no céu a estrela-d`alva).
E que o meu poema
seja cruelmente apócrifo.
Apócrifo como os livros
Das Sibilas
E o Cântico dos Cânticos.
Apócrifo como os símbolos,
os desenhos rupestres,
os hieróglifos, que a ferrugem
e o musgo ilustram.
E que o simples transeunte,
o anônimo da rua,
pergunte :
mas que noturna mão
terá escrito este poema
que a manhã já encontra
no muro?
Quem o terá escrito?
O morto? a sua irmã?
Lembro-me que, em menino,
Foi aqui – neste muro –
que escrevi uma palavra
inconfessável, obscena.
Chamaram-me anarquista.
Aqui é que rabisquei
minha primeira
declaração de amor. No muro
das desigualdades sociais.
(Sou dos que ficaram
para fora do muro.)
Ah, os poemas escritos
no rosto das paredes.
Cheios de alusões
e de terríveis datas.
Não se sabe por quem, a que hora.
Flores de espanto que o silêncio
abafa.
Cujo autor se ignora.
E que só conseguem
vicejar entre pedras,
entre fomes e sedes, entre
cactos e cacos azuis
de garrafa.
Mas quem terá escrito
o que apareceu, agora,
no muro desta rua?
Um bêbedo? um proscrito?
Serei, depois, levado
ao interrogatório;
e Ciclope – o que tem
um só olho na testa –
me indagará : o teu nome?
Então eu lhe direi,
como o herói da fábula :
“O meu nome é Ninguém.”
Mas num esperanto
já difícil e trágico.
Ou numa outra língua.
Na língua em que a palavra
pessoa
(seja minha ou do Rei,
não importa de quem)
já quer dizer Ninguém.
Mas, quem foi que o escreveu?
A estrela-d`alva? Eu?
Somos, todos, autores
do poema
que Ninguém escreveu.
II
(Flor enigmática
que apareceu aberta
na manhã de hoje.
Mas, que tem qualquer coisa
de amanhã na corola.
Por mais de hoje que seja,
por mais rosa
que a de ontem.)
O ARRANHA-CÉU DE VIDRO
(1954)
O ARRANHA-CÉU DE VIDRO
A água do Dilúvio
Impossível descrever a tormenta
sobre a cidade, sobre o arranha-céu de vidro.
A hora do pânico.
Uma cintilação crua e os fios da iluminação pública e do
Tráfego
síncope das palavras.
As ruas são rios, as casas dos pobres
nadam como peixes nos alagadiços, rosa d`água
que tombou do ar em pétalas de fogo.
(Os jornais naturalmente publicarão amanhã a fotografia
do transeunte que a enxurrada engoliu
pela boca de um cano de esgoto.)
Mas surge o arco-íris, grande flor celeste,
girassol fantástico sobre o arranha-céu de vidro.
Arco-íris que fugiu da fábula e da Bíblia.
O arco de aliança, o sinal do armistício
Assinado entre Deus e as suas criaturas.
Arco no céu, e íris em nossos olhos
pra nos lembrar que ainda somos náufragos.
No céu o arco-do-triunfo, em nossa íris
a água do Dilúvio
que nos escorre pelos olhos, até hoje.
Festa náutica
Ou porque a tempestade, hoje,
perdeu o prestígio da fúria.
Ou porque uma faísca elétrica,
inesperada, não é mais tétrica
que uma cadeira elétrica, à hora exata.
Ó bárbara que se tornou santa,
ó santo irmã do lobo.
Ou porque as grandes fúrias
da natureza serão sempre pequenas
diante da tempestade
que os laboratórios da física anticeleste
fabricam em silêncio.
A tempestade sobre o arranha-céu de vidro
é uma palavra só, esférica.
Que haverá de mais mil e uma noites
que o arranha-céu de vidro
cintilando – do que cada relâmpago
o transformar numa rosácea de ouro?
Parece que está havendo dentro dele
uma festa náutica.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36972/17/cassiano-ricardo-o-poeta-soldado-e-seu-grupo-bandeira