PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 20 de junho de 2018

CONTO SURREALISTA


“virei pasta para entrar mais fácil na pintura de Dalí”

(Obs: ler ouvindo “Scream Thy Last Scream” de Syd Barrett)

Mister X adorava tomar LSD e contemplar suas réplicas de pinturas surrealistas de Salvador Dalí. Um belo dia ele se transformou em pasta e entrou no quadro “A Persistência da Memória”, e foi aí que começou a sua aventura.
O tempo se liquefez e se transformava em formas elásticas de sons e imagens, a sinestesia tomava o campo da percepção de Mister X, nos seus olhos de gafanhoto e suas antenas ele detectava o relógio derretido quando da descoberta da relatividade geral de Einstein.
A viagem no tempo se tornara possível para uma alucinação potente daquele LSD puro ingerido uma hora antes, tudo girava em proporções gigantescas, ele era uma pasta que metamorfoseava como uma lesma sem casco ou uma minhoca psicodélica, era a própria mandala subterrânea em trânsito pelo inconsciente, uma energia cinética emanava dos relógios derretidos e sua memória delirava com um encanto juvenil, o grito rejuvenesceu e seu crânio derreteu junto com a paisagem surrealista de Dalí.
Mister X nunca foi humano, foi concebido como uma máquina para realizar experiências com alucinógenos e pinturas, cogumelos gigantes invadiam a vastidão da viagem, lembrou Mister X de que não tinha nascido e nem sido abortado, vivia como se tivesse brotado do chão, não era exatamente humano, mas não era uma simples máquina e nem simplesmente uma experiência como qualquer outra, ele era composto de várias fórmulas secretas que tornaram possíveis suas viagens pelo tempo através de pinturas ao ingerir LSD.
Vamos ao relato imaginário de Mister X:
Eu era uma lesma subatômica, virei pasta para entrar mais fácil na pintura de Dalí, não sei ao certo o que me levou, eu sei que me vi entre os relógios de um tempo paralelo, subatômico, uma viagem quântica, é, eu acho que fiquei microscópico, virei um elétron apenas, e um elétron pode fazer o que quiser e se transformar no que quiser, então eu virei pasta subatômica e meu átomo se dividiu em peças que se uniram à molécula alucinógena, eu sou a própria viagem, eu sou o meu princípio ativo, tudo me é permitido sob esta nova condição, onde nenhum humano jamais ousou entrar, no fundo de uma pintura com sede e delírios.
A Persistência da Memória é visionária, a pasta subatômica não era humana, Mister X não tinha mais crânio ou carne, sua viagem no tempo se tornou possível por ser este partícula e onda, foi ao céu e saiu do outro lado da existência, ele continuou e se fascinou com seu passeio pela pintura de Dalí, nunca mais seria o mesmo, em todo o percurso vinham imagens e sons diversos, tudo num caldo sinestésico de música psicodélica.
A miragem era seu sonho e torpor, seu surto era ter se tornado um estranho ser inumano, geleia do tempo elástico de Einstein, ele já não era alguém, a dissociação de seu ego derreteu seu superego e ele era um bicho freudiano chamado ID, mas era um anti-ente subatômico, incompreensível para a inteligência humana, seu destino de pasta o levava para ver o sentido do tempo fora de seu curso normal, pois havia cronos e kairós.
Mas, agora, Mister X estava no que na mitologia grega chamam de Tártaro, um ser nada que apenas flutua, e logo se encontra com Tânatos, é o mundo louco da titanomaquia, Mister X nunca poderia voltar a ter um corpo e alinhar a sua mente liquefeita com os velhos relógios de cronos, nem ter a sua psique submetida a kairós, não havia mais realidade, o surrealismo de sua anticondição de um anti-ente nos leva ao mundo escuro da anti-matéria, mas não no universo, mas dentro da pintura, e sob efeito de LSD, nada mais complexo. Mister X não sabia mais de nada.
Qual seria o seu fim? Tânatos? Ou dissolver-se no mar da ilusão subatômica? Qual seria o antídoto para Mister X voltar ao normal? Sua imaginação o levara longe, e não havia mais vestígio do que tivera sido, a persistência de sua memória, neste caso, revelava um passado desconhecido para ele mesmo.
O que ele lembrava parecia pertencer ao inconsciente coletivo e não ao seu suposto eu. Ele não tinha mais eu, era um elétron, ainda pensava, mas era surreal, inumano, terrível, temerário. Ele se arrepende e pede perdão a Deus. Mas Deus não revela o segredo do que é o tempo, pois nem Einstein o tinha decifrado, pois nem cronos e nem kairós teriam solução para o enigma.
O que restava era a morte das perguntas em Tânatos e no vazio Tártaro, que não é o inferno cristão, onde ainda se tem pessoa e tempo, não é mais do tempo que se trata a pintura de Salvador Dalí e a viagem de LSD de Mister X, tudo se torna alegórico neste surrealismo pagão, Mister X era uma experiência que termina num anti-tempo indecifrável.
Mister X nunca mais voltou de seu delírio subatômico, virou pasta e se perdeu no infinito paralelo de uma pintura de Dalí, e não terá sido em vão. Sua nova morada era a arte, e na arte podemos ser o que quisermos, não haveria porque voltar, portanto.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/39141/14/conto-surrealista

segunda-feira, 18 de junho de 2018

GÓNGORA, PANEGÍRICO AO DUQUE DE LERMA


“o plano geral da obra gongórica possui duas fases”

Góngora tem todas as suas composições datadas, tendo assim como ponto de partida o ano de 1580, e citando seu primeiro poema impresso, uma canção que figura abrindo a tradução de Os Lusíadas para o castelhano feita por Luís de Tapia.
Nesta sua primeira composição podemos já observar os temas mitológicos que serão levantados em toda a sua obra, assim como já se verte neste caso versos esdrúxulos à moda italiana, e na sua forma temos já também o domínio de um léxico latinizante, figurando em seu modo de escrita como um poeta de porte, o que no plano geral de sua poesia lhe dará a característica de poeta culto, mesmo tendo feito parte de sua obra poética composições populares como, por exemplo, letrillas e romances.
Na sua fortuna crítica temos como que uma visão histórica que atuará de maneira pendular, pois temos o primeiro Góngora como bom, mesmo diante de uma visão negativa de sua fase mais esteta com o “Polifemo” e as “Soledades”. Portanto, o plano geral da obra gongórica possui duas fases, embora possamos também, por outro lado, identificar uma continuidade entre estas duas fases, configurando então um poeta inteiro e único, e por fim, coerente com seu destino e objetivo poético.
Góngora foi ganhando fama até ampla a partir do início da década de 1580, tendo produzido o soneto “A Córdova” sob influência de uma viagem a Granada, seu primeiro feito literário de grande valor, podendo ser citado, antes deste soneto, talvez somente o soneto “Al tramontar del Sol la ninfa mia”, de 1582, pois neste temos já impresso o que seria a poesia futura e a obra em geral de Góngora.
Luis Góngora, em face da renúncia de D. Francisco de Góngora da prebenda que tinha na Igreja de Córdova, torna-se então prebendado da catedral. Contudo, Góngora passa por interrogatório pelo bispo Francisco Pacheco, e acaba delatado por um dos seus companheiros, no caso de ter ido a corridas de touros e de escrever coplas profanas, no que o poeta se defende com humor, sendo, por fim, multado e proibido de ir a novas touradas.

PANEGÍRICO AO DUQUE DE LERMA

POEMAS :

I : O poema se abre da seguinte maneira, já na inspiração de Euterpe, no que segue : “Se arrebatado mereci algum dia,/Euterpe, a soberana tua lição,/Beije o curvo marfim desta macia/Sonante lira, tua divina mão;”. E o poema fecha ainda com o ardor da lira, no que temos, por fim : “Sinta-o inda mais a Líbia surda e odienta/Do que as áspides frias que alimenta.”

II : O poema descreve o marfim, e seu som, e aqui entre os hindus, e ainda deve o poema, o poeta Góngora, ao duque de Lerma, este que inspira esta grande peça gongórica, e aqui temos : “O osso canoro ouça da fera, inteira/Pompa de suas margens, a corrente/Do Ganges, cuja bárbara ribeira/Banho é supersticioso do Oriente :/De venenosa pluma, se ligeira,/Armado o escute o Maranhão valente,/E a meus números deva-lhes o mundo/Um fênix de entre os Sandos, um segundo.”

VII : Aqui se descreve o jovem duque, e seu tio, bispo de Córdova, no que temos : “Jovem depois meu ninho ilustrou pio,/Redil já numeroso para o gado/Que o silvo ouviu de seu glorioso tio,/Pastor de povos bem-aventurado;” (...) “Tanta lhe mereceu Córdova, tanta/Veneração a sua memória santa!”. Aqui um poema à cara memória santa do bispo, por fim.

VIII : O poema bebe bem e prudente doutrina do varão em glória, e ao fim nos lembra no poema a presença do centauro Quiron, no que segue : “Doce bebia na escola prudente/Ora a doutrina do varão glorioso,/Ora chispas de sangue a espora ciente/Solicitava ao trovão generoso,” (...) “De Quiron não biforme aprende ameno/Quantas já fulminou armas o heleno.”

XII : Aqui um poema próprio do panegírico, que homenageia o duque com toda a pompa, no que temos : ““Cresce, ó de Lerma tu, ó tu de Espanha/Bem nascido esplendor, firme coluna/Que ao bem cresces comum, pois não me estranha/O belo oráculo de tua fortuna;” (...) “Ao santo rei que ao juízo teu sem engano/Os anos deverá de Otaviano”.”. Aqui o poema que levanta a imagem do duque e ao fim cita o futuro rei Filipe III de Espanha.

XXXVIII : O poema aqui descreve a Espanha que então inundava as areias de Valença, no que temos : “A Valença inundava-lhe as areias/A Espanha então : o seu antigo muro/Só era capaz de, havendo aquelas cheias,/Ser do Himeneu o tálamo futuro./Desatadas a América suas veias/De um ostentou e de outro metal puro :/Admira, se o cavalo pisa o prado,/Que ouro morda e que prata haja calçado?”. Eis então o himeneu, e ao largo os metais chegados da América.

XXXIX : A bela Margarida, ainda no navio, aqui ouve de Mercúrio lisonjas de seu esposo, no que temos :“Da nau, não inda os seios inconstante/A bela Margarida havia deixado,/E já do esposo ela escutava amante/Lisonjas doces, por Mercúrio alado :” (...) “Títulos cá na Espanha esclarecidos,/Em grã, em ouro, a Alva, o Sol, vestidos.”. E os títulos de nobreza aqui bem lembrados, o poema da realeza, a poesia cortesã, eis o panegírico em seu esplendor, estro gongórico.

XL : A soberana Margarida é aqui homenageada, no que segue : “Com pompa recebida enfim gloriosa/A pérola boreal foi soberana/Em cidade vãmente generosa,” (...) “Doce um dia depois a fez esposa/Flamante o Castro em púrpura romana;/Foi-se o rei, foi-se Espanha, e irreverente/Pisou o mar o que inundou a gente.”. Por fim, a inundação novamente, Espanha e o mar.

LX : O Oriente aqui de despoja de seus bens, de sua ambição, no que temos : “Ambicioso se despoja o Oriente/Das coisas que entesoura em si mais belas :” (...) “O resplendor, a vaidade, a gala,/Em seu templo, em seu circo e em sua sala.”. Uma descrição da riqueza oriental aqui nós temos, e o destino que elenca em poema templo, salão e a gala.

LXV : O salão brilhante do palácio serve ao epiciclo ao rubi do dia, o sol, o rei, no que temos : “Apenas confundiu a sombra fria/Nosso horizonte, eis que o salão brilhante/Novo epiciclo ao grão rubi do dia/E ao maior dos da noite deu diamante :” (...) “Um orbe desatou e outro sonante/Astros de prata, que em luzentes giros/Bateram com alternos pés safiros.”. Por fim, o poema descreve a dança dos nobres, com toda pompa de um poema gongórico e barroco.

LXVI : Termina a festa, e temos então o poema, que nos diz : “Prolixa prevenção em breve hora/Dissolveu-se, e o topázio resplendente/Que foi ocidental balcão da aurora,/Canto de paço se tornou somente.” (...) “E o mesmo âmbito à terra, mudo exemplo/Ao desengano bem fabrica um templo.”. Por fim, o poema se encerra no templo, e nos lembra que tudo passa.

PANEGÍRICO AO DUQUE DE LERMA

POEMAS :

(Introdução)

I

Se arrebatado mereci algum dia,
Euterpe, a soberana tua lição,
Beije o curvo marfim desta macia
Sonante lira, tua divina mão;
Emulando com as trompas na harmonia,
De neves branco o sétimo Trião
Sinta-o inda mais a Líbia surda e odienta
Do que as áspides frias que alimenta.

II

O osso canoro ouça da fera, inteira
Pompa de suas margens, a corrente
Do Ganges, cuja bárbara ribeira
Banho é supersticioso do Oriente :
De venenosa pluma, se ligeira,
Armado o escute o Maranhão valente,
E a meus números deva-lhes o mundo
Um fênix de entre os Sandos, um segundo.

(Mocidade do Duque, em Córdova)

VII

Jovem depois meu ninho ilustrou pio,
Redil já numeroso para o gado
Que o silvo ouviu de seu glorioso tio,
Pastor de povos bem-aventurado;
Com lábio alterno, ainda hoje, o sacro rio
Beija o nome em suas árvores gravado.
Tanta lhe mereceu Córdova, tanta
Veneração a sua memória santa!

VIII

Doce bebia na escola prudente
Ora a doutrina do varão glorioso,
Ora chispas de sangue a espora ciente
Solicitava ao trovão generoso,
Ao cavalo veloz, que em poeira ardente
Envolto voa, em fogo pulveroso.
De Quiron não biforme aprende ameno
Quantas já fulminou armas o heleno.

XII

“Cresce, ó de Lerma tu, ó tu de Espanha
Bem nascido esplendor, firme coluna
Que ao bem cresces comum, pois não me estranha
O belo oráculo de tua fortuna;
Cloto o fio, vital de fulgor banha
Ao que Mercúrio já prepara a curna,
Ao santo rei que ao juízo teu sem engano
Os anos deverá de Otaviano”.

(1599 : Bodas reais, em Valença)

XXXVIII

A Valença inundava-lhe as areias
A Espanha então : o seu antigo muro
Só era capaz de, havendo aquelas cheias,
Ser do Himeneu o tálamo futuro.
Desatadas a América suas veias
De um ostentou e de outro metal puro :
Admira, se o cavalo pisa o prado,
Que ouro morda e que prata haja calçado?

XXXIX

Da nau, não inda os seios inconstante
A bela Margarida havia deixado,
E já do esposo ela escutava amante
Lisonjas doces, por Mercúrio alado :
Ao Sandoval em zéfiros voante
De trinta vezes dois acompanhado
Títulos cá na Espanha esclarecidos,
Em grã, em ouro, a Alva, o Sol, vestidos.

XL

Com pompa recebida enfim gloriosa
A pérola boreal foi soberana
Em cidade vãmente generosa,
Em nação generosamente ufana.
Doce um dia depois a fez esposa
Flamante o Castro em púrpura romana;
Foi-se o rei, foi-se Espanha, e irreverente
Pisou o mar o que inundou a gente.

LX

(1605 : Batizado do futuro Filipe IV, em Valhadoli)

Ambicioso se despoja o Oriente
Das coisas que entesoura em si mais belas :
Quantas, Ceilão, tua esfera aduz rubente
Centelhas no melhor metal revelas;
Do solo seu trouxe Camboja à gente
As que apesar do Sol mostrou estrelas :
O resplendor, a vaidade, a gala,
Em seu templo, em seu circo e em sua sala.

LXV

Apenas confundiu a sombra fria
Nosso horizonte, eis que o salão brilhante
Novo epiciclo ao grão rubi do dia
E ao maior dos da noite deu diamante :
Por uma láctea após segunda via,
Um orbe desatou e outro sonante
Astros de prata, que em luzentes giros
Bateram com alternos pés safiros.

LXVI

Prolixa prevenção em breve hora
Dissolveu-se, e o topázio resplendente
Que foi ocidental balcão da aurora,
Canto de paço se tornou somente.
De a idade quantos mármores devora
Volvendo ao ar o espaço equivalente
E o mesmo âmbito à terra, mudo exemplo
Ao desengano bem fabrica um templo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39109/17/gongora-panegirico-ao-duque-lerma