“a poeta Sophia coloca Pessoa como tema e como forma poética”
A poesia de Sophia se estende mais ainda, agora, em seu livro
Dual, em que a poeta se lança numa imersão na poesia produzida por Fernando Pessoa,
este cânone incontornável da poesia moderna portuguesa.
Com eixos formais já usados e aperfeiçoados por Sophia, aqui
com linhas temáticas que persistem na obra de Sophia, a participação da poesia
de Fernando Pessoa se dá por meio de um confronto de uma poeta que, em sua
essência, ainda é uma poeta de dicção mais clássica.
Este belo desafio de encontrar um elo entre esta sua poesia e
a de Pessoa produziu bons frutos neste livro Dual, sobretudo o poema de título
“Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”, sendo feito um livro em que a poeta
Sophia coloca Pessoa como tema e como forma poética, e a amplidão de sua voz
ganha o reforço de uma voz que não lhe pertencia, realizando uma experiência
poética que lhe engrandeceu.
As temáticas de ausências e sombras ainda estão como eixos da
poesia de Sophia, Dual possui, ainda, um certo luto do coração da vida, uma
visão de unidade ou fusão natural, e a sua poética da perda, como seu cânon
temático, quando não estamos falando do mar, o centro de tudo em sua poesia.
O título Dual, por sua vez, que dá a cara deste livro, é
fruto deste confronto bicéfalo de Sophia, que tem um tipo de dicção, com a
poesia canônica de Pessoa, um diálogo que se iniciara no Livro sexto, no poema
“Fernando Pessoa”.
Tal confronto ganha uma força descomunal no poema que falei,
que é o potente poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”, que sempre será
citado como o grande confronto realizado por Sophia com este cânon
inquebrantável da poesia de Pessoa.
O fato que persiste, ainda, diante deste confronto, é a
presença anterior de uma poesia de Sophia que se fundia à natureza, meio que
habitando filosoficamente a dita “casa do ser”, um tipo de mundo desconhecido e
exterior à poesia de Pessoa.
O poeta dos heterônimos produziu para si um mundo solitário
de uma falta de lar ou paradeiro, uma dispersão absoluta que se perdeu no caos
dos heterônimos, o melhor sintoma de escritos que se destinaram a ficarem
dispersos, colhidos por bibliófilos avidamente até os dias atuais.
DE DUAL :
POEMAS :
EURYDICE : Numa poesia órfica, o lamento é nostálgico, e cheira o sal
do mar, num canto mais antigo que os navios, e a fusão tectônica como coda : “O
teu rosto era mais antigo do que todos os navios/No gesto branco das tuas mãos
de pedra/Ondas erguiam seu quebrar de pulso/Em ti eu celebrei minha união com a
terra”.
EM NOME : A poética da perda aqui aparece em Sophia, e sua poesia faz este breve
lamento choroso : “Em nome da tua ausência/Construí com loucura uma grande casa
branca/E ao longo das paredes te chorei”.
DELPHICA : II : A narrativa fala da queda de Apolo diante de Python, e
a justa medida que evoca o deus grego, em sua imagem da harmonia, tem do humano
este caráter personificado que dá aos deuses estes embates comuns também ao ser
humano, no que temos : “Esse que humano foi como um deus grego/Que harmonia dos
cosmos manifesta” (...) “Àquele amor inteiro e nunca cego/Que emergia da praia
e da floresta”. A queda de uma arquitetura, de uma ideia, de um projeto, e o
poema segue : “Agora jaz sem fonte e sem projeto/Quebrou-se o templo actual
antigo e puro/De que ele foi medida e arquitecto” (...) “Python venceu Apolo
num frontão obscuro/Quebrada foi desde seu eixo recto/A construção possível do
futuro”. Se encerra aqui o primeiro bloco do poema e logo temos o seguinte, no
que vem : VI (Antinoos de Delphos) : “Tua face taurina tua testa baixa/Teus
cabelos em anel que sacudias como crina”. A descrição enaltece as virtudes do
deus, e segue : “Tua pesada beleza/Teu meio-dia nocturno/Tua herança dos deuses
que no Nilo afogaste/Tua unidade inteira em teu corpo/Num silêncio de sol
obstinado/Agora são de pedra no museu de Delphos/Onde montanhas te rodeiam como
incenso/Entre o austero Auriga e a arquitrave quebrada”. Sobra ao mito agora um
destino de ruína e antiquário, objeto do museu, em que algo se quebrou, um mito
que se tornou longínquo.
HOMENAGEM A RICARDO REIS : I : Novamente Sophia empreende um confronto formal
com a poesia de Fernando Pessoa, e este diálogo se torna intenso neste seu
livro Dual, no que temos : “Não creias Lídia, que nenhum estio/Por nós perdido
possa regressar/Oferecendo a flor/Que adíamos colher.”. E o tema se concentra
no tempo, e no seu caráter irrepetível, em que o dardo é lançado somente uma
vez, no que temos uma visão de uma temporalidade impiedosa, impassível, no que
vem : “Cada dia te é dado uma só vez/E no redondo círculo da noite/Não existe
piedade/Para aquele que hesita.” O pecado mortal da hesitação é a maior
fatalidade que existe neste tempo contínuo e sem piedade, a marcha que aqui se
empreende é cega ao murmúrio do arrependimento ou do alvo que se foi, o
não-vivido aqui aparece como a tragédia existencial do tempo perdido, no que
temos : “Mais tarde será tarde e já é tarde./O tempo apaga tudo menos
esse/Longo indelével rasto/Que o não-vivido deixa.” (...) “Não creias na demora
em que te medes./Jamais se detém Kronos cujo passo/Vai sempre mais à frente/Do
que o teu próprio passo.”. O tempo em Kronos aqui ultrapassa os passos humanos,
que cambaleiam diante dos golpes do destino.
DUAL : A condução aqui é dual, os cavalos se guiam e a poeta entra em fissura,
seu espírito, ao fim, se desagrega : “Dois cavalos a par eu conduzia/Não me
guiava a mim mas meus cavalos” (...) “E no país de espanto e de tumulto/Em mim
se desuniu o que eu unia”.
INICIAL : O poema canta o regresso da poeta à sua senda original, possível destino
de sua poesia, e sua alma é lavada, um rito que lhe restitui a praia inicial de
sua vida : “O mar azul e branco e as luzidias/Pedras – O arfado espaço/Onde o
que está lavado se relava/Para o rito do espanto e do começo/Onde sou a mim
mesma devolvida/Em sal espuma e concha regressada/À praia inicial da minha
vida”.
EM HYDRA, EVOCANDO FERNANDO PESSOA : A poeta se vê no porto de Hydra, e
se debruça diante desta sua visão, um mundo se abre, no que temos : “Quando na
manhã de Junho o navio ancorou em Hydra” (...) “Saí da cabine e debrucei-me
ávida/Sobre o rosto do real – mais preciso e mais novo do que o imaginado”
(...) “Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto”. E, então, ela invoca
o espírito da Odisseia, neste porto ela desperta para Odysseu, no que vem : “Murmurei
o teu nome/O teu ambíguo nome” (...) “Porque a tua alma foi visual até aos
ossos/Impessoal até aos ossos/Segundo a lei de máscara do teu nome”. Uma
persona pode ser um heterônimo, e Odysseu, como o poema e a máscara, empreende
uma longa viagem, desafiado até pelo canto das sereias, como em sua cena
amarrado ao mastro, no que vem : “Odysseus – Persona/Pois de ilha em ilha todo
te percorreste/Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa/Até
às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias”. E o cenário de
Hydra é descrito no poema, no que temos : “O casario de Hydra vê-se nas águas/A
tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco” (...) “Imagino
que viajasses neste barco/Alheio ao rumor secundário dos turistas/Atento à
rápida alegria dos golfinhos”. E o culto da navegação, e todo o seu sentido
marítimo, aqui emerge diante de nossa vista, no que vem : “Por entre o
desdobrado azul dos arquipélagos/Estendido à popa sob o voo incrível/Das
gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas”. A poesia épica e mitológica
de origem grega aqui é sintetizada por versos que homenageiam Fernando Pessoa,
no que segue : “Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde/esteve o
mar/Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas/Disse-me que tinha
conhecido todos os deuses”. A poeta sabe do grande conhecimento sobrenatural
destas paragens, mas se reconforta ao seu retorno a um lar humano, sem o dom da
imortalidade, no que temos : “Odysseus/Mesmo que me prometas a imortalidade
voltarei para casa/Onde estão as coisas que plantei e fiz crescer/Onde estão as
paredes que pintei de branco”. Ela deixa a Odysseu esta clarividência
espiritual que é cara a este, e que atravessa a essência que torna tudo
intensamente presente, este deus que sempre olha aquilo que é, no que temos : “Há
na manhã de Hydra uma claridade que é tua/Há nas coisas de Hydra uma concisão
visual que é tua/Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que
é/olhado por um deus/Aquilo que o olhar de um deus tornou impetuosamente
presente” (...) “O teu destino deveria ter passado neste porto/Onde tudo se
torna impessoal e livre/Onde tudo é divino como convém ao real”. O porto de
Hydra, ao fim, retoma à poeta a vida humana, mas o caráter divino aqui se
enuncia como o dom da própria realidade.
O MINOTAURO : Aqui a poeta evoca o mito fundante da cultura minoica ou
cretense, no que temos : “Em Creta/Onde o Minotauro reina/Banhei-me no mar”
(...) “Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro/Na antiquíssima
juventude do dia”. A poeta aqui dança como numa festa cretense, enfeitada de
flores, no que segue : “De Creta/Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo
vivo das ervas/Para inteiramente acordada comungar a terra/De Creta/Beijei o
chão como Ulisses/Caminhei na luz nua”. Esta poeta que, diante da ruína de uma
civilização perdida, ainda mantém intacta a sua fúria, e segue : “Devastada era
eu própria como a cidade em ruína/Que ninguém reconstruiu/Mas no sol dos meus
pátios vazios/A fúria reina intacta”. Ela, então, se volta ao mar azul de
Creta, e o celebra : “E o mar de Creta por dentro é todo azul/Oferenda incrível
de primordial alegria/Onde o sombrio Minotauro navega”. Ali navega o Minotauro,
este que habitará o labirinto de Dédalo, no que vem : “Em Creta/Inteiramente
acordada atravessei o dia/E caminhei no interior dos palácios veementes e
vermelhos” (...) “Caminhei no palácio dual de combate e confronto/Onde o
Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais”. Aqui se descreve tanto a
vida como os objetos e muradas do cotidiano minoico, no que temos : “Em
Creta/Os muros de tijolo da cidade minoica/São feitos de barro amassado com
algas”. Qual um Teseu, segurando o seu fio de Ariadne, a poeta Sophia consegue
atravessar o seu próprio labirinto do Minotauro, e se vê diante de uma saída
proporcionada pelo fio de seus versos, no que temos : “Em Creta onde o
Minotauro reina atravessei a vaga/De olhos abertos inteiramente acordada/Sem
drogas e sem filtro/Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas -/Porque
pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto/Sem jamais perderem o fio de
linho da palavra”.
OS GREGOS : A poeta aqui descreve a cosmovisão dos gregos, no que temos
: “Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante/Consubstancial ao mar à
nuvem ao arvoredo à luz” (...) “O meandro do rio o fogo solene da montanha/E a
grande abóbada do ar sonoro e leve e livre/Emergiam em consciência que se
vê/Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia -/Esta existência
desejávamos para nós próprios homens/Por isso repetíamos os gestos rituais que
restabelecem/O estar-ser-inteiro inicial das coisas -/Isto nos tornou atentos a
todas as formas que a luz do sol conhece/E também à treva interior por que
somos habitados/E dentro da qual navega indicível o brilho”. Esta casa do ser
habitada por filósofos, antes cintilava numa clarividência sobrenatural
habitada por deuses, e o grego sempre diante deste seu olhar que busca a
origem, uma arqué.
CATARINA EUFÉMIA : A reflexão grega aqui é reconstituída pela poeta Sophia em
seu eixo temático sobre a justiça, no que temos : “O primeiro tema da reflexão
grega é a justiça/E eu penso nesse instante em que ficaste exposta” (...)
“Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres/Nem usaste de manobra ou de
calúnia/E não serviste apenas para chorar os mortos”. Esta entidade da justa
medida não recua e estabelece o seu reino, no que temos : “Tinha chegado o
tempo/Em que era preciso que alguém não recuasse/E a terra bebeu um sangue duas
vezes puro” (...) “Porque eras a mulher e não somente a fêmea/Eras a inocência
frontal que não recua/Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante/em
que morreste/E a busca da justiça continua”. Esta busca da justiça continua,
qual a luta de Antígona ou qualquer confronto que ameace este dom grego e de
vida humana, a justiça e seu reino.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/sophia-de-mello-breyner-e-seu-livro-dual