O estímulo para uma internet renovada, isto é, descentralizada, em livre concorrência, sem a concentração atual de poder financeiro e sobre a informação, por sua vez, pode abrir caminho para uma maior diversidade de serviços, com o desmembramento de alguns, como por exemplo os mecanismos de busca e as mídias sociais. Atualmente existem poucas provisões para bens públicos como navegadores e protocolos de internet, pois estes são subsidiados pelas big techs. Por sua vez, o chamado rewilding tem como objetivo retirar da alçada destas empresas a concentração de poder e propriedade sobre os meios da internet.
Uma das principais razões para uma internet descentralizada e desconcentrada, portanto, também está ligada a um custo verdadeiro pela conectividade, uma justiça para os usuários. Quer dizer que estaremos pagando diretamente ainda por alguns serviços, tais como a conectividade básica, e o que for de apoio indireto, como os navegadores, neste novo contexto tudo ocorrerá de forma transparente.
Diante dos fenômenos sociais de auto-organização, em que pessoas podiam se organizar espontaneamente para gerir recursos naturais, sobretudo por meios de cooperação, revela a capacidade existente deste tipo de avanço, pois a própria internet já possui uma auto-organização em uma função fundamental de sua estrutura, que é a coordenação de tráfego. Um exemplo de cooperação são os pontos de troca de Internet. Ao invés de empresas fecharem contratos individuais para o tráfego de seus dados, existem os IXPs, isto é, pontos de troca de internet, como uma forma de gerência de recursos comuns.
Ou seja, operadores de rede de todos os tipos precisam enviar grande quantidade de dados e, para economizar tempo e dinheiro, estes se juntam e formam estas IXPs, que funcionam como associações independentes e sem fins lucrativos, abrindo caminho para uma comunidade técnica que pode contribuir para o desenvolvimento econômico. Estas novas alternativas criam normas técnicas à gestão de recursos comuns, incluindo neste universo redes de banda larga mais localizadas, que são chamadas de “altnets”, e esta reconfiguração da internet já dispõe de ferramentas de ação coletiva prontas para serem implementadas.
Aqui temos dois movimentos para uma internet renovada e livre, que é, de um lado, estas iniciativas cooperadas de novas comunidades técnicas, e de outro lado, as medidas antitruste e pela livre concorrência, que é a outra frente de combate para tornar viável uma internet livre e resiliente, com alternativas saudáveis para seus usuários.
A necessidade de diversificação da internet está em vários setores, incluindo os sistemas operacionais, navegadores, mecanismos de pesquisa, mídias sociais, provedores de nuvem, lojas de aplicativos, empresas de IA, o Sistema de Nomes de Domínio, e também protocolos e até tubulações, etc. E as medidas antitruste entram como algo que pode provocar uma mudança estrutural ainda antes do rewilding, ou seja, as regulamentações podem ter um papel também importante para uma nova configuração da internet.
Em 2021 houve uma iniciativa nos Estados Unidos, pelo governo Biden, da chamada “Executive Order on Promoting Competition in the American Economy” (Ordem Executiva sobre a Promoção da Concorrência na Economia Americana), que restabeleceu uma urgência de equilíbrio de livre concorrência tal qual havia no início do século XX, da lei antitruste que desmembrou o monopólio crescente dos oligarcas do petróleo, do aço e das ferrovias que ameaçavam a democracia na época, junto a regras e enquadramentos que remontam ao período anterior ao New Deal de 1930.
Tais medidas de proteção à concorrência e aos trabalhadores foram descontinuadas com a ascensão de políticas econômicas ultraliberais a partir da década de 1970 sob a influência da Escola de Chicago, se consolidando com as decisões de juízes da era Reagan, em que um monopólio só poderia ser contestado e quebrado se este provocasse o aumento dos preços ao consumidor, inaugurando uma monocultura intelectual que ficou mais conhecida, já no período da globalização, como neoliberalismo.
Tais políticas econômicas permitiram a formação de oligopólios a partir das empresas de tecnologia que surgiram com o advento da internet. Uma vez que um dos critérios de mercado de quebra de monopólios era o de controle de preços ao consumidor, tais empresas passaram incólumes, pois ofereciam serviços gratuitos ou subsidiados por dados. A exploração de dados pessoais de usuários como um ativo destas empresas era um mecanismo indireto de lucro com o uso destas informações, o que driblava o conceito analógico de controle de preços ao consumidor.
Diante das consequências desta versão contemporânea de laissez-faire, que formou o oligopólio das big techs nesta era da internet de segunda geração, os reguladores que aplicam a lei em Washington e Bruxelas tentam evitar que isto se repita agora com o advento da IA. O trabalho agora é o de identificar pontos de estrangulamento na pilha de tecnologia de IA, tais como concentração no controle de chips de processamento, banco de dados, capacidade de computação, interfaces de usuários, plataformas de distribuição e inovação de algoritmos, no sentido de detectar se afetam a concorrência sistêmica.
No entendimento feito a partir da assinatura da ordem executiva sobre a concorrência em 2021, em substituição à visão estreita de preços ao consumidor, temos agora uma análise dos casos atuais de concentração como danos econômicos de empresas dominantes que incluem prejuízos aos trabalhadores, às pequenas empresas e ao mercado como um todo. Foram abandonados modelos estreitos de medição de comportamento de mercado em favor de uma concepção ampliada que se relaciona com o mundo real de profissionais de saúde, escritores e agricultores, lidando também com a ascensão do extremismo político de direita, sendo uma das consequências do bloqueio econômico de oportunidades.
As ações até agora são mais de evitar danos futuros do que exatamente um meio direito de quebra de monopólios e duopólios já consolidados. Exemplos recentes ocorreram a partir de análise feita pela FTC dos Estados Unidos e da Comissão Europeia, em que a Amazon abandonou seu plano de adquirir o fabricante de eletrodomésticos iRobot, e estes órgãos também agiram para impedir o uso feito pela Apple de seu domínio da plataforma do iPhone para sufocar a concorrência na loja de aplicativos e dominar mercados futuros.
Como dito, a ordem executiva de 2021 tem a limitação de se referir a ações futuras de domínio de mercado, o que pode evitar, por exemplo, a apropriação do espectro radioelétrico, mas nada pode fazer em relação às concentrações e monopólios já consumados. Contudo, sem uma ação mais ambiciosa, ou seja, que inclua uma aplicação da lei para desmontar domínios já existentes, este estado de coisas poderá durar por décadas.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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