PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

SAFO DE LESBOS


                                               
                                   I

   Safo de Lesbos nasceu de família aristocrática em Êresos, na costa ocidental da ilha de Lesbos (mar Egeu), em torno de 630 a .C. A poeta viveu numa cidade da costa oriental, a próspera Mitilene, onde teria morrido em cerca de 580 a .C. Seu nome figura desde seu tempo entre os expoentes da poesia grega e de um de seus gêneros mais importantes, a mélica ou lírica. Safo é o único nome feminino no conjunto de poetas da Grécia arcaica (c. 800-480 a .C). A mélica sáfica eram canções para performance ao som da lira, em solo ou em coro. A poesia da Grécia arcaica, e sáfica, por sua vez, fazem parte de um tipo de poesia de tradição oral. Safo, ao lado do poeta e guerreiro Alceu, são os primeiros poetas lésbios dos quais sobreviveram, para cada um, corpos de obra substanciosos. Na forte tradição poética lésbio-eólica figuram ainda os célebres citaredos Terpandro (séculos VIII-VII a .C.) e Árion (séculos VII-VI a .C), estes levaram suas práticas métrico-musicais para outros dois pólos culturais da era arcaica: Esparta e Corinto.
   À Terpandro era creditada a invenção da lira de sete cordas, o que é refutada ante as descobertas arqueológicas que indicam que tal instrumento já era conhecido no mundo minoico-micênico, que é o período que antecede a “Grécia histórica”. Árion, por sua vez, é dado como o poeta do ditirambo, canção de forte aspecto narrativo. Safo e Alceu, na mélica, por sua vez, são nomes notáveis. A mélica, canção destinada à performance, tanto em solo (o chamado simpósio), como em coral (nos festivais cívico-religiosos), acompanhado da lira (além de outros instrumentos), se insere na tradição oral que será chamada de “cultura da canção”. Tal poesia se revestirá, recitada ou cantada na performance, de ideias morais, políticas e sociais. Além disso, a lírica grega, uma vez que era ligada à comunidade de que fazia parte, não tinha o caráter intimista muitas vezes visto na poesia moderna, mas sim se apresentava numa situação de diálogo entre o performer e a audiência. O diálogo, por sua vez, marcou toda a tradição de poesia oral da Grécia, desde a épica homérica e seus poemas monumentais, a Ilíada e a Odisseia (onde havia uma divisão entre narrativa de ação e diálogo), como na lírica grega por todo o período arcaico e antigo.
   A oralidade da composição lírica se vale de estruturas e procedimentos estilísticos de caráter mnemônico, apesar de já haver o alfabeto grego, adaptação do fenício, que se disseminava desde o século IX a .C. A transcrição de tais poemas orais, portanto, não eram para salvaguardar o poema e torná-lo duradouro e famoso, pois a tradição oral fazia isto pela mnemônica, a escrita servia, então, apenas como transcrição de algo já bem estabelecido pela oralidade e que mantinha a sua tradição protegida pela memória, numa existência socialmente bem reconhecida.

                                    II

   A lírica, como nome tardio, deriva do modo de performance, é a referência moderna ao corpo de textos que não são nem poesia hexamétrica (como a épica), nem dramática (tragédia e comédia). Na era arcaica, o nome lírica servirá à mélica, à elegia e ao jambo. E a mélica, como lírica, era a identificação da canção para a lira, daí lírica. Não cabe aqui neste texto, no entanto, entrar no mérito da lírica em seu significado moderno. A composição dessa poesia antiga é pragmática, não serve à explosão da individualidade da lírica moderna, a poesia antiga, por ser oral, não se fixa em regras escritas, não há na poesia arcaica e clássica, leis fixas, tudo passa pela demanda da oralidade que confluirá no encontro entre o poeta e sua audiência. O conceito de literatura moderno, com sua preocupação pela originalidade e criatividade, não servem à análise da poesia dos antigos, uma vez que nesta (a poesia elegíaca, jâmbica e mélica da Grécia arcaica, sobretudo, e clássica) temos mais engenho e menos paixão, mais convenções e menos individualidade, a poesia antiga, essencialmente oral, está submetida à vida social da pólis grega arcaica, é composta, por ser oral, como discurso.
   Quanto à questão do acesso a esta poesia antiga pelos modernos, temos grandes e intransponíveis dificuldades, uma vez que só sobraram poucos fragmentos de tal período, no caso de Safo, uma que se salvou, mesmo assim só temos um poema completo dela, soma-se a isto a falta quase absoluta de conhecimento da biografia destes poetas, muitas vezes misturadas num amálgama de lendas e anedotários. A obra de Safo tem um fato curioso: ela se compõe, do que se achou, de apenas um poema completo, aproximadamente dez fragmentos substanciais, uma centena de citações breves de autores antigos e cerca de 50 peças de textos em papiro, que emergiram das areias do deserto egípcio. Pode-se falar então, não em obra de Safo, mas em fragmentos de Safo. Quanto aos outros poetas da lírica antiga, a poesia jâmbica, a elegíaca e a mélica, é similar ou pior do que o caso de Safo.
   A lírica grega, portanto, torna-se quase que totalmente inacessível, temos que esmiuçar os fragmentos para deles tirar um ínfimo néctar do que sobrou, e aí nos contentarmos com inumeráveis interpretações desses despojos que, modernamente, são quase inaudíveis, a oralidade antiga só sobrevive nos nossos tempos pela escrita presente em raros fragmentos. Portanto, aos que buscam Safo, por sua vez, restam os fragmentos, estes ainda pulsam vida, desafiam os que neles se debruçam, só não temos a própria Safo com sua lira, a parte material é o fragmento quase que totalmente destruído, resta aproveitar o que temos, e não se fundar tanto nas lendas que cercam o nome de Safo, a mulher, a lésbica, pois os mitos sempre rondaram as biografias, e os biografados nada puderam dizer de suas contradições, o que ocorre até hoje com os vivos, que dirá com os mortos de ontem e com os que desapareceram já há milênios.

                                     III

   Safo, vivente ainda numa Grécia da oralidade, onde a escrita não era ainda uma prática consolidada na produção artística, possui, no entanto, um corpus extenso: São cerca de 200 fragmentos, um dos quais uma canção completa, o “Hino a Afrodite”. Mas, Safo, embora não seja a única poetisa grega antiga, é a única do período arcaico. Safo pode muito bem ser considerada, então, como a primeira poetisa grega. Pois a questão de se os fragmentos de todos os poetas antigos que sobreviveram, revelam uma proeminência ou não necessariamente dos mesmos, em relação aos seus contemporâneos, não contradiz, contudo, o epíteto dado à Safo da poetisa que abriu caminho, numa poesia madura, para outras poetisas percorrerem, uma vez que da tradição Safo tirou, com sua poesia, ainda na sua época, uma grande reputação. Da poesia antiga, não temos nenhuma outra além de Safo com o tamanho dela, ninguém a superou, dentre as poetas mulheres, em sua época e também na Grécia clássica.
   Um fato curioso é que as poetisas que surgiram na era arcaica e clássica da Grécia eram das regiões de Lesbos, da Beócia e do Peloponeso, mas não da Ática, o que revela que nas outras três regiões temos uma posição diferente e mais livre da mulher do que na Ática. Na Ática ainda tínhamos, como em Atenas, o confinamento das mulheres ao oîkos (casa), espaço feminino por excelência na Grécia, enquanto Safo, por sua vez, recebera educação esmerada e pertencia à aristocracia. Na Ática, por exemplo, só era permitido às mulheres, suas saídas do confinamento em casos de ritos religioso-cultuais, contudo, elas não podiam ser vistas e nem ouvidas, a única esfera de ação civil permitida às mulheres áticas era a religiosa, na qual eram bem atuantes.
   A condição de mulher poeta, para Safo, que tem em suas canções uma temática onde predomina o erótico e o amoroso, e que tem no universo feminino a sua força, donde se tem tentativas de retirar de tais canções ilações biográficas possíveis, e donde se tem o mito de Safo ser lésbica, culminam na questão da sexualidade feminina e de seu exercício a partir da figura de Safo, que pretendem explicar a poesia e a vida de Safo, mas que não têm nenhuma credibilidade histórica. Contudo, livres desta necessidade da historicidade, podemos nos remeter aos relatos que se formaram pelo século IV a .C. em diante. Neles, temos uma Safo com um marido, uma filha, muitos irmãos, numerosas amigas e companheiras, com as quais, segundo alguns relatos, manteve relações sexuais, além de um incrível salto suicida de um penhasco.
   O que se sabe é que, nos diferentes períodos históricos que se sucederam, tivemos várias imagens de Safo, desde a idealização do período romântico no século XIX, que é tão fantasiosa quanto os relatos antigos, e uma variada gama de imagens que não passam de idealizações de desejos, uma vez que a idealização nunca se refere a dados objetivos, fazendo de sua fantasia a imagem que lhe convir, um sonho evanescente que carece de conhecimento consistente sobre quem foi realmente Safo. O problema nevrálgico dos “maus” biógrafos, como tentei fazer entender antes. Mas, contudo, a imagem que temos, certa ou errada, é a da Safo lésbica, o que é uma imagem que já não pode ser mais apagada, o mito se entronizou e os parcos registros históricos se calaram, por falta de material legítimo.
   O grande problema, no entanto, quando temos uma força do mito da Safo lésbica mais forte do que os seus próprios fragmentos, é que podemos estar num caminho de erro irreversível, uma vez que nada prova em favor ou contra, partindo de tais fragmentos objetivamente, que haja como saber, indubitavelmente, qualquer coisa da biografia de Safo senão fantasias de antigos, românticos e modernos, nada mais que isso. A partir de Aristófanes (séculos V-IV a .C.) e da comédia clássica, passamos a ter referências das mulheres de Lesbos e o uso dos verbos lesbiázein e lesbízein, (“agir como uma mulher de Lesbos”), que conotavam luxúria e lascívia, além da prática da felação, que as lésbias teriam inventado, mas nisto não há nenhum respaldo histórico. (Lésbia ou moça de Lesbos tinham a típica conotação de fellatrix e não de lésbica no sentido moderno do termo). Nada tem de provado, mas, sabe-se, desde a Ilíada, da fama de mulheres belas e sensuais da ilha de Lesbos, o que pode ter dado motivos para tais fantasias do período clássico e depois na modernidade, lembrando que o termo lésbica é moderno, do final do século XIX, como resultado de uma polêmica acadêmica em torno da sexualidade de Safo. E esta, se Safo era lésbica ou não, se tornou, infelizmente, a grande questão sáfica, e não a sua poesia. Na verdade, o que temos de dados da questão sáfica, além de seus fragmentos, é um emaranhado de assunções que vêm desde comédias gregas, até romances italianos, culminando em pornografia francesa.
   Nos fragmentos de Safo, a linguagem em que se apresentam imagens de paixão erótica, é uma característica comum a vários poetas gregos, tais como Hesíodo (c.700 a .C.), Arquíloco (c. 680-640 a .C.), Íbico (c. 550 a .C.) e Eurípides (c. 482-406 a .C.). Tal movimento erótico se reveste sob uma prática genérica de composição oral que se consolida em percepções mantidas pela repetição que se fundam na tradição. Portanto, ao falar de éros numa linguagem tradicional, Safo reflete nada mais que as práticas poéticas de seu tempo e de seu lugar histórico, pois a linguagem e as imagens que Safo usa ao tematizar a paixão, são as mesmas que encontramos em Arquíloco, e em outros poetas, antes e depois dela.

                                IV

   Como dito anteriormente, a poesia de Safo se encaixa no chamado à época gênero mélico, que se liga à canção, que era nada mais que a performance ao som da lira, o termo lírica, tardio, é datado do período helenístico (c.323-31 a .C.) em diante. Mélica ou lírica designava o verso que era cantado para a música e a dança, com mélos sendo, na literatura grega arcaica, o poema lírico, e o poeta, o melopoiós, o “fazedor de canções”. Na performance a canção podia ser entoada em solo e com acompanhamento da lira, ou em coro, com a inclusão de outros instrumentos e da dança, tendo então um espetáculo.
   Na métrica, a composição da mélica dá-se em estrofes de pés mistos, mais breves e menos complexas na modalidade monódica do que na coral. Sendo que a canção monódica comportava uma variedade de temas, que iam da vida cotidiana da pólis a eventos de um passado recente,  tudo em relação direta com a voz poética; enquanto que no coral tinha-se subgêneros como a celebração, a narrativa mítica e o canto de autorreferência à performance em execução pelo coro. O que fica claro é que a poesia mélica ou lírica grega arcaica era sempre vinculada à voz, uma vez que era na canção e na música que tal poesia se realizava, havendo aí, fundamentalmente, a interação geral entre o poeta, sujeito da enunciação, e seus destinatários, provocando um efeito lírico e estético que nós, modernos, não podemos imaginar, uma vez que só o espólio escrito deste período é o que resta para as análises e interpretações modernas.
   Recompondo minimamente o cenário, haveria para a canção solo várias audiências e ocasiões de performance possíveis, destacando-se o simpósio, central também para gêneros como a elegia e o jambo. O simpósio foi, por sua vez, no mundo grego, até o século V a .C., em que não estava previsto “um público de leitores”, o lugar de conservação e evolução da cultura “literária” relativa a temas alternativos ao ecumênico do epos e à ambientação pública do canto religioso oficial e da lírica agonística (temas que eram muito trabalhados na elegia, no jambo e na mélica monódica). O simpósio tinha como característica a expressão do modo de vida aristocrático dos homens na pólis, regido por um código rígido de honra, onde o beber era privilegiado e ritualizado, e onde em meio a essa fase, tinha lugar a performance, sendo então o simpósio, fundamental na difusão e preservação da poesia mélica ou lírica.
   Relaxados, bebendo vinho, os gregos ouviam e cantavam e/ou recitavam elegias, trechos de poemas homéricos, além da mélica, numa competição de habilidades entre aristocratas, tornando-se o simpósio uma ocasião adequada ao caráter informal e privado da mélica monódica. E tal simpósio de mélica monódica se dividia em dois estilos: erótico, dirigido aos membros do simpósio; e o de invectiva, dirigido aos que estão fora do simpósio. O simpósio, então, era voltado ao mundo privado, menos formal e oficial que o festival próprio à performance da canção coral.
   Em Safo, vendo seus fragmentos, encontramos em sua maioria a mélica monódica, contando também com um fragmento de lírica narrativa de caráter épico, além de pequenos fragmentos de mélica coral de tradição popular (os epitalâmios ou canções de casamento). A canção coral tinha a característica de ser uma performance em festival cívico-religioso, patrocinado pelos governos e aristocratas das cidades gregas, onde se tinha lugar o agón (competição) poético para cada gênero, com o poeta como compositor das palavras e da música, em que o humano e o divino eram celebrados e cantados, podendo, em outras ocasiões mais particulares, o coro conduzir grandes funerais ou grandes bodas, tendo em comum todos estes três tipos de coro o caráter solene e religioso, numa linguagem elevada, com forte traço mítico, no canto autorreferente do coro, e nas máximas éticas e morais que reafirmam os valores da comunidade.
   As composições de Safo, por sua vez, são fundamentalmente canções, fragmentos que demonstram que a melodia antiga era serva das palavras, numa obediência à pronúncia quantitativa da fala, sendo a poesia grega, então, não orientada por uma escansão dos versos por acento, mas por duração breve ou longa de pronúncia da sílaba, o que confere uma sonoridade bem ritmada.
   E, quando pensamos na mélica grega, voltamos às suas origens pré-literárias, como os cantos de culto aos deuses, de lamento ou de celebração de vida e morte, cantos que acompanhavam os trabalhos, como na colheita de uva. Portanto, a mélica tem profundas raízes populares, refletindo toda uma tradição.
   Quanto ao “Eu poético”, trata-se de lembrar que, ao contrário da poesia moderna, em que pode haver ou não relação da primeira pessoa do verso e um eu do poeta empírico que insere algo de sua biografia nos seus poemas, não podemos elucidar com precisão esta questão no que se refere à poesia grega antiga, pois neste caso temos o caráter de performance de tais poemas, e que uma vez direcionados a uma audiência, e na entoação da voz com métrica, pode ser que haja uma grande despersonalização do poeta antigo que está mais vinculado às tradições e sua mnemônica do que a um eu biografado em tais poemas, sem falar nas exigências do canto, do metro e do diálogo, que foram enumerados anteriormente.

    HINO A AFRODITE

   O “Hino a Afrodite” é não só a mais famosa canção de Safo, mas a única integralmente preservada no tratado Sobre o arranjo das palavras, de Dionísio de Halicarnasso (retórico, século I a .C.) , além de ser a primeira canção do livro I de Safo, compilado na célebre Biblioteca de Alexandria, provavelmente na virada dos séculos III-II a .C. . Segue o poema traduzido:

                        De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite,
                        filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:
                        não me domes com angústias e náuseas,
                        veneranda, o coração,

                        mas para cá vem, se já outrora –
                        a minha voz ouvindo de longe – me
                        atendeste, e de teu pai deixando a casa
                        áurea a carruagem

                        atrelando vieste. E belos te conduziram
                        velozes pardais em torno da terra negra –
                        rápidas asas turbilhonando, céu abaixo e
                         pelo meio do éter.

                         De pronto chegaram. E tu, ó venturosa,
                         sorrindo em tua imortal face,
                         indagaste por que de novo sofro e por que
                         de novo te invoco,

                         e o que mais quero que me aconteça em meu
                         desvairado coração. “Quem de novo devo
                                                                                          [persuadir
                          (?) ao teu amor? Quem, ó
                          Safo, te maltrata?

                           Pois se ela foge, logo perseguirá;
                           e se presentes não aceita, em troca os dará;
                           e se não ama, logo amará,
                           mesmo que não queira.”

                           Vem até mim também agora, e liberta-me dos
                           duros pesares, e tudo o que cumprir meu
                           coração deseja, cumpre; e tu mesma,
                           sê minha aliada de lutas.

Bibliografia:

Safo de Lesbos, Hino a Afrodite e Outros Poemas, Editora Hedra.
(texto baseado na Introdução de Giuliana Ragusa)

30/05/2012 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
       


 
 
         

SOBRE A COMISSÃO DA VERDADE


   Finalmente, depois de 27 anos de regime democrático no Brasil, foi estabelecida a Comissão da Verdade, que chegou com atraso, se comparada às comissões de outros países do Cone Sul. As questões desta comissão terão caráter de colher informações até agora ocultadas nos recônditos dos arquivos da ditadura. Ou seja, não terá caráter punitivo, uma vez que isto pode ser atribuição do Poder Judiciário e não da comissão.
   Dilma deu posse aos sete integrantes da Comissão da Verdade: Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ); José Carlos Dias, advogado e ex-ministro da Justiça; Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada; Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República; Paulo Sérgio Pinheiro, sociólogo; Maria Rita Kehl, psicanalista; e José Paulo Cavalcanti Filho, advogado. Com a instalação da comissão, os sete integrantes terão dois anos para apresentar um relatório com a narrativa e as conclusões sobre os crimes cometidos.
   A Comissão da Verdade vai apurar violações aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar. O que fica claro, de antemão, é que o espaço exíguo de dois anos para o trabalho da comissão é insuficiente para a abrangência de anos que envolve seu trabalho, o que obrigará a comissão a se concentrar nos anos de chumbo, deixando um pouco de lado períodos de democracia breve como a dos anos 50. Não há tempo a perder, e a comissão, certamente, não concluirá efetivamente o exame de todas as nuances de informações, pois provavelmente não existem mais alguns documentos nos arquivos da ditadura, pois muitos devem ter sido queimados, fica, portanto, a esperança de novos achados que esclareçam, com um mínimo de sorte, alguma parte desta nossa História escondida.
   O coordenador da Comissão da Verdade, Gilson Dipp, disse que a prioridade inicial do grupo é trabalhar em conjunto com outras duas comissões já existentes e que tratam de crimes cometidos durante a ditadura, são estas: a Comissão de Anistia, criada em 1995; e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 2002. Haverá um “intercruzamento de acervos” entre os colegiados da Comissão de Anistia (que tem o maior acervo de vítimas da ditadura do país, com 70 mil processos de pedido de anistia) e a Comissão da Verdade. O acervo da Comissão de Anistia contém uma gama vasta de informações que podem ser aproveitadas pela Comissão da Verdade para a geração de relatórios.
   Gilson Dipp disse que a comissão é independente e que não recebeu nenhuma orientação do governo sobre o foco das investigações. É bom que fique claro que a Comissão da Verdade é uma comissão de Estado, isto é, envolve uma política de Estado e não de governo e, portanto, não se subordina a ninguém. O governo, por conseguinte, não participará das reuniões, sua presença será apenas no que deve a questões administrativas. A participação do Ministério da Justiça, por exemplo, será apenas no sentido de suporte para o trabalho da comissão, mas não haverá, de forma alguma, interferência na direção destes trabalhos e na elaboração da investigação, cabendo aos membros da comissão, total autonomia na condução da mesma.
   A presidenta Dilma Rousseff afirmou em solenidade no Palácio do Planalto, que a instalação da Comissão da Verdade não é motivada por “ódio”, “revanchismo” ou “desejo de reescrever a história”. Aprovada no Senado, em outubro de 2011, a Comissão da Verdade, surge agora, junto com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de reconhecer a constitucionalidade da Lei de Anistia, decisão que veio no rastro da recusa da Câmara de revisar essa mesma lei. Cabe lembrar, contudo, que a Lei de Anistia, em vigor desde 1979, foi aprovada num regime de exceção, não havia democracia, então a validade da lei pode ser questionada a todo momento, embora o STF e a Câmara tenham dado poder ao prolongamento da validade da Lei de Anistia, ela poderá ser revista novamente ao fim dos trabalhos da Comissão da Verdade, dependendo isto, de forma imprescindível, dos resultados apresentados por esta mesma comissão que, a saber da gravidade das descobertas, poderá provocar uma reação do Judiciário para punir os verdugos da ditadura, uma vez que a comissão não tem poder para tanto e nem deveria, pois o conceito de comissões desta natureza não são de punibilidade, mas de esclarecimento da História.
   Nomeado para assessorar a Comissão da Verdade, Wagner Gonçalves defende que o Ministério Público (MP) proponha ações contra responsáveis por crimes ocorridos durante a ditadura. Os procuradores da República não deveriam ter medo de propor ações contra torturadores, pois a tortura não é um simples delito político, como a Lei de Anistia quer fazer acreditar, mas sim crime de lesa-humanidade, que vai de encontro aos direitos humanos. O fato de muitos questionarem que há o tal dos “dois lados” na questão é um argumento fraco, que não condiz com os fatos e seus significados, uma vez que houve uma política de Estado com poder policial apoiando a tortura, e o outro lado, o dos guerrilheiros, muitas vezes chamados de terroristas, já foram punidos pelo Estado à época, cabendo agora à democracia o esclarecimento do lado que ainda não foi punido, que é o lado dos torturadores, agentes de Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos, uma vez que a Lei de Anistia, embora julgada constitucional, é considerada irregular pelo Tribunal Interamericano de Diretos Humanos da OEA (Organização de Estados Americanos), do qual o Brasil é signatário. O Brasil avança na política de memória, verdade e reparação, e deixa a desejar na questão da impunidade dos torturadores.
   Paulo Sérgio Pinheiro, comissário da ONU, e um dos nomeados para a Comissão da Verdade no Brasil, afirma: “Não é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário.” O jurista diz que a Lei de Anistia de 1979, que até hoje impediu a punição de agentes do Estado envolvidos em crimes da ditadura, é um “fato” que a comissão não tem mandato para questionar. A comissão, portanto, fará um relatório, cabendo às instituições responsáveis, o encaminhamento desses documentos e seus possíveis desdobramentos, um deles, o caráter punitivo aos torturadores que depende de uma reavaliação realmente séria e democrática da Lei de Anistia. E o Brasil, por conseguinte, pode aproveitar a experiência acumulada por outras nações em suas Comissões da Verdade para aprimorar este trabalho em nosso país.
   Embora atrasada 27 anos, desde a redemocratização do país, a Comissão da Verdade pode se aproveitar também do trabalho feito pelas outras duas comissões: a de Anistia, como dito no início deste artigo, e a de Mortos e Desaparecidos, pois muito trabalho já foi feito por ambas as comissões, já que muitos arquivos já foram abertos e muita informação já foi reunida. Contudo, estamos bem atrasados no que diz respeito a lidar com crimes contra os direitos humanos de regimes autoritários.
   E quanto à lentidão da criação da Comissão, comparada a outros países da América Latina, é bom que fique claro que em tais países o estabelecimento de suas Comissões da Verdade não foi um processo fácil. No caso da Argentina, por exemplo, desde o governo de Raúl Alfonsín, houve vários avanços e recuos. Mas o Brasil fica bem atrás de seus vizinhos quando se trata de punir autoridades responsáveis por torturas e assassinatos. O Brasil, embora uma potência emergente da América Latina e a quarta maior democracia do mundo, ainda fica atrás no processo de autoridades que cometeram crimes de lesa-humanidade. Enquanto países como Argentina, Uruguai e Chile aplicaram penas pesadas a militares que cometeram crimes, e até revogaram leis de anistia, o STF (Supremo Tribunal Federal) prolonga a Lei de Anistia de 1979 que, por sua vez, vai de encontro a tratados internacionais assinados pelo próprio Brasil. É uma contradição que deve ser resolvida com o auxílio das instituições competentes que tenham poder punitivo, uma vez que, ao fim dos trabalhos da Comissão da Verdade aqui no Brasil, teremos que ter, de acordo com os resultados obtidos, um extenso debate quanto à Lei de Anistia e sua validade, podendo haver novas votações no Congresso, ou, se for o caso, um referendo sobre a validade da lei, ou ainda, o simples respeito da Constituição Federal Brasileira aos tratados internacionais.

30/05/2012 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.  

segunda-feira, 28 de maio de 2012

VERDES CAMPOS

Quando passeio por verdes campos,
vejo a luz do dia,
esqueço da vida de tribulação,
faço poemas e vivo em canções.

Quando passeio por verdes campos,
toda a miséria se apaga,
tudo ou nada não importam,
eu tenho a certeza
de estar livre.

Liberdade, alma dourada,
leveza dos clarins,
flauta doce
da imaginação.

Liberdade, teu poema é saudade,
tua cor o meu amor,
teu segredo o meu enredo.

Se vivo cantando,
na nuvem andando,
é porque não sei
estar sempre triste,
os verdes campos
me regeneram,
e na relva o amor
deixa de ser mistério.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)


CANTILENA IGNOTA

Entre os lapônios,
versos lacônicos.
Da acrimônia ao jactar-se
dos ideais,
faço de um lema
o mantra
do apedeuta.

Com vincos, fortes tempestades,
faço as minhas vontades.

E a desídia, firme sopro,
mar do desgosto,
finca em terra ignota
as cantilenas
da moda.

Vou falar do nada,
e lançar no mundo nu,
um pássaro vertical
que voa no horizonte.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

NASCIDO DA TERRA

Partindo das delícias desconhecidas,
faz do jazigo noite imberbe,
de minha malsã juventude,
ida de dias simplórios,
com vícios venenosos
no campo sem lar.

Hoje, malquisto poema,
faço um emblema,
rocio na nervura da flor,
sal que vindo de longe,
mantém o vigor
do insumo
que é verso.

Vaga no solstício,
relembra a doçura
na boca do mundo,
e faz do cu da terra
o nascedouro
da poesia.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

NOBREZA DO ESTRO

Dei uma lancetada
em um poetaço.
Meu carmim e meu aço,
faz do vinho devasso,
o melhor das coisas
na vindima
sem salário.

Cortês, naufragado,
degredado ao desagrado
do rei em segredo.
Degradado ao esparso
da relva no vil
e mau.

Sente, de uma flechada,
o veneno da infinitude,
como um canto amiúde,
nas vísceras
vertidas
sobre o chão
do estro.

Faz, numa languidão,
lancetadas,
maçadas,
versos de fadas.
E como um nobre,
versifica
uma revoada.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

A LASSIDÃO DO ÓPIO

A caterva, plenilúnio
vagaroso, gosto insosso
de bruma,
vaga sentimental
de vinho,
exumação sentida
no cibório,
mergulha dentro
da taça,
faz a devassa
no meio do caminho,
sem pedra ou gema
ou qualquer
destino.

Tens, de modo austero,
poemas fincados
às dores incessantes.

Vês, como um bom burguês,
teus olhos marejados
de torpor,
rezando na praia
por um golpe mortal,
e na vida boêmia,
sentes o escárnio
da alma revirada
dos ópios
e da lassidão.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

A TEMPESTADE IDEAL

Como o sino, que toca
à hora maldita,
pressinto o ígneo sintoma,
malfadada hora da partida.

Como o grito, insone,
terrível é a noite armada,
a face nua,
a palavra dada.

E, desmedido, ciumento,
corre o meu coração
como um vulto na chuva,
procurando a tempestade
ideal.

O jogral, no patíbulo,
serve à maestria
dos versos,
como um belo corvo
de voo milenar
nos ares,
mordido
por um mendaz
fanfarrão.

27/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

domingo, 27 de maio de 2012

O AR FRIO

Inverno, soldado morto,
enfurecido o seu frio
sem pena ao morticínio.

O tirocínio era simples,
fumar as ervas
para sonhar
a poesia,
gerar no florido delírio
ar de frios
que não são
além de mais
nada,
criaturas
do gelo.

Eu, sentindo a bruma
cair sobre minhas armas,
tornei-me refém
sob o sol rúbido
do outono.

Fizeram do coração soluçante,
uma dor enervante
de um rio caudaloso
que tem na foz
sua amplidão
que dissolve
no infinito
dos oceanos.

26/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

O MAR TROPICAL

Rochas no mármore,
em sonho, qual sangria,
pus-me a chorar
de claustro e fibras.

A nave, desorientada,
renascia sob o céu
antigo.
O mar, sedento de sal,
salgava a plenitude,
e a montanha, à beira
do sol,
emoldurava a pintura
de classe mortal.

Os tempos, recôncavos de vales,
entumesciam em festa pagã,
os parques e seus avelãs
exultavam da vinha nascida,
e o olor de sândalo
abria o olho místico
da fera que dormitava.

Virei a noite pelo inteiro poema,
fiz da semente ouropel
em folguedo.

As cores vivas
eram vívidas
de verão quente
no trópico e no mar.

26/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)