PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

CARTAS A UM JOVEM POETA

“Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.”
   René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke nasceu em Praga, ainda no antigo e extinto Império Austro-Húngaro, em 4 de dezembro de 1875. Dentre seus escritos, podemos destacar os do período a partir de outubro de 1911, no qual Rilke passa alguns meses no castelo Duíno, perto de Trieste. Neste castelo Rilke escreve Elegias de Duíno e A Vida de Maria. Outro destaque fica para quando ele esteve na Suíça, em 1897, recuperando sua inspiração, de onde é gerado, num período de intensa criatividade artística, o livro Sonetos a Orfeu, considerado a face culminante de sua obra poética. Aqui no Brasil, sua obra foi relativamente reconhecida, abrangendo dois períodos distintos, um mais metafísico, e outro mais ligado às realidades mais palpáveis. Com a nossa Geração de 45 adotando-o como uma referência, o que criou uma espécie de “rilkeanismo” em língua portuguesa.
   Além de ter sido um dos grandes poetas do século XX, Rilke também escreveu textos importantes em prosa, incluindo aí seu único romance, Os cadernos de Malte Laurids Brigge. E na sua prosa podemos destacar, ainda, suas cartas, de alto teor poético, donde se tem a conhecida compilação póstuma que vou citar aqui nesta resenha, o Cartas a um Jovem Poeta. Neste livro a beleza da prosa de Rilke e a riqueza de seu pensamento se revelam, nos dando um panorama sucinto, embora amplo de significados, do fazer da poesia, de como podemos interagir entre limitações e exercícios que passam sobretudo pelo conhecimento do mundo e do conhecimento da própria alma para empreender tal tarefa.
   Cartas a um Jovem Poeta são escritos, cartas, destinadas ao jovem Franz Xaver Kappus, que as publicou em 1929, três anos depois da morte de Rilke. As ponderações de Rilke passam além da dimensão pessoal. Pois, ao se dirigir para o jovem aspirante a poeta, Rilke não faz crítica, ele simplesmente fala da vida, e é nesta chave de compreensão que o jovem Kappus é levado ao sentido de jornada que envolve a vida em geral e a vida do poeta.
   Não existe, nestas cartas de Rilke, qualquer sinal de crítica literária, a qual o próprio, neste livro, tece algumas negativas, e coloca a perspectiva do fazer poético dentro da sua realidade, que é, sobretudo, uma aventura da alma, sem grandes conceitos, apenas com a educação do olhar sensível e de uma qualidade da atenção que só são adquiridas com o tempo, incluindo aí estes exercícios de versificação, da qual estas cartas têm como tema transversal e central ao mesmo tempo.
   No começo da análise de Rilke sobre os escritos (versos) do jovem Kappus, ele tece a seguinte observação: “posso lhe dizer ainda que seus versos não possuem uma forma própria, mas apenas indicações silenciosas e veladas de personalidade.” Quer dizer, Rilke dá atenção ao jovem sobre sua libertação de formas viciadas ou miméticas, donde se tem o sentido da observação como uma orientação para o jovem ganhar propriedade sobre seu exercício, ou seja, a personalidade é o reforço necessário de quando a escrita ou verso denuncia (positivamente) seu “fazedor”, e isto não nasce por mágica ou força, mas por detimento e persistência, entendendo-se que a personalização não é o ego propriamente dito, pois se a vaidade é mola mestra não se tem a propriedade justa, que é mais que ego, é a fusão do autor com sua obra, a propriedade passa por se tornar um só no seu exercício, e a unidade estabelecida é o ponto de inflexão que leva o poeta da tentativa para um certo taoísmo de suas faculdades, aonde já não se tem separação entre autor e escrita.
   Digo que esta apropriação e personalidade nascem da inflexão que o poeta realiza ao se tornar a própria feitura a que se propõe. Daí que Rilke arremata: “Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever, comprove se ele se estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever.”
   Em seguida, Rilke recomenda ao jovem poeta a leitura de Jens Peter Jacobsen, dizendo: “Um mundo se abrirá para o senhor, a felicidade, a riqueza, a grandeza inconcebível de um mundo.” Logo adiante, em outra resposta ao jovem poeta, adverte: “Leia o mínimo possível de textos críticos e estéticos.” Aqui, Rilke reforça sua visão negativa da crítica literária e desta cara área da Filosofia denominada Estética.   
   Ou seja, Rilke tem como precioso o olhar treinado pelo coração, coisa que ele julga ausente no jogo de palavras de críticos e analistas estéticos, o que lhe dá razão em parte, pois é bom saber que há uma necessidade de se criar uma base crítica e analítica da literatura e da arte, mas não desfaz a posição de Rilke e seu sentido: para o artista ou poeta, quando se depara com o seu próprio trabalho e pensamento, isto é mais importante que as pontuações e ponderações infinitas de pensadores e críticos alienados do mundo interior do artista, este é o sentido de sua negativa quanto à crítica literária e a ciência da Estética.
   Rilke, então, segue nas suas respostas ao jovem poeta: “A ideia de ser um criador, de gerar, de formar, não é nada sem a sua contínua e grandiosa confirmação e realização no mundo, nada sem o consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos animais.” Rilke indica ao jovem poeta, aqui, uma educação do olhar, o que passa por entender intuitivamente as coisas do mundo, o que não é uma faculdade somente da razão ou de filósofos, pois cabe ao artista dar uma especial carga de percepção a tudo que o cerca, desenvolvendo sua intuição ao paroxismo e colhendo seus frutos ao ter na atenção total de sentidos, razão, sentimentos, emoções e fé, como a unidade de seu corpo e alma com o mundo exterior e interior.
   A ideia de fusão e unidade passam mais uma vez aqui como algo que reúne toda a percepção da realidade além de seus termos ordinários, mas que, embora seja uma ultrapassagem do olhar comum, justamente por isso tem que estar não só na metafísica extraordinária, mas sobretudo no mínimo, no ínfimo, em que o macrocosmo também está contido, numa visão do coração monadológica e tântrica em que as conexões entre todas as coisas do mundo estão prenhes e juntam o ínfimo com o indizível e inefável.
   Rilke também dá atenção à ideia de solidão, lugar não de angústia, mas de construção, em que o artista se coloca inteiro para si mesmo, e somente assim suas faculdades mentais são liberadas para o exercício criativo. O estar cercado de pessoas faz bem ao coração, mas o difícil trabalho de auto-análise passa pelo isolamento eventual, em que a alma toma para si sua própria tarefa de entender a vida mais profunda que mora nos recônditos da vasta floresta que é alma humana. Donde se tem que a experiência coletiva é uma educação social, importantíssima para educar o olhar ao mundo, mas, de outro lado, a solidão saudável coloca o artista em contato com seu íntimo, na sua construção de sentido mais radical, com os frutos de sua alma.
   E já com sua base de estudo da própria alma, isto faz o poeta ou artista retornar triunfante ao mundo social, já tendo registrado certos códigos e segredos das condutas e convicções que cercam este mundo coletivo e social. Rilke diz: “a sua solidão será um pouso e um lar, mesmo em meio a relações muito hostis, e a partir dela o senhor encontrará os seus caminhos.” E conclui: “Pense, meu caro, no mundo que o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser.”
   Rilke também dá atenção ao tema do amor, e diz: “as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor.” Rilke diz que quem se lança à aventura amorosa antes da hora certa coloca-se como vítima de convenções. A educação amorosa demanda tempo, e para Rilke o jovem ainda tem que trocar seu ímpeto apaixonado por uma análise detida de si mesmo, para que mais à frente ele poupe energia e sofrimento, entrando no amor maduro, sem a convenção forçada de tiques sociais que se perdem numa paixão falsa ou numa pose vazia. O amor demanda tempo, e os sortudos são os que amadurecem antes de tudo, e então se colocam com sua alma inteira ao serviço amoroso, sem os desgostos e contratempos da alma devotada às convenções que são, para Rilke, desastrosas, infrutíferas, e que se exaurem sem nem mesmo nascerem. Daí que Rilke diz: “Mas se perseverarmos e assumimos esse amor como uma carga e um período de aprendizado, em vez de nos perdermos em todo jogo fácil e frívolo atrás do qual as pessoas se esconderam das mais séria gravidade de sua existência, talvez se perceba um pequeno avanço.”
   Numa reflexão sobre a tristeza, Rilke afirma: “É por isso que a tristeza também passa: o novo em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, alcançou seu recanto mais íntimo e mesmo ali ele já não está mais – está no sangue.” Neste ponto, Rilke dá importância ao renascimento da alma, o período de tristeza é um tipo de educação da alma para que ela renasça renovada, com sua percepção já amadurecida de suas próprias armadilhas, de como este momento pode ser ardiloso e quase incontornável, mas que é um anúncio de uma aurora indestrutível, na qual o artista renasce para si mesmo, cônscio de que há várias emboscadas do sentimento e da emoção. Mas, a esta altura, a sua experiência se torna fé, e neste estágio da existência o artista ou poeta já não tem receio de suas fontes, sabe manejá-las com a sabedoria de quem viveu o céu e o inferno, e saiu vivo e forte, com a plenitude de autoconhecimento que toda arte e poesia exigem, com a consciência de seu serviço artístico fortalecida pela noção nascida de tais experiências de saúde e enfermidade. O poeta agora ganha a tal propriedade de que Rilke falou no início ao jovem poeta de suas cartas. E Rilke então se dirige ao seu interlocutor com a convicção de sua experiência: “O futuro permanece firme, caro senhor Kappus, mas nós nos movemos no espaço infinito.”
   Rilke continua sua exposição: “Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance, tudo, mesmo o inaudito, tem de ser possível nela.” E é aí que mora a chave da poesia: tornar conhecidas as coisas que nos são desconhecidas, a poesia é a linguagem do impossível, é o modo de conhecer mais eficiente do indizível, o dizer da poesia flerta e mergulha no inaudito, é com este enigma que o poeta se dá com a intimidade de um estudioso graduado, entendendo a vida a partir de suas descobertas neste terreno em que o verso aponta para além, no mundo sonhado e no mundo real, mas que está prenhe, tanto o sonho como a realidade, de um fundo delirante em que as coisas todas ganham brilho e sentido unívocos, a síntese e a fusão são as alucinações preferidas do poeta.
   Rilke então coloca, finalmente, a relação do poeta ou artista com o mundo: “Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores, caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós, caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los.” Rilke dá ao jovem poeta uma coordenada fundamental: os segredos que estão por trás da existência podem ser também terrores e perturbações que, independente da postura de terceiros ou do próprio mundo, é você mesmo que tem que dar conta e administrá-los.
   A loucura do mundo, apesar de tudo, não é maior do que as nossas loucuras. Abismos geralmente se encontram para quem olha muito para eles. Sabendo educar o olhar para a sua própria construção, com todas as emboscadas da jornada, isto fará de você uma fortaleza, já conhecendo todos os abismos possíveis e impossíveis da vida humana, e sabendo-os, poderá amá-los, mas sem olhá-los imprudentemente. Cabe ao poeta não tentar dar conta da loucura ou irresponsabilidade de seu semelhante, mas controlar os seus próprios abismos, deixando a queda do vale para os que nele se comprazem. Lembrando que os terrores são de quem os cria, assim como Buda disse que a mente é que está em si, e o mundo não tem culpa, o inferno são os outros, como disse Sartre, mas não é da sua conta. Então Rilke diz ao jovem poeta: “Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.” Ou seja, tudo o que acontece é o sentido todo no qual se fiar, não há nada mais que isso.
   Já nas últimas cartas, Rilke dá mais uma dica ao jovem poeta, aqui no tema do uso da própria inteligência: “Sua tendência para a dúvida pode se tornar uma boa qualidade se o senhor a educar. Ela precisa se tornar saber, precisa se tornar crítica.” Quer dizer, todo jovem tem mais dúvidas que saber, e de certa maneira, quando este avança no conhecimento, tem uma sensação de grande alívio.
   Ou seja, das dúvidas nasce a vontade de saber, e a alma inquieta e angustiada da dúvida vai se firmando através do conhecimento que adquire, e então passa a ter saber e crítica. Suas dúvidas ainda existem, mas se tornaram menos cruéis e perturbadoras. E o manejo de todo o mistério, depois do alcance de certa nobreza de caráter, de um fundo suficiente de bases cognitivas, de massa crítica como uma percepção refinada de todos os termos da conversa, colocam o jovem indagador num novo patamar, pois da sabedoria nasce então o estar no mistério da vida, com a propriedade tão forte da qual Rilke advertiu o jovem poeta em uma de suas primeiras cartas. Isto é, o conhecimento é grande alívio e lenitivo para as almas indagadoras. E este trabalho é individual. O incremento do ser vem da dedicação. E a habilidade na poesia vem desta mesma tarefa do conhecimento de forma positiva, como um efeito da colheita.
   Rilke, então, encerra seu pensamento, nas cartas, com mais dois apontamentos: “O fato de nos encontrarmos em situações que trabalham em nós, que de tempos em tempos nos põem diante de grandes coisas da natureza, é tudo que se faz necessário.” E segue: “também a arte é apenas um modo de viver, e é possível se preparar para ela sem saber, vivendo de uma maneira ou de outra.”
   Então, o estado do pensamento do artista ou do poeta não é exatamente ele que controla. O estar-no-mundo se tece de maneira autônoma da vontade do artista ou poeta. As situações que se criam, normalmente, estão fora de seu controle. O verdadeiro artista e poeta é um servidor das parcas do destino. Entra na arte sem saber, de forma inocente, até mambembe, mas sua fortuna vem avassaladoramente num átimo, quando esta arte se ilumina de inspiração universal, e o trabalho poético vira algo maior que tudo.
   Ou seja, as situações trabalham em nós enquanto fazemos as coisas. E o espetáculo da natureza se abre para quem aprende a ver. O véu de Ísis vira ao avesso, e os olhos estão na fortuna para sempre. E aí Rilke coloca a arte como um modo de vida, mas que nasce da espontaneidade das escolhas, que ainda são, querendo ou não, instituto das parcas tramando secretamente suas dádivas e castigos.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/19512/14/cartas-a-um-jovem-poeta

domingo, 26 de outubro de 2014

O AMOR EM FEDRO DE PLATÃO

"Quando contempla o seu amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre''

Lísias faz seu discurso sobre o amor diferenciando os amantes apaixonados dos que não amam ou que não estão apaixonados. Seu discurso será acusado depois por Sócrates como falso ou obra artificial de retórica. Mas, para definir tal discurso de Lísias, é preciso levar em conta seu ponto principal: Lísias, com o seu discurso sobre o amor, diz que a paixão é prejudicial e que os que não estão dominados por ela são mais sensatos e lúcidos, já que, para Lísias, o amor apaixonado é um delírio e não devemos confiar num apaixonado.
Lísias começa dizendo, no seu discurso, que os apaixonados se arrependem após satisfazerem sua concupiscência, ao passo que os que não amam jamais se arrependem de coisa alguma, isto ocorre porque os apaixonados, dominados que estão pelo delírio do amor, se descuidam de seus negócios no esforço por demonstrar gratidão aos seus amados.
Seguindo o discurso de Lísias, descobrimos então o motivo de não confiarmos num apaixonado, qual seja, é que este suporta todos os tipos de sevícias e humilhações na prestação de favores aos seus amados afirmando serem os seus melhores amigos, mas, nas palavras de Lísias: “Quando, mais tarde, se apaixonam por outro, preferem-no ao antigo amado, e é claro que, se aquele o desejar, até se disporão a agir em prejuízo deste.” (Platão, Fedro, 2002, p.61). Portanto, Lísias quer afirmar com isso que o amor de um apaixonado pelo seu amante pode ser algo efêmero e volúvel, ou seja, é algo superficial e fútil a que não se deve confiar, já que, para Lísias, quando este amante escolhe outro amado, logo pode ocorrer de que este amante se volte contra o seu antigo amado. Logo, então, todo tipo de favores do apaixonado ao seu amado não deve merecer a menor confiança, pois o delírio de amor pode passar e virar ódio se o novo amado quiser prejudicar o antigo amado de seu amante.
Lísias entende que os amantes têm o espírito doente e que não possuem bom senso, já que Lísias afirma que os apaixonados não são capazes de dominarem-se a si mesmos, pois estão num estado de delírio. Por conseguinte, para Lísias, seria mais digno ter amizade com os que não amam, ao invés dos apaixonados, já que estes podem ter ciúmes dos seus amados e se sentirem perseguidos por outros achando que os mesmos podem prejudicá-los, porquanto desejam que seus amados não convivam com outras pessoas, o que pode gerar um conflito de interesses entre o amante e o amado.
Lísias segue o seu discurso afirmando o seguinte: “Queres te tornar cada vez mais virtuoso? Confia em ti e não na pessoa que te ama, pois o que ama louvará sempre as tuas palavras e teus atos sem se preocupar com a verdade e com o bem, de medo de te perder ou pela simples cegueira que é própria da paixão.” (Platão,
Fedro, 2002, p.63).  Portanto, Lísias, mais uma vez, diz que não devemos confiar num apaixonado, já que ele aprovará quaisquer dos teus atos. Ou seja, o senso crítico de um apaixonado em relação ao seu amado não existe, já que o delírio da paixão faz com que o apaixonado só veja qualidades no seu amado. Por conseguinte, o ser amado para exercer a virtude deve confiar no seu próprio juízo e não na insensatez do seu amante. Então, Lísias conclui o seu discurso afirmando que a amizade só pode ser duradoura se interesses duráveis forem a sua base e não o amor efêmero de um apaixonado, já que liberto do amor sou capaz de me dominar.
Sócrates começa a sua crítica em relação ao discurso de Lísias sobre o amor afirmando que tal discurso possui muitas qualidades retóricas, porém, é um discurso repetitivo, o que reflete uma suposta falta de assunto ou incapacidade de Lísias para lidar com o tema. Por fim, Sócrates acha que o discurso de Lísias é o discurso de um jovem pedante.
Sócrates, então, começa o seu próprio discurso sobre o amor por insistência de Fedro. Sócrates decide, por conseguinte, antes de fazer afirmações sobre o que é certo e errado no amor, definir os princípios do discurso, começando pela definição do amor.
A primeira definição de Sócrates é a seguinte: “É evidente que o amor é desejo.” (Platão, Fedro, 2002, p. 69). Tal afirmação categórica vem, porém, com uma ressalva, é que os que não amam também desejam os objetos que são belos, daí a primeira dificuldade de distinguir quem ama de quem não ama.
Sócrates prossegue com uma diferenciação entre a temperança e a intemperança. O desejo inato do prazer é a intemperança, exemplos dela podem ser a glutonaria e a bebedice. Tal desejo intemperante é sempre, portanto, exagerado, ou seja, não há um governo da razão nesse tipo de desejo. A temperança, pelo contrário, tem um governo da razão que se determina na pretensão de obter o que é melhor. Sócrates, com isso, definiu a que tipo de desejo se referiu Lísias quando falou do amor, isto é, que o amor para Lísias é um equivalente do desejo intemperante, daí Lísias ver o amor de um apaixonado como uma coisa negativa. Segue o argumento de Sócrates: “Quando o desejo, que não é dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o desejo do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete, e quando ele se lança, com toda a força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível. Esta força todo-poderosa, irresistível, chama-se Eros ou Amor.”
Feita a definição do Amor ou Eros por Sócrates, faz-se necessário, agora, examinar as vantagens e os inconvenientes que advirão provavelmente a alguém que concede favores a quem ama e a quem não ama. Sócrates segue, então, o seu discurso, afirmando: “Um homem governado pelo desejo e escravo da volúpia procurará no seu amado o máximo de prazer.” (Platão, Fedro, 2002, p.71). Feita, uma vez, esta afirmação, Sócrates argumenta que o apaixonado não gosta do que lhe opõe resistência, ou seja, não gosta de nada que lhe seja superior ou igual, pois isso representaria um obstáculo para a realização de seu desejo, que é o desejo de pleno domínio sobre o seu amado, julgando, portanto, que tal amado deve ser inferior à ele. A consequência disso será, por conseguinte, a de que o amante apaixonado invejará o seu amado, impedindo este das convivências que lhe possam ser úteis levando ao seu progresso, o que levará, por fim, o amante a impedir o acesso do amado à filosofia, o que o manterá na ignorância provocando o prazer dominador do apaixonado. Deste ponto de vista, permanece no discurso de Sócrates o caráter negativo do amor que estava presente no discurso de Lísias.
Sócrates prossegue seu discurso afirmando que, além da privação dos bens intelectuais, tal como a filosofia, o apaixonado tenta impedir qualquer outro benefício que o seu amado possa obter, tais como os bens materiais ou entes queridos, ou seja, o apaixonado nunca quererá ver o seu amado com grandes fortunas. Além disso, o desejo de um prazer egoísta do apaixonado que quer o seu amado só para si faz com que o apaixonado deseje que seu amado perca todos os seus familiares, que não se case, que não tenha filhos, que não possua um lar, o apaixonado é então tido como um ser egoísta que no seu amor acaba por fazer do amado apenas um objeto para o seu deleite. Sócrates faz então uma afirmação interessante: “Assim, o lisonjeiro, por exemplo, é horrível monstro e traz grandes prejuízos ... O mesmo se dá com o apaixonado em relação com os seus amores. Ele não é apenas nocivo. Sua assiduidade o torna terrivelmente desagradável.” (Platão, Fedro, 2002, p.72).
O amante quando está apaixonado é, então, desagradável e prejudicial. Porém, quando seu amor termina, ele se revela como homem indigno de confiança, podendo trair o seu antigo amado. O que ocorre então? Trocam-se os papéis! Ou seja, as promessas de amante do apaixonado ao seu amado não podem mais ser cumpridas, pois a loucura da paixão que dominava o amante cessou e deu lugar à sobriedade e à sabedoria, mas o amado quer satisfações de seu antigo apaixonado, pois concedeu-lhe favores anteriormente, os quais o antigo apaixonado prometeu retribuir, mas assim não fez porque a paixão acabou.
Segue-se daí que o amado percebe que não deveria ter confiado no apaixonado concedendo-lhe favores, mas sim a quem não estivesse tomado pela paixão, pois este poderia proceder com juízo. “Entregando-se ao apaixonado, abandonou-se a um homem sem palavra, de convívio desagradável, a um homem cheio de inveja, que só lhe causou desprazer, nocivo para a sua fortuna, para a sua educação física e, acima de tudo, para sua educação espiritual.” (Platão, Fedro, 2002, p.74). Sócrates finaliza seu discurso sobre o amor, então, com um provérbio: “Como o lobo ama o cordeiro, ama o apaixonado o seu amado." (Platão, Fedro, 2002, p.74).
Sócrates, ao perceber que estava pecando contra Eros ou o Amor no seu primeiro discurso, sentiu a necessidade de fazer um elogio do Amor. Tal motivação surgiu provavelmente de que, assim como o discurso de Lísias, o seu primeiro discurso também dava um caráter negativo para o amor, daí a necessidade sentida por Sócrates de fazer um contraponto elogiando o amor, porquanto estava em dívida com Eros e pecando contra o mesmo, já que um deus não poderia, aos olhos de Sócrates, ser mau, daí não ser verdadeiro um discurso que condene o amor como algo mau, já que Eros é filho de Afrodite e, portanto, é um deus, de acordo com a tradição.
Sócrates diz que não foi verídico o discurso anterior, pois este dizia que é prudente conceder mais favores ao que não ama do que ao apaixonado, porque este é louco e não merece confiança, enquanto que aquele possui discernimento. O motivo de Sócrates negar validade ao discurso anterior dele próprio é de que a loucura não é necessariamente apenas um mal, mas pode ser que tal loucura, porventura, seja inspirada pelos deuses, podendo  então tal loucura trazer grandes bens. Para confirmar tal argumento, Sócrates lembra do seguinte: “A profetisa de Delfos e as sacerdotisas de Dodona prestam grandes serviços às pessoas e aos estados da Grécia quando estão em delírio.” (Platão, Fedro, 2002, p.80) Pois o delírio que vem dos deuses é mais nobre que a sabedoria que vem dos homens. Portanto, diz Sócrates: “Não devemos pois temer nem nos deixar perturbar por um discurso no qual se afirma que se deve preferir ao apaixonado o sensato ... é o primeiro que deve receber os louros da vitória, pois o amor foi enviado ao amante e ao amado, não pela sua utilidade material, mas, ao contrário, esse delírio lhes foi incutido pelos deuses para sua felicidade.” (Platão, Fedro, 2002, p.81)
Sócrates, em seguida ao argumento do parágrafo anterior, sente a necessidade, para confirmar a ideia de que o delírio de amor pode ser bom, de indagar qual é a verdade acerca da natureza da alma, indagar se a sua natureza é divina ou humana.
A primeira ideia levantada por Sócrates é de que a alma é imortal, pois a alma se move por si mesma, ao contrário de uma coisa que é movida por outra coisa, já que nesta coisa o movimento cessa alguma hora. A alma, portanto, é um princípio autônomo, ou seja, nunca se formou por outra coisa e, por isso mesmo, não pode ser destruída. Para Sócrates, o que a si mesmo se move é imortal.
Sócrates propõe então o mito da parelha alada para explicar de que modo as almas imortais perdem as asas e ao se combinarem com os corpos passam a constituir seres vivos e mortais. A asa da alma serve, segundo Sócrates, para conduzir o que é pesado para as alturas, onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea, pois o divino é tudo o que é belo, sábio e bom. Sócrates diz: “Dessas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem, enquanto todas as qualidades contrárias, como o que é feio e o que é mau, fazem-na diminuir e fenecer.” (Platão, Fedro, 2002, p.83)
As almas dos imortais logo atingem a abóbada celeste e aí se mantêm, pois é na Ideia Eterna que reside a ciência perfeita, onde a mesma abarca toda a verdade. Sócrates prossegue o seu discurso: “O pensamento de um deus nutre-se de inteligência e de ciência puras ... Quando a alma, depois da evolução pela qual passa, atinge o conhecimento das essências, esse conhecimento das verdades puras a mergulha na maior das felicidades ... Quando assim contemplou as essências, quando saciou a sua sede de conhecimento, a alma mergulha novamente na profundeza do céu e volta ao seu pouso ... Essa é a vida dos deuses.” (Platão, Fedro, 2002, p.84)
Depois de feita a descrição da vida dos deuses, Sócrates faz então a descrição da sorte das outras almas. Ao seu ver, muitas dessas almas fazem de tudo para seguir os deuses e contemplar as essências vistas pelos mesmos, mas, contudo, apenas vislumbram tais realidades, uma vez que, segundo o mito da parelha alada, são perturbadas pelos corcéis do carro, e não conseguindo se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto, caem, e a sua queda as condena à simples Opinião.
Sócrates diz então que uma lei estabelece que a alma, em seu primeiro nascimento terreno, não pode viver no corpo de um animal, e, uma vez terminada a primeira vida, passam por um julgamento. “Umas vão para lugares de penitência, abaixo da terra, para sofrerem o castigo; outras sobem, por sentença, a um lugar do céu onde desfrutam as recompensas das virtudes que praticaram na vida terrestre.” (Platão, Fedro, 2002, p.85)
Sócrates, ao seguir, diz que só a alma do filósofo pode ter asas, uma vez que somente estes têm a sua atenção voltada para os objetos divinos, se desligando dos interesses humanos. Agora, então, ele aponta para outro tipo de delírio, qual seja, a contemplação por alguém da beleza. “Recorda-se este da beleza verdadeira, recebe asas e deseja voar para o alto; não o podendo, porém, volta seu olhar para o céu esquecendo os negócios terrenos e dando desse modo a saber que está delirante. De todos os entusiasmos este é o melhor ... Quem delira assim, ama o que é belo e chama-se amante.” (Platão, Fedro, 2002, p.86)
Sócrates afirma, ao seguir, que a alma humana, dada a sua própria natureza, contemplou o Ser verdadeiro, de outro modo nunca poderia animar um corpo humano. Mas as almas humanas se diferem, pois umas têm boa recordação desta contemplação do Ser verdadeiro, ao passo que outras se afastam desta recordação, movidas que são pela iniquidade.
A beleza é então encontrada, pelas almas que se acham confinadas num corpo, em outros corpos, pois, ao verem um rosto divino ou um corpo que bem encarna a beleza, voltam a olhar esse belo corpo, e adoram-no como adorariam um deus, sem saber que tal influência é despertada pela vaga recordação das almas da beleza em si que está no Ser verdadeiro. “Quando contempla o seu amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre: modificam-se-lhe as feições, o suor poreja em
sua fronte e um calor estranho corre pelas suas veias. Logo que percebe, através dos olhos, a emanação da beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da sua alma ... Mas, quando está separada do amado, fenece. E as aberturas de onde saem as asas também contraem ... Desse modo, a alma toda, atormentada em seu próprio âmago, sofre e padece, e no seu frenesi não encontra repouso. Impelida pela paixão, ela se lança à procura da beleza.” (Platão, Fedro, 2002, p.88) Para Sócrates, por fim, isso explica a paixão dos amantes e sua causa.
Sócrates, então, segue o seu argumento, dizendo que o amante pode beneficiar o seu amado, pois vê nele uma oportunidade de torná-lo semelhante ao deus que adora. Seguem as palavras de Sócrates: “Em vez de sentirem inveja do amado, esses amantes fazem tudo para tornar os seus amados semelhantes a eles mesmos ou aos deuses que adoram. É desse zelo que estão animados os verdadeiros amantes. Se conseguem que o amado divida com eles o mesmo interesse, o mesmo amor, a sua vitória é, ao mesmo tempo, uma iniciação. O amado que se deixa conquistar por um amante que delira assim, entrega-se a uma nobre paixão que será, para ele, uma fonte de felicidades.” (Platão, Fedro, 2002, p.90)
Então, quando um jovem se vê honrado como um deus pelo seu amante, passa a sentir a necessidade de amar. Embora amigos e outras pessoas condenem tal união amorosa, a necessidade de amar e de ser amado fala mais alto e ele se entrega aos braços do seu amante, percebendo, ao fazer isto, que o afeto dos seus amigos e parentes não se pode comparar com o amor de um amante inspirado pelo delírio. Após este pensamento, Sócrates encerra o seu elogio do Amor e se sente regenerado de seu primeiro discurso, então diz que Lísias se volte para a filosofia, consagrando a toda a sua vida ao amor que é orientado pela filosofia, pois o delírio do amor é o melhor de todos.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/19263/14/o-amor-em-fedro-de-platao