“Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.”
René Karl Wilhelm
Johann Josef Maria Rilke nasceu em Praga, ainda no antigo e extinto Império
Austro-Húngaro, em 4 de dezembro de 1875. Dentre seus escritos, podemos
destacar os do período a partir de outubro de 1911, no qual Rilke passa alguns
meses no castelo Duíno, perto de Trieste. Neste castelo Rilke escreve Elegias
de Duíno e A Vida de Maria. Outro destaque fica para quando ele esteve na
Suíça, em 1897, recuperando sua inspiração, de onde é gerado, num período de
intensa criatividade artística, o livro Sonetos a Orfeu, considerado a face
culminante de sua obra poética. Aqui no Brasil, sua obra foi relativamente
reconhecida, abrangendo dois períodos distintos, um mais metafísico, e outro
mais ligado às realidades mais palpáveis. Com a nossa Geração de 45 adotando-o
como uma referência, o que criou uma espécie de “rilkeanismo” em língua
portuguesa.
Além de ter sido um
dos grandes poetas do século XX, Rilke também escreveu textos importantes em
prosa, incluindo aí seu único romance, Os cadernos de Malte Laurids Brigge. E
na sua prosa podemos destacar, ainda, suas cartas, de alto teor poético, donde
se tem a conhecida compilação póstuma que vou citar aqui nesta resenha, o
Cartas a um Jovem Poeta. Neste livro a beleza da prosa de Rilke e a riqueza de
seu pensamento se revelam, nos dando um panorama sucinto, embora amplo de
significados, do fazer da poesia, de como podemos interagir entre limitações e
exercícios que passam sobretudo pelo conhecimento do mundo e do conhecimento da
própria alma para empreender tal tarefa.
Cartas a um Jovem
Poeta são escritos, cartas, destinadas ao jovem Franz Xaver Kappus, que as
publicou em 1929, três anos depois da morte de Rilke. As ponderações de Rilke
passam além da dimensão pessoal. Pois, ao se dirigir para o jovem aspirante a
poeta, Rilke não faz crítica, ele simplesmente fala da vida, e é nesta chave de
compreensão que o jovem Kappus é levado ao sentido de jornada que envolve a
vida em geral e a vida do poeta.
Não existe, nestas
cartas de Rilke, qualquer sinal de crítica literária, a qual o próprio, neste
livro, tece algumas negativas, e coloca a perspectiva do fazer poético dentro da
sua realidade, que é, sobretudo, uma aventura da alma, sem grandes conceitos,
apenas com a educação do olhar sensível e de uma qualidade da atenção que só
são adquiridas com o tempo, incluindo aí estes exercícios de versificação, da
qual estas cartas têm como tema transversal e central ao mesmo tempo.
No começo da análise
de Rilke sobre os escritos (versos) do jovem Kappus, ele tece a seguinte
observação: “posso lhe dizer ainda que seus versos não possuem uma forma
própria, mas apenas indicações silenciosas e veladas de personalidade.” Quer
dizer, Rilke dá atenção ao jovem sobre sua libertação de formas viciadas ou
miméticas, donde se tem o sentido da observação como uma orientação para o
jovem ganhar propriedade sobre seu exercício, ou seja, a personalidade é o
reforço necessário de quando a escrita ou verso denuncia (positivamente) seu
“fazedor”, e isto não nasce por mágica ou força, mas por detimento e
persistência, entendendo-se que a personalização não é o ego propriamente dito,
pois se a vaidade é mola mestra não se tem a propriedade justa, que é mais que
ego, é a fusão do autor com sua obra, a propriedade passa por se tornar um só
no seu exercício, e a unidade estabelecida é o ponto de inflexão que leva o
poeta da tentativa para um certo taoísmo de suas faculdades, aonde já não se
tem separação entre autor e escrita.
Digo que esta
apropriação e personalidade nascem da inflexão que o poeta realiza ao se tornar
a própria feitura a que se propõe. Daí que Rilke arremata: “Volte-se para si
mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever, comprove se ele se estende
as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o
senhor morreria caso fosse proibido de escrever.”
Em seguida, Rilke
recomenda ao jovem poeta a leitura de Jens Peter Jacobsen, dizendo: “Um mundo
se abrirá para o senhor, a felicidade, a riqueza, a grandeza inconcebível de um
mundo.” Logo adiante, em outra resposta ao jovem poeta, adverte: “Leia o mínimo
possível de textos críticos e estéticos.” Aqui, Rilke reforça sua visão
negativa da crítica literária e desta cara área da Filosofia denominada
Estética.
Ou seja, Rilke tem
como precioso o olhar treinado pelo coração, coisa que ele julga ausente no
jogo de palavras de críticos e analistas estéticos, o que lhe dá razão em
parte, pois é bom saber que há uma necessidade de se criar uma base crítica e
analítica da literatura e da arte, mas não desfaz a posição de Rilke e seu
sentido: para o artista ou poeta, quando se depara com o seu próprio trabalho e
pensamento, isto é mais importante que as pontuações e ponderações infinitas de
pensadores e críticos alienados do mundo interior do artista, este é o sentido
de sua negativa quanto à crítica literária e a ciência da Estética.
Rilke, então, segue
nas suas respostas ao jovem poeta: “A ideia de ser um criador, de gerar, de
formar, não é nada sem a sua contínua e grandiosa confirmação e realização no
mundo, nada sem o consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos
animais.” Rilke indica ao jovem poeta, aqui, uma educação do olhar, o que passa
por entender intuitivamente as coisas do mundo, o que não é uma faculdade
somente da razão ou de filósofos, pois cabe ao artista dar uma especial carga
de percepção a tudo que o cerca, desenvolvendo sua intuição ao paroxismo e
colhendo seus frutos ao ter na atenção total de sentidos, razão, sentimentos,
emoções e fé, como a unidade de seu corpo e alma com o mundo exterior e
interior.
A ideia de fusão e
unidade passam mais uma vez aqui como algo que reúne toda a percepção da
realidade além de seus termos ordinários, mas que, embora seja uma
ultrapassagem do olhar comum, justamente por isso tem que estar não só na
metafísica extraordinária, mas sobretudo no mínimo, no ínfimo, em que o
macrocosmo também está contido, numa visão do coração monadológica e tântrica
em que as conexões entre todas as coisas do mundo estão prenhes e juntam o
ínfimo com o indizível e inefável.
Rilke também dá
atenção à ideia de solidão, lugar não de angústia, mas de construção, em que o artista
se coloca inteiro para si mesmo, e somente assim suas faculdades mentais são
liberadas para o exercício criativo. O estar cercado de pessoas faz bem ao
coração, mas o difícil trabalho de auto-análise passa pelo isolamento eventual,
em que a alma toma para si sua própria tarefa de entender a vida mais profunda
que mora nos recônditos da vasta floresta que é alma humana. Donde se tem que a
experiência coletiva é uma educação social, importantíssima para educar o olhar
ao mundo, mas, de outro lado, a solidão saudável coloca o artista em contato
com seu íntimo, na sua construção de sentido mais radical, com os frutos de sua
alma.
E já com sua base de
estudo da própria alma, isto faz o poeta ou artista retornar triunfante ao
mundo social, já tendo registrado certos códigos e segredos das condutas e
convicções que cercam este mundo coletivo e social. Rilke diz: “a sua solidão
será um pouso e um lar, mesmo em meio a relações muito hostis, e a partir dela
o senhor encontrará os seus caminhos.” E conclui: “Pense, meu caro, no mundo
que o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser.”
Rilke também dá
atenção ao tema do amor, e diz: “as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda
não podem amar: precisam aprender o amor.” Rilke diz que quem se lança à
aventura amorosa antes da hora certa coloca-se como vítima de convenções. A
educação amorosa demanda tempo, e para Rilke o jovem ainda tem que trocar seu
ímpeto apaixonado por uma análise detida de si mesmo, para que mais à frente
ele poupe energia e sofrimento, entrando no amor maduro, sem a convenção
forçada de tiques sociais que se perdem numa paixão falsa ou numa pose vazia. O
amor demanda tempo, e os sortudos são os que amadurecem antes de tudo, e então
se colocam com sua alma inteira ao serviço amoroso, sem os desgostos e
contratempos da alma devotada às convenções que são, para Rilke, desastrosas,
infrutíferas, e que se exaurem sem nem mesmo nascerem. Daí que Rilke diz: “Mas
se perseverarmos e assumimos esse amor como uma carga e um período de
aprendizado, em vez de nos perdermos em todo jogo fácil e frívolo atrás do qual
as pessoas se esconderam das mais séria gravidade de sua existência, talvez se
perceba um pequeno avanço.”
Numa reflexão sobre
a tristeza, Rilke afirma: “É por isso que a tristeza também passa: o novo em
nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, alcançou seu recanto mais íntimo e
mesmo ali ele já não está mais – está no sangue.” Neste ponto, Rilke dá
importância ao renascimento da alma, o período de tristeza é um tipo de
educação da alma para que ela renasça renovada, com sua percepção já
amadurecida de suas próprias armadilhas, de como este momento pode ser ardiloso
e quase incontornável, mas que é um anúncio de uma aurora indestrutível, na
qual o artista renasce para si mesmo, cônscio de que há várias emboscadas do
sentimento e da emoção. Mas, a esta altura, a sua experiência se torna fé, e
neste estágio da existência o artista ou poeta já não tem receio de suas
fontes, sabe manejá-las com a sabedoria de quem viveu o céu e o inferno, e saiu
vivo e forte, com a plenitude de autoconhecimento que toda arte e poesia
exigem, com a consciência de seu serviço artístico fortalecida pela noção
nascida de tais experiências de saúde e enfermidade. O poeta agora ganha a tal
propriedade de que Rilke falou no início ao jovem poeta de suas cartas. E Rilke
então se dirige ao seu interlocutor com a convicção de sua experiência: “O
futuro permanece firme, caro senhor Kappus, mas nós nos movemos no espaço
infinito.”
Rilke continua sua
exposição: “Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance, tudo,
mesmo o inaudito, tem de ser possível nela.” E é aí que mora a chave da poesia:
tornar conhecidas as coisas que nos são desconhecidas, a poesia é a linguagem
do impossível, é o modo de conhecer mais eficiente do indizível, o dizer da
poesia flerta e mergulha no inaudito, é com este enigma que o poeta se dá com a
intimidade de um estudioso graduado, entendendo a vida a partir de suas
descobertas neste terreno em que o verso aponta para além, no mundo sonhado e
no mundo real, mas que está prenhe, tanto o sonho como a realidade, de um fundo
delirante em que as coisas todas ganham brilho e sentido unívocos, a síntese e a
fusão são as alucinações preferidas do poeta.
Rilke então coloca,
finalmente, a relação do poeta ou artista com o mundo: “Não temos motivo algum
para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua
terrores, são nossos terrores, caso surjam abismos, esses abismos pertencem a
nós, caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los.” Rilke dá ao
jovem poeta uma coordenada fundamental: os segredos que estão por trás da
existência podem ser também terrores e perturbações que, independente da
postura de terceiros ou do próprio mundo, é você mesmo que tem que dar conta e
administrá-los.
A loucura do mundo,
apesar de tudo, não é maior do que as nossas loucuras. Abismos geralmente se
encontram para quem olha muito para eles. Sabendo educar o olhar para a sua
própria construção, com todas as emboscadas da jornada, isto fará de você uma
fortaleza, já conhecendo todos os abismos possíveis e impossíveis da vida
humana, e sabendo-os, poderá amá-los, mas sem olhá-los imprudentemente. Cabe ao
poeta não tentar dar conta da loucura ou irresponsabilidade de seu semelhante,
mas controlar os seus próprios abismos, deixando a queda do vale para os que
nele se comprazem. Lembrando que os terrores são de quem os cria, assim como
Buda disse que a mente é que está em si, e o mundo não tem culpa, o inferno são
os outros, como disse Sartre, mas não é da sua conta. Então Rilke diz ao jovem
poeta: “Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.” Ou seja, tudo o
que acontece é o sentido todo no qual se fiar, não há nada mais que isso.
Já nas últimas
cartas, Rilke dá mais uma dica ao jovem poeta, aqui no tema do uso da própria
inteligência: “Sua tendência para a dúvida pode se tornar uma boa qualidade se
o senhor a educar. Ela precisa se tornar saber, precisa se tornar crítica.” Quer
dizer, todo jovem tem mais dúvidas que saber, e de certa maneira, quando este
avança no conhecimento, tem uma sensação de grande alívio.
Ou seja, das dúvidas
nasce a vontade de saber, e a alma inquieta e angustiada da dúvida vai se
firmando através do conhecimento que adquire, e então passa a ter saber e
crítica. Suas dúvidas ainda existem, mas se tornaram menos cruéis e
perturbadoras. E o manejo de todo o mistério, depois do alcance de certa
nobreza de caráter, de um fundo suficiente de bases cognitivas, de massa
crítica como uma percepção refinada de todos os termos da conversa, colocam o
jovem indagador num novo patamar, pois da sabedoria nasce então o estar no mistério
da vida, com a propriedade tão forte da qual Rilke advertiu o jovem poeta em
uma de suas primeiras cartas. Isto é, o conhecimento é grande alívio e lenitivo
para as almas indagadoras. E este trabalho é individual. O incremento do ser vem
da dedicação. E a habilidade na poesia vem desta mesma tarefa do conhecimento
de forma positiva, como um efeito da colheita.
Rilke, então,
encerra seu pensamento, nas cartas, com mais dois apontamentos: “O fato de nos
encontrarmos em situações que trabalham em nós, que de tempos em tempos nos
põem diante de grandes coisas da natureza, é tudo que se faz necessário.” E
segue: “também a arte é apenas um modo de viver, e é possível se preparar para
ela sem saber, vivendo de uma maneira ou de outra.”
Então, o estado do
pensamento do artista ou do poeta não é exatamente ele que controla. O
estar-no-mundo se tece de maneira autônoma da vontade do artista ou poeta. As
situações que se criam, normalmente, estão fora de seu controle. O verdadeiro
artista e poeta é um servidor das parcas do destino. Entra na arte sem saber,
de forma inocente, até mambembe, mas sua fortuna vem avassaladoramente num
átimo, quando esta arte se ilumina de inspiração universal, e o trabalho
poético vira algo maior que tudo.
Ou seja, as situações
trabalham em nós enquanto fazemos as coisas. E o espetáculo da natureza se abre
para quem aprende a ver. O véu de Ísis vira ao avesso, e os olhos estão na
fortuna para sempre. E aí Rilke coloca a arte como um modo de vida, mas que
nasce da espontaneidade das escolhas, que ainda são, querendo ou não, instituto
das parcas tramando secretamente suas dádivas e castigos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/19512/14/cartas-a-um-jovem-poeta