Saiu no fim do ano passado (2013), aqui no Brasil, uma edição nova, bilíngue, pela editora Hedra, da obra intitulada Álcoois, livro de poesia de Guillaume Apollinaire que, neste mesmo ano de 2013, fez 100 anos de seu primeiro lançamento, em 1913.
Apollinaire, escritor e crítico de arte, naturalizado francês em 1916, se destacou nos movimentos de vanguarda do início do século XX, e seu livro Álcoois reúne sua produção de poesia que vai de 1898 até 1913.
Tomando como ponto de partida o poeta francês Charles Baudelaire, Apollinaire faz seu salto de modernidade na poesia. Se instaurando nas fontes simbolistas, vai além delas, e se coloca na vanguarda de novas experimentações, o que o leva à uma poesia sem pontuação, e à radicalização de uma poesia gráfica, o que se verá em sua outra obra poética famosa, Calligrammes.
Apollinaire é o criador da palavra surréalisme (surrealismo), e, contudo, em sua poesia, mantém suas raízes simbolistas. Sob o impacto de Picasso, intenta a experiência de um poema cubista, "Zona" (Zone), o qual abre o livro Álcoois de 1913. A paisagem do novo século, os movimentos de vanguarda, toda a inovação do futurismo, do cubismo, e de seu plano do surrealismo, levam Apollinaire ao conjunto de imagens que remetem ao desenvolvimento da tecnologia, da ciência e do contexto nascente das cidades modernas. Estes objetos da modernidade serão saudados pela poesia de Apollinaire que, numa exaltação das novidades deste mundo que surge, mantém, também, expressões da tradição poética, como sua fonte simbolista, a qual ele ainda terá como um dos pilares de sua obra poética. Portanto, Apollinaire tem uma postura de equilíbrio entre tradição e experimentação em sua poesia, sem a ruptura radical com o passado que se verá em Marinetti, por exemplo.
Álcoois é um bom resumo das experiências poéticas de Apollinaire, sua inovação lírica, sem pontuação, exercendo a potência natural do verso livre, e colocando o personagem principal da modernidade, a cidade, como ponto de reflexão desta nova poesia, é daí que as experimentações posteriores de relações entre diferentes artes, tais como entre a pintura e a literatura, portanto, nascerão como a inflexão necessária da arte moderna, que se verá em Calligrammes, por exemplo. Nesta outra obra de Apollinaire teremos a fusão entre a forma pictórica e a expressão verbal.
Os métodos poéticos de Álcoois, por sua vez, são menos radicais do que a fusão que se verá em Calligrammes. Neste livro de 1913, Apollinaire, que abole a pontuação na poesia, se verá perante o fluxo de consciência, algo que será a marca registrada do surrealismo, fluxo que será desenvolvido por vários outros poetas e escritores, o que se pode ver na prosa contemporânea dos poetas "beats" americanos, por exemplo, e que terá como uma de suas ramificações, a prosa espontânea de Jack Kerouac. Em Álcoois, portanto, o fluxo de consciência se torna um método de escrita, o verso livre é filho direto deste fluxo, e nele Apollinaire pratica o jogo pronominal, e coloca a narração em função da escrita livre e experimental de uma nova poesia surrealista que surge pelo e no verso livre.
Os poemas contidos em Álcoois fazem jus ao programa definido pelas vanguardas, que se tornou o conjunto de preceitos das novas artes do século XX, na conferência "L`Esprit nouveau et les poètes". A obra de Apollinaire, neste ínterim, representa um documento importantíssimo para a história da lírica moderna, e é um retrato fiel da evolução da poesia de Apollinaire neste contexto de mudanças profundas da literatura e artes do século XX.
Apollinaire atua na poesia como o deus Jano, de duas faces, uma voltada para o futuro, e a outra voltada para o passado. A organização da obra Álcoois, aparentemente arbitrária, não é tal, pois, na sua consumação. Álcoois revela uma simetria de um trabalho que tomou 15 anos da produção poética de Apollinaire, e nestes poemas podemos ver temáticas caras ao poeta, tais como: amores, a morte, a natureza e a imagem do outono como ideal poético que dialoga com a tradição simbolista, e aponta, por outro lado, ao futuro, com o surrealismo de verso livre e fluxo de consciência.
O longo poema inaugural de Álcoois, "Zona" (Zone- 156 versos), objeto de muitos estudos, é considerado o comentário da escrita poética e, ao mesmo tempo, poema lírico de excelência, que abre a obra com o verso: "No fim estás lasso deste mundo antigo" (A la fin tu es las de ce monde ancien). A nova beleza da cidade surge. Neste poema temos Paris, a Torre Eiffel e os automóveis, todos os objetos das ruas industriais, o delírio poético então viaja pelo mundo, e enumera o percurso pelas cidades e seus elementos, a poesia da máquina se estabelece, a poesia da cidade moderna abre seu discurso. Numa expressão de simultaneidades e fragmentação, a nova poesia se edifica, o homem do início do século XX é reverenciado, a poesia de seu tempo se torna expressa, a vanguarda cumpre o seu papel. Homens, máquinas, cidades, a poesia os coloca como o novo conjunto de objetos da vanguarda poética, e que, em Apollinaire, será a carta-manifesto da nova poesia surrealista, tudo isto dentre as vanguardas futurista e cubista, e é a partir destes experimentos, e de um novo conjunto de elementos de exaltação e reflexão, que a poesia dita moderna surge como o reflexo deste mundo renovado do início do século XX. Esta experiência poética completou agora 100 anos, e nutriu todo um tempo que, naquele contexto, tinha uma crença de progresso tecnológico e da própria arte, que resultou, hoje, na liberdade de criação e no diálogo permanente entre as diversas artes que temos neste nosso século XXI.
Na biografia de Apollinaire, temos alguns fatos marcantes: ele é responsável pela publicação de uma antologia de textos do Marquês de Sade, o polêmico escritor de romances libertinos que, até então, naquele ano de 1909, era praticamente desconhecido na França e no mundo. Outro episódio ficou famoso: Apollinaire é um dos acusados de cumplicidade no roubo da Mona Lisa de Leonardo Da Vinci, no Museu do Louvre, incidente que também envolveu Pablo Picasso, sendo que Apollinaire fica preso, então, por uma semana, sendo libertado depois. Por fim, o poeta Apollinaire morre muito jovem, aos 38 anos, em 9 de novembro de 1918, vítima da gripe espanhola.
Apollinaire fica para a História como o poeta inaugurador do surrealismo na literatura, e como a pessoa que reuniu em sua arte os preceitos da modernidade, tendo, com isso, avançado a partir da tradição simbolista para uma expressão do verso livre até então inédita.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/15223/14/alcoois-de-apollinaire