PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

DISCUSSÃO POLÍTICA

   Sempre dizem que na política atual não há direita ou esquerda. Bem, não há mais a visão clássica de que os “nomes dos bois”, ou melhor, as caras são bem definidas, na política atual. Quando se fala no jogo que se dá entre os poderes, sobretudo quando se fala do legislativo que sobrevive das coligações, vinculando estas com as candidaturas majoritárias dos cargos ao poder executivo, ainda temos alguns setores da política bem definidos, apesar do conluio partidário atual. Na discussão política contemporânea, falando de Brasil, não se trata mais de falar exatamente em direita ou esquerda, mas em alas conservadoras ou progressistas, e isto, a fortiori, nos extremos das posições ideológicas, por exemplo, quando comparamos partidos como PCO, PSTU ou PSOL com velhos bastiões do “em defesa da família e da vida” que podemos ver em partidos como o PP (que abriga Jair Bolsonaro e Paulo Maluf) ou o DEM, ou ainda o partido da Igreja Universal, o PRB, e o PSC, que dispensa comentários.
   A discussão política, apesar de vivermos num Estado laico, deixou de ser de cunho ideológico, embora ainda tenha nos extremos da constelação partidária brasileira tais posicionamentos, e vemos agora a marcação de discussões em torno de direitos civis como dos homossexuais ou do direito da mulher ao aborto que, por sua vez, colocam a política numa nova modalidade de choques entre uma moral tradicional e conservadora e a chamada esquerda libertária, afirmativa de direitos. Tal choque nos leva ao próprio processo civilizatório, aonde os valores novos se tornam de imorais (na visão conservadora e tradicional) para morais, e valores antigos da instituição familiar nos moldes cristãos neopentecostais e/ou católicos, no juízo da interpretação bíblica, colocam estes valores novos como inversões do mundo real.
   Isto é, mais do que choque entre morais ou uma contenda axiológica, temos um choque de cosmovisões, o que coloca as coisas em termos bem mais graves, ou seja: temos na discussão política, que deixa de lado aspectos ideológicos de conflitos entre visão liberal ou socialista (área de pleitos de cosmovisão sistêmica e econômica, com viés politizado), a percepção de um novo embate valorativo, que trata agora de cosmovisões mais radicais do que a discussão sistêmica.
   Trata-se agora, neste choque entre tradição e libertação, de um novo modus operandi do pleito eleitoral nacional, a realidade valorativa ganha contornos de radicalização, mas não de direita e esquerda (discussão sistêmico-econômica), e sim de um choque entre conservadores e libertários, o que nos leva ao questionamento entre uma tradição diacrônica, que revela velhos lemas ou valorações standard, e os libertários, que são o grupo dos direitos civis, em defesa do processo evolutivo, e o que diferencia o moral do imoral se radicalizando nesta polarização: temos duas moralidades diametralmente opostas, uma da tradição que não se coloca no debate, mas numa discussão anódina de preservação, e o debate libertário, que se lança ao progressismo de suas bandeiras, provocando o adversário que, no seu jogo, usa do juízo estabelecido num embate de inversão, isto é, a moral libertária vai ao debate e a preservação do discurso conservador se usa do viés valorativo tradicional, colocando a falácia da inversão de valores como um anti-debate.
   O processo civilizatório levanta a bandeira libertária, dos direitos civis, enquanto a moral tradicional não vai ao debate, prefere os slogans standards, escolhendo uma luta simbólica e não argumentativa, daí ser colocado que a moral tradicional prefere a falácia ou sofisma do slogan do que o aprofundamento dos debates sociais e culturais. Ou seja,  a tradição e seus representantes se colocam fora do discurso racional, ficando confinados no apelo emocional, ou pior, no pseudo-argumento (slogan, defesa simbólica) pela autoridade sobrenatural da religião, conhecido em Filosofia como argumentum ad verecundiam, denunciando aí que não se trata, do lado conservador, de uma discussão política racional, de sopesamento valorativo de um consenso ou dissenso equilibrado.  
   A ala tradicional e conservadora, na sua relação com os libertários, se dá apenas na tática política da inversão, isto é, falando do moral e do imoral, eles têm tudo definido, num ato a-histórico, cristalizado, que não estabelece o debate, colocando a nova moralidade ou valoração civil e libertária no canto de uma imoralidade a priori. Isto é, não se discute de forma equânime. A desconstrução (não inversão) fica ao cargo dos libertários nas suas lutas sociais e culturais, a favor do processo civilizatório real. A valoração ganha nova perspectiva no aprofundamento tanto das discussões políticas em si, como do debate valorativo, civilizatório, social, cultural, abrindo a linguagem moral para sua ampliação, o que passa necessariamente pela civilidade da discussão racional de liberdade, e não da emoção barata do slogan, cunho mais próprio aos valores standards da tradição de família, do que do debate importante dos direitos civis.
   Portanto, quando e se a ala conservadora da política (religião?) se colocar no debate racionalmente, num embate verbal e não simbólico, teremos da parte libertária o arcabouço discursivo que já vem sendo construído até de forma assembleísta. Pois quem se reúne em torno da discussão pública de valores e de seus critérios de verdade ou mentira, deve ir ao debate munido do argumento tempestivo da razão, e não do apelo emocional de slogans e símbolos. A paixão deve deixar o campo discursivo deste embate valorativo, sendo necessário que a repetição de juízos a priori sejam superados, e que o dissenso ou consenso sejam feitos pela construção e desconstrução discursiva in loco, ou seja, com o jogo de linguagem próprio de um debate político honesto, e portanto, racional.
   Portanto, se temos a busca do slogan para defender tanto um lado como o outro, não se dá nem o dissenso, mas a falta do debate propositivo, em que a pura inversão evita entrar no jogo, e os extremos da batalha se refugiam simbolicamente em suas verdades. Claro que não haverá consenso entre algo que se coloca necessariamente como entes em oposição. Mas, no espaço público, as instituições têm de fazer uma escolha, e o critério de verdade terá de passar por uma fundamentação discursiva sem apelos a priori de defesas simbólicas. Isto é, da parte da ala libertária tem que partir o discurso propositivo de novas valorações, mais do que a desconstrução do adversário conservador que, este sim, se coloca num refúgio da inversão a priori, fugindo de um debate dinâmico em que a luta de cada um é questionada e o saber reflexivo se faz, e as práticas sociais, políticas e culturais se aperfeiçoam, sendo então possível a construção do verdadeiro processo civilizatório, filho dileto da História e não da moral a priori.
03/10/2014 Crônica

Gustavo Bastos, filósofo escritor.

domingo, 28 de setembro de 2014

A PRISÃO E A DELINQUÊNCIA EM FOUCALT

"a prisão se tornou a pena por excelência."

  Segundo Foucalt, em sua obra Vigiar E Punir, a prisão não é algo recente, não surgiu com os códigos penais, mas que adquiriu sua característica punitiva sob leis penais na passagem do século XVIII para o XIX. Ou seja, a prisão, antes dessa época, estava fora do aparelho judiciário. Foi então que, na época citada, a prisão se tornou a pena por excelência.
   Com a prisão-castigo, nos primeiros anos do século XIX, as outras punições que os reformadores do século XVIII imaginaram foram esquecidas. A partir daí a prisão se tornou o único instrumento de punição dos crimes, não podendo ser substituído por outro melhor, mesmo que a prisão não fosse o instrumento perfeito. Nas palavras de Foucalt: “não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.196).
   A primeira função da prisão seria, então, a privação de liberdade. Esta seria, segundo Foucalt, uma das “obviedades” da prisão, sendo a segunda “obviedade” a transformação dos indivíduos. A privação de liberdade se impõe como a melhor punição em uma sociedade cujos valores afirmam que a liberdade é um bem que pertence a todos. Sua perda, portanto, tem a pretensão de ser um castigo igualitário, pretensão de justiça. Tal privação de liberdade pretende então ser um tipo de punição reparadora do delito cometido pelo infrator sob a forma de retirada do tempo do condenado. (Obviedade econômico-moral que estabelece equivalências quantitativas delitos-duração).
    Por sua vez, a “obviedade” da prisão fundamentada no papel de correção através da transformação individual vem junto com a privação de liberdade. Ou seja, a prisão teria como objetivo “regenerar” indivíduos pela privação de liberdade, este era o fundamento por excelência da prisão, e que permanecia sendo a ideologia da punição por detenção, mesmo que isto não fosse verdade na prática, onde não se produzia nenhum efeito de regeneração individual.
   As técnicas corretivas vêm então fazer parte do aparato da detenção penal, sendo o fulcro no qual se produzirão os movimentos de reforma da prisão, que são, é bom lembrar, contemporâneos ao surgimento da própria prisão como instrumento ideal de punição e correção de indivíduos infratores. A reforma torna-se então o programa da prisão, uma “teoria da prisão”. E neste bojo vem a concepção da prisão como aparelho disciplinar, onde a ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta, inteira, como diz Foucalt: “seu modo de ação é a coação de uma educação total ... esse reformatório integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.199).
   Percebe-se, então, que, junto com os movimentos de reforma da prisão, produziram-se novas técnicas disciplinares, onde o corpo e o tempo dos indivíduos são submetidos a uma coerção disciplinar que vai muito além do primeiro princípio da prisão como pura privação jurídica de liberdade. Essa é a conclusão de Foucalt, e a partir daí é que a disciplina se torna o ideal da correção, ou seja, já não mais a pura privação de liberdade como instrumento de correção ou transformação individual do infrator regenerando-o, mas sim uma disciplina radical do corpo e do tempo para a regeneração. Essa é a consequência da reforma: além da privação de liberdade, é necessário a disciplina total do indivíduo para a sua transformação.
   Segundo Foucalt: “O aparelho carcerário recorre a três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e da hierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo técnico-médico da cura e da normalização. A cela, a oficina, o hospital. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar. E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é a isso, em suma, que se chama o penitenciário” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 208).
   A prisão, então, sob o signo da vigilância total (evocando aí o tema do Panóptico de Bentham, sendo a prisão como o seu lugar ideal ou mais privilegiado ou propício), se transforma de local de privação de liberdade, ou seja, como local de execução da pena, em local de observação dos condenados. Ou seja, a prisão passa de puro local de detenção para o cumprimento de uma pena para “um local de formação para um saber clínico sobre os condenados” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 209). Como consequência, o Panóptico tornou-se, por volta dos anos 1830-1840, o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão, no qual o condenado passa a ser um objeto de saber penitenciário. Por fim, o delinquente torna-se indivíduo a conhecer.
   O delinquente surge em Foucalt como um novo objeto de saber. Para o aparelho penitenciário isso implica uma mudança de foco no ato de punição e detenção, já que não é mais a infração que é punida e condenada, nem mesmo o infrator, mas este novo objeto, ou seja, o delinquente. Este é o novo personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado.
   A mudança fundamental que ocorre com o surgimento do delinquente é que ele se distingue do infrator por não ser mais o ato infracional que o qualifica como delinquente, mas sim sua biografia, isto é, sua vida pregressa, o que implica um novo saber que deve levar em conta o contexto da infração como determinação do ser do condenado agora sob a denominação de delinquente.
   Segundo Foucalt: “O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.211). Ou seja, o legislativo não vai além do ato em si que levou à condenação, enquanto que o aparelho penitenciário insere a biografia do condenado para qualificá-lo como delinquente. O elemento biográfico será a grande novidade na história da penalidade, porque ele faz existir o criminoso antes do crime, o que faz com que a observação do delinquente vá além das circunstâncias em direção às causas de seu crime. “A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 211).
   A partir daí a delinquência é entendida como uma patologia analisada como síndromes mórbidas, onde o criminoso se insere numa tipologia ao mesmo tempo natural e desviante. Ou seja, o delinquente se distribui em classes quase naturais nas quais se estabelece um conhecimento positivo dos delinquentes e de suas espécies, diferenciando-se da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias. Nesse novo saber o que importa é qualificar “cientificamente” o ato enquanto delito, e principalmente o indivíduo enquanto delinquente. Surge a possibilidade, então, segundo Foucalt, de uma criminologia.
   “O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinquente, unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.213). Foucalt conclui, então, que a ciência penitenciária surgiu junto com o delinquente, não foi um que produziu o outro, ou seja, a delinquência é o meio pelo qual a criminologia se impõe como uma espécie de vingança da prisão contra a justiça através da delinquência.
   O principal problema da prisão, ou seja, de ela não diminuir a criminalidade, que deveria ser o seu objetivo e na verdade não deixa de ser, é que o número de reincidências aumenta mais que decresce, ou seja, a detenção provoca a reincidência, a maior parte dos condenados são antigos detentos. A prisão, portanto, não devolve à liberdade indivíduos corrigidos, mas sim delinquentes perigosos.
   Agora, por quais razões a prisão fracassa no sentido de corrigir indivíduos criminosos? Uma das respostas de Foucalt para esta pergunta é que: “A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.222). A prisão, por conseguinte, passa de lugar de correção de indivíduos infratores para fábrica de delinquentes, e esse é o seu fracasso, ela falha no seu objetivo e acaba por criar um estigma sobre os ex-detentos que fatalmente vão cometer novos crimes uma vez em liberdade, voltando à prisão e atestando o fracasso da mesma.
   Foucalt, então, percebe que há um paradoxo nesta questão do fracasso da prisão, isto é, a prisão, há um século e meio, vem sempre sendo dada como seu próprio remédio. Ou seja, a chamada fábrica de delinquentes não pode deixar de ser chamada também de lugar de correção, e aí é que está o grande paradoxo foucaltiano na sua análise sobre a prisão. A prisão passa por uma reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente. Portanto, para Foucalt, a reforma da prisão é desde sempre fracassada. E, então, Foucalt pergunta: “O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.225).
   Se a lei define as infrações, com o aparelho penal tendo como função reduzir tais infrações e, por conseguinte, com a prisão como instrumento de repressão das infrações, o fracasso da prisão em cumprir este papel é flagrante e incontestável. Porém, Foucalt vê neste estado de coisas um interesse sistêmico. O que faz com que 150 anos de fracasso da prisão seja seguido da manutenção da mesma? Foucalt, com esse questionamento, chega então à pergunta fundamental: “Para que serve o fracasso da prisão?” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.226).
   A razão encontrada por Foucalt para tal estado de coisas na prisão é de que a punição de detenção não serve como instrumento de repressão das infrações visando suprimi-las, mas sim com o objetivo de separar, distribuir e utilizar tais infrações no sentido de usar as penalidades como forma de gerir as ilegalidades. Portanto, com este argumento, Foucalt afirma que as infrações são classificadas de acordo com as penalidades que, por sua vez, distinguem as diferentes ilegalidades, umas toleradas e outras não. Nas palavras de Foucalt: “A penalidade não ‘reprimiria’ as ilegalidades, ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral. ... O ‘fracasso’ da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.227). Portanto, a utopia da reforma penal aplicada no fim do século XVIII visando produzir uma sociedade universal que daria fim a qualquer tipo de ilegalidade logo acaba com as novas ilegalidades populares.
   Na passagem do século XVIII ao XIX há o desenvolvimento da dimensão política das ilegalidades populares, certos movimentos políticos passam a se apoiar em formas existentes de ilegalidade. Tais movimentos das ilegalidades operárias eram contra o novo regime de exploração legal do trabalho no começo do século XIX, junto com a ilegalidade camponesa que lutava contra o novo regime de propriedade da terra instaurado pela burguesia. As ilegalidades operárias e camponesas se tornam, por conseguinte, lutas sociais.
   Foucalt, então, afirma: “Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente ‘fracassar’, não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade ... Essa forma é a delinquência propriamente dita”. (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.230).
   A delinquência torna-se um efeito da penalidade de detenção que permite diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades. A delinquência continua sendo uma forma de ilegalidade dentre todas as outras, mas é a ilegalidade que o sistema carcerário organizou e fechou num lugar definido e ao qual deu um papel instrumental em relação às outras ilegalidades.
   O sucesso da prisão para Foucalt, por trás de seu aparente fracasso (que ela fracassou em reduzir os crimes), é que a prisão conseguiu produzir a delinquência, tipo específico e utilizável de ilegalidade. “O sucesso da prisão: nas lutas em torno da lei e das ilegalidades, especificar uma ‘delinquência’. Vimos como o sistema carcerário substituiu o infrator pelo ‘delinquente’” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.230). Ou seja, a prisão consolidou a delinquência no movimento das ilegalidades. E essa ilegalidade controlada é diretamente útil. Mas, por que é útil? Ao se diferenciar das outras ilegalidades populares, a delinquência pesa sobre elas. A delinquência, ao ser vigiada e controlada, torna-se um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes, daí o interesse cínico de ser a prisão um meio onde nasce e se organiza a delinquência, há um interesse político e econômico, ou seja, de favorecer os interesses dos grupos dominantes e de combater as ilegalidades populares. A delinquência torna-se, por fim, um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades.
   Foucalt entende, portanto, que, além de ser fabricada pela prisão, a delinquência tem uma relação direta com a polícia no sentido de colaboração no seu trabalho de vigilância da população. Mas, numa atuação via agentes ocultos infiltrados no campo social, a delinquência ajuda a polícia como observatório político, daí ser esta relação mais uma face do sucesso da prisão, a relação agora se dá numa tríade: polícia-prisão-delinquência. O sistema polícia-prisão se utiliza da delinquência da seguinte forma: “A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares da polícia” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.234). Fecha-se aí o circuito do sistema, segundo Foucalt, tudo no interesse dos grupos dominantes no combate das ilegalidades populares, onde há uma diferenciação das ilegalidades para a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante.
   O que ocorre, por fim, para Foucalt, é que a delinquência é investida pelo poder ao se destacar das outras ilegalidades, combatendo as ilegalidades populares e favorecendo as ilegalidades da classe dominante. E, para este fim, há uma acoplagem direta e institucional da polícia e da delinquência, momento em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder, onde há um deslocamento para as técnicas policiais da prática delinquente que se torna ilegalidade lícita do poder.
   A produção sistêmica da delinquência e a separação dela das outras ilegalidades, sua colonização pelas ilegalidades dominantes, efeitos do sistema polícia-prisão, encontrou, como era de se esperar, várias resistências, provocou lutas e reações. Havia uma intenção de separar os delinquentes das camadas populares, o que foi feito a partir de um processo de “moralização” das classes pobres, formando uma espécie de “legalidade de base”, num momento em que o sistema do código substituíra os costumes. Os jornais populares, por sua vez, passam a combater a “romantização” da delinquência pela literatura de crimes (metafísica burguesa de crimes burgueses), gerando uma desconfiança geral de todo o movimento operário em relação aos condenados de direito comum.
   No entanto, o conflito das camadas populares contra a delinquência não acabou com os chamados “crimes de cima”, ou seja, não acabou com a delinquência dos ricos, fonte de toda a revolta dos pobres. Como diz Foucalt: “Ora, essa delinquência própria à riqueza é tolerada pelas leis, e, quando lhe acontece cair em seus domínios, ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p.239).
   A partir dessa indulgência do poder com o próprio poder, ou seja, da lei com a delinquência dos ricos (que acabam por se tornar uma coisa única, pois os que fazem as leis são da classe dominante e corrupta), há um contranoticiário policial que, então, se insurge contra esta situação cínica e hipócrita, denunciando a “podridão moral” da burguesia, ao invés de mostrar os crimes dos pobres, que, perto da delinquência burguesa, não são tão graves.
   Foucalt conclui, então, sua análise da prisão e da delinquência, afirmando que: “Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão ... Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a acusação de imoralidade, mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente” (Foucalt, Vigiar e Punir, 2007, p. 240).
    Portanto, Foucalt não acredita que o crime seja algo de uma suposta essência criminosa subjetiva, mas sim uma coisa objetiva gerada pela sociedade nas suas relações de conflitos entre grupos que se opõem, no caso aqui da delinquência e de sua utilização pelo sistema polícia-prisão contra as ilegalidades populares e a favor da ilegalidade burguesa que detém o poder. Para ser claro, a delinquência não passa de massa de manobra do poder que então mantém o sistema polícia-prisão mantendo, por conseguinte, a delinquência.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/19020/14/a-prisao-e-a-delinquencia-em-focault