“o poeta vai de encontro a uma poesia incontida e verbosa”
UMA ANÁLISE DA POESIA
DE CESÁRIO VERDE
1 – O REALISMO EM SUA
POESIA
Na sua poesia temos a predominância do mundo exterior, em que
é ressaltada a materialidade dos objetos retratados em seus versos, no que
temos, também, e ao fim, a imposição do mundo concreto, do mundo real, em sua
poesia. E em seu contexto temos o predomínio do cenário urbano, o qual também é
fonte dileta dos escritores que configuram os cenários literários do realismo e
do naturalismo. E, em Cesário Verde, tal nuance poética vai ganhar uma atenção
sempre detalhista e focada em pormenores, tudo isso numa linguagem que também
será popular e coloquial, enriquecendo o aspecto concreto de sua poesia.
2 – O MODERNISMO EM SUA
POESIA
Embora a poesia de Cesário Verde seja de um conteúdo
empenhado na descrição cotidiana, isto é, da vida real ou vida vivida, ela tem
uma instância em que há uma visão subjetiva do poeta ali nos seus versos, e que
pode nos levar ao questionamento de sua filiação como poeta realista, pois
muitas vezes o poeta tem uma visão valorativa na sua expressão poética,
refletindo, ademais, uma sensibilidade estética que podemos situar num
impressionismo pictórico.
Pois, as impressões do poeta é que fazem tal descrição do
real garantir o valor poético dos seus versos inovadores, suplantando o real
objetivo tomado por si mesmo, e tendo aqui o olhar do poeta como um filtro do
que esta realidade nos apresenta. Há na poesia de Cesário Verde uma espécie de
recriação e transfiguração do real quando este ganha expressão poética nos seus
versos, e que muitas vezes pode ser precursora do que viria a ser a estética
surrealista. E, quanto à poesia de Cesário Verde, esta pode ser exemplificada
como uma operação estética em que o vulgar e o feio, formas inestéticas do
real, são transformadas na matéria que acaba por ser condensada nesta poesia
nova. O cotidiano e a realidade trivial na poesia de Cesário Verde são
valoradas como fontes também da poesia, e que no poeta revelam um pendor
subversivo e uma componente sinestésica de poesia, na qual é a sensação que
define os objetos reais.
3 – O ESTILO DA POESIA
DE CESÁRIO VERDE
A poesia de Cesário Verde apresenta, em muitos de seus
poemas, uma estrutura narrativa, com ações protagonizadas por agentes ou
atores, e que muitas vezes tem o caráter deambulatório de uma poesia
itinerante, na exploração do espaço por uma vontade errante, como se
estivéssemos na perspectiva de uma câmera de filmar, na qual temos a fixação
sucessiva de vários planos, e isso sobretudo quando temos o poeta em seus
versos citadinos, que é um passeio obsessivo pela cidade, e também pelo campo,
em outros poemas, que revelam o caráter de uma poesia que podemos chamar de
transeunte.
4 – A TEMÁTICA NA
POESIA DE CESÁRIO VERDE
Na cidade, deambulando pelas ruas e becos, o poeta revive por
evocação da memória todo o passado e os seus dramas; numa espécie de opressão
que lhe provoca um desejo “absurdo de sofrer”, por outro lado, quando fala do campo,
o poeta nos dá toda a sua vitalidade e força telúrica, não sendo um poeta,
portanto, de um convencionalismo idílico, mas alguém que está voltado para a
natureza, os pomares, e o cansaço da família durante as colheitas. O contraste
cidade/campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário Verde, no que
temos a oposição entre um amor poético ao rústico e natural, contra uma dor
urbana que, no entanto, o poeta vive concretamente, sem mais.
5 - A BUSCA DA
PERFEIÇÃO FORMAL
Cesário Verde é também caracterizado pela utilização do
Parnasianismo, pois busca, como esta escola de poesia, uma perfeição formal, e
isso através de uma poesia descritiva que ganha contornos de versos
escultóricos, numa poesia que tenta esculpir o concreto com nitidez poética, e
que nasce de uma necessidade de objetivar ou despersonalizar a poesia para uma
pura expressão, e que resulta numa poesia que se aproxima das artes plásticas,
com alto nível formal e uma intensa utilização de cores e de dados sensoriais.
6 - A POESIA DE CESÁRIO
VERDE E SEU CONTEXTO ESTÉTICO E LITERÁRIO
Cesário Verde tem uma prática poética caracterizada por um
culto descritivo, numa linguagem que prima pela contenção, numa sensibilidade
em confronto com o então romantismo dominante de sua época, e num gosto de
versos erguidos com reserva irônica e frieza expressiva. Sendo Cesário Verde,
também, um poeta contra a retórica, e isto no sentido de que o poeta vai de
encontro a uma poesia incontida e verbosa, confrontando isso numa poesia nova
que se expressa na dosagem sensata de impressões, em linhas e volumes entre o
agradável e o repugnante, entre as alturas da nobreza e uma linguagem
corriqueira, com alternâncias e contrastes diversos, que resultam numa poesia
que faz uma regressão incansável para as ideias fortuitas. E aqui temos também
uma poesia de vivência sensorial, que antecipa as lições antimetafísicas de um
Alberto Caieiro, por exemplo.
POEMAS:
EM PETIZ
I – DE TARDE: O poema do povo liga o poeta a uma
dor mortiça, um confronto que começa em poesia e vai dar no mundo real, dorido
em muitos casos que vemos: “Mais morta do que viva, a minha companheira/Nem
força teve em si para soltar um grito;”. E o poema continua: “Nós dávamos, os
dois, um giro pelo vale:/Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!/E os
fartos animais, ao recolher dos pastos,/Roçavam pelo teu costume de percale.”.
A nitidez cotidiana e a linguagem de uma vida prosaica aqui são os temas
dominantes.
II – OS IRMÃOZINHOS: O poema continua, agora numa visão
pastoril, mas em versão de uma natureza objetiva e seca: “Pois eu, que no
deserto dos caminhos,/Por ti me expunha imenso, contra as vacas;” (...)
“Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!/Os velhos, que nos rezam
padre-nossos;/Os mandriões que rosnam, altos, grossos;”. A ver mandriões, o
poeta tem um certo inconformismo, e uma profunda inquietação, que resulta em
versos de tal monta: “E os pobres metem medo! Os de marmita,/Para forrar, por
ano, alguns patacos,/Entrapam-se nas mantas com buracos,/Choramingando, a voz
rachada, aflita.”. O cenário pobre é de uma dureza de uma vida deserta de
ambições, a não ser a sobrevida num ritual de rotina cáustica, no que o poema
segue: “Querem viver! E picam-se nos cardos;/Correm as vilas; sobem os outeiros;”
(...) “Aos sábados, os monstros, que eu lamento,/Batiam ao portão com seus
cajados;/E um aleijado, com os pés quadrados,/Pedia-nos de cima de um
jumento./O resmungão! Que barbas! Que sacolas!/Cheirava a migas, a bafio, a
arrotos;/Dormia as noites por telheiros rotos,/E sustentava o burro a pão de
esmolas.”. A visão miserável predomina neste poema de esmola, numa vida rota e
desesperada.
III – HISTÓRIAS: O poema se abre com tais versos:
“Cismático, doente, azedo, apoquentado./Eu agourava o crime, as facas, a
enxovia,”. O poeta quer um agouro contra os crimes, e prossegue: “Na noite
velha, a mim, como tições ardendo,/Fitavam-me os olhões pesados das
ciganas;/Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;/Cercava-me um incêndio
ensanguentado, horrendo.”. A visão é de sangue e incêndio, e o poema termina
como um mugido, eis a vida dura, sem mais: “E protegia-te eu, naquele Outono
brando,/Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,/Gritos de maiorais, mugidos
de boiadas,/Branca de susto, meiga, e míope, estacando!”.
POEMAS:
EM PETIZ
I
DE TARDE
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás malhadas e turinas.
Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro,
Leva-o, de madruga, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu costume de percale.
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
II
OS IRMÃOZINHOS
Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha imenso, contra as vacas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobrezinhos!
Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandriões que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moço.
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,
Ou que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!
E os pobres metem medo! Os de marmita,
Para forrar, por ano, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, aflita.
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as vilas; sobem os outeiros;
E às horas de calor, nos esterqueiros,
De roda deles zumbem os moscardos.
Aos sábados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao portão com seus cajados;
E um aleijado, com os pés quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.
O resmungão! Que barbas! Que sacolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noites por telheiros rotos,
E sustentava o burro a pão de esmolas.
*
Ó minha loura e doce como um bolo!
Afável hóspeda da nossa casa,
Logo que a tórrida cidade abrasa,
Como um enorme forno de tijolo!
Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas crianças num casal queimado;
E eu, pela estrada, espicaçava o gado,
Numa atitude esperta e decidida.
Por lobisomens, por papões, por bruxas,
Nunca sofremos o menor receio.
Temíeis, vós, porém, o meu asseio,
Mendigazitas sórdidas, gorduchas!
Vícios, sezões, epidemias, furtos,
Decerto fermentavam entre lixos;
Que podridão cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
*
Sei duma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruça, descalça, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pé dos choupos e dos freixos.
E a doida a quem chamavam a “Ratada”
E que falava só! Que antipatia!
E se com ela a malta contendia,
Quanta indecência! Quanta palavrada!
Uns operários, nestes descampados,
Também surdiam, de chapéu de coco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgraçados.
Muitos! E um bêbado – a Camões – que fora
Rico e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.
E o resto? Bandos de selvagenzinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um que, cortada a mão, coçava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.
Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau e vinha
Chorar, humilde, junto da cozinha:
“Cinco reizinhos! ... Nobres benfeitores! ... “
E quando alguns ficavam nos palheiros
E de manhã catavam os piolhos:
Enquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos cães ladravam, rezingueiros!
Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, das manetas.
Sulcavam as calçadas as muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!
III
HISTÓRIAS
Cismático, doente, azedo, apoquentado.
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besuntão dos tais se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.
Mináveis, ao serão, a cabecita loira,
Com contos de província, ingênuas criaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas
E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!
Na noite velha, a mim, como tições ardendo,
Fitavam-me os olhões pesados das ciganas;
Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;
Cercava-me um incêndio ensanguentado, horrendo.
E eu que era um cavalão, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto,
Sonhava que os ladrões – homens de quem me espanto –
Roubavam para azeite a carne dos meninos!
E protegia-te eu, naquele Outono brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maiorais, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga, e míope, estacando!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/33356/17/o-livro-de-cesario-verde-parte-4