PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

NATAL VIVIDO

Os olhos lacrimejam na fonte da saudade,
bem feliz o natalino céu se emana.
Boas festas sem passar o frio
que ao espanto se dá lá fora, sem carinho.

Brinde quente, à paz da gente.
Noite feliz e meus amigos,
felizes meus camaradas,
minha família.

Aonde todo homem é ilha,
Natal é ponte.
Pois ligam-se os horizontes,
e a neve se aninha
em quente coração,
calor d`alma
que a tudo se abre,
pois do sol que nascerá,
que seja a noite de fartura
ao bom começo da esperança
que a canção nos leva.

Pois é Natal,
à flor da pele
as estrelas
piscam seus brilhos
de presente
aos olhos que veem.

24/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

domingo, 22 de dezembro de 2013

ANA CRISTINA CESAR

“A pesquisa poética avançada de Ana C. é recuperada com justiça.”

   Ana Cristina Cesar (1952-1983) nasceu no Rio de Janeiro, formou-se em letras, foi poeta, jornalista, tradutora e crítica literária. Neste ano agora, de 2013, temos o imenso prazer de ter o lançamento de uma compilação de suas obras completas, sobretudo a sua poesia, no livro que saiu com o título Poética, que, dentre outros achados, recupera obras fora de catálogo há décadas, tais como A Teus Pés e Inéditos e Dispersos, que voltam agora a se tornar acessíveis, através desta reunião da obra de Ana C. que, por seu turno, teve a contribuição de Armando Freitas Filho, Viviana Bosi e Mariano Marovatto. Este lançamento coincide com os trinta anos da morte da poetisa.
   Agora, temos esta nova dádiva para a História da poesia brasileira, a qual já foi brindada com o livro Toda Poesia de Paulo Leminski, e recebe este sopro novo, agora, de recuperação de poetas fora de catálogo, com esta compilação mais que providencial do trabalho poético e literário de Ana C.
   Seu trançado inventivo, de conversa em forma poética, ganha novo fôlego. A pesquisa poética avançada de Ana C. é recuperada com justiça, e vem à tona toda uma prosa de conversa, poemas curtos de fina ironia, trabalhos extremamente originais, que tinham uma voz única e diferente, lá nos idos dos anos 70 e início dos 80, onde o sentido pop, com um caudal de narrativa entrecortada e radical, criava um diálogo com o leitor em vias heterodoxas. E tudo isso vem num conjunto de elementos-personagens que formam um mar que leva o tom intimista de um diário, mas que, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, revela o traço de uma poesia que se estende nesta trama plural de estorinhas, de indagações, reclamações, questões, confissões “inconfessáveis” e expressão estética de riqueza ímpar, muito de original, muito de diferente. Ana C. é uma poeta (poetisa) diferente, não se encaixa num lugar só, uma vez que estes lugares são só dela e de sua poesia.
   Sua linguagem quebra a expectativa comum, é inconclusiva muitas vezes, tem cortes bruscos, retornos sem fim, ou fins que morrem de súbito, voltam, se fragmentam, fazem trançados com pedaços muitas vezes soltos, narrativas dentro de passagens que se entrecruzam formando o novelo que dá no poema em prosa, ou que se descortinam como verso em aliteração. O jogo se impõe, e nada em Ana C. é previsível, sendo esta, certamente, a sua qualidade maior. Ao lermos Ana C., não temos um trajeto ao qual percorrer nela, ao menos prévio. A leitura de seus escritos é uma descoberta, a sensação que se tem é de ter um insight bem bacana a cada remada no seu mar narrativo e poético, leitura leve, a quem tem sentidos para a poesia, não sendo uma leitura para quem quer compreender, mas sim para a fruição de cortes e estalos de linguagem, aos quais Ana C., o tempo todo, te propõe e te desafia. A leitura de Poética é uma boa viagem num texto que se firma nesta fratura existencial, não se dá de todo, e não nos traz, ainda bem, pérolas de sabedoria. A prosa e o verso de Ana C. se instauram na fratura da existência, fratura na qual se dá seu possível entendimento, e tal prosa e verso se conduzem no rasgo de percepção que toda poesia verdadeira exige.
  Nos seus poemas se revela seu traçado, seu trançado inventivo, seu traço particular de diário, tal como na página 22: “Noite de Natal./ Estou bonita que é um desperdício.” Aí temos uma constatação banal, que se conclui com fina ironia, e o poema todo se faz fragmentado, num movimento de ida e volta, se tem o mundo dos objetos, tal como as botas pretas, e a voz feminina numa poesia original. Em “Arpejos” (pg.26), se situa sua fala cotidiana como tom intimista do diário, é a poesia-documento de Ana C. Em 19 de abril, página 34, ela sai toda-toda, “saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura”.
   Na prosa de Ana C., que são de extensão curta, o sentir de um dia-a-dia formatado em linguagem poética aparece, como no “guia semanal de ideias” e no “jornal íntimo”, estes sendo os modos novos em que se dá a poesia de Ana C., cotidiano em diários íntimos, o particular da vida poética que se faz universal ao se tornar também parte da arte literária. Aqui, a poesia se enuncia de um lugar singular, em formas inesperadas, com datas e dias da semana.
   Em “My Dear”, o diário ganha a forma da prosa extensa, com personagens que povoam uma voz que é de Ana C., sob uma ficção em linguagem, que revela os tons plurais de uma vida que se desenrola em relato e invenção, a poesia se dá na prosa extensa de Ana C., fundando o corte de vozes que se fundem neste diário-ficção. Na verdade, não há a menor preocupação do diário em ser real ou não, o escrito vale o que é, o biográfico passa ali, mas não é só isso, o literário se mistura com a estrutura íntima que todo diário deve ter.
   O poema epílogo, por sua vez, sustenta o discurso próprio de Ana C., as famosas luvas de pelica, marca que dá à poesia de Ana C., seus tons de mulher em trânsito, tudo passa dos anos 70 aos 80, Ana C. é fruto de sua época e passa em outra seara por esta mesma época dos poetas marginais, como Cacaso e Francisco Alvim. A fragmentação de orações coordenadas aparece algumas vezes nos versos de Ana C., como em “atrás dos olhos das meninas sérias” (pg.94). Já, “aventura na casa atarracada” (pg.107), revela a força expressiva de versos como: “Te pego lá na esquina,/na palpitação da jugular”, e conclui, com olhar de fera: “olhos nos olhos, e quase testa a testa.” Em “fogo do final” (pg.121-123), mais orações coordenadas, uma sensação de noite urbana, “escrevendo no automóvel”, um encadeamento intricado, “me jogo aos teus pés inteiramente grata/ bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil.” O homem vai embora, e ela diz: “preciso começar de novo o caderno terapêutico.” Eis o sentido da obra, um caderno terapêutico, como todo poeta que se preze, deve ter um. Eureka!
   Onze Horas (pg.145), aliterações tomam o baile do poema, Ana C. forja mais um jogo. O poema da gatografia, por sua vez, é o lampejo criativo sui generis, Ana C. gatografa o poema nesta obra “Poética” na pg.177. O texto de “gota a gota”, por sua vez, é o poema visual com prosa intensa de grito lancinante, “pois chegamos quando nos dispomos a continuar, mas a que custo!” (pg.190), fecha com angústia irônica. No poema sem título da pg.237, discurso fluente como ato de amor, Ana C. faz um pouco da metaliteratura que se autoquestiona, “a chave, a origem da literatura/o ‘inconfessável’ toma forma” concluindo: “não tenho ideias, só o contorno de uma sintaxe (=ritmo)”, e talvez seja esta a busca da poesia, as ideias devem servir ao ritmo, a linguagem se musicografa (gatografa? Ana C.) e se faz ritmo. Na enunciação poética, que é revelação criada, embora profana, a ideia não tem tanta importância, a respiração se impõe a todo poeta que pensa através do ritmo.
   Poemas longos, como “contagem regressiva”, confirmam o fôlego da poetisa, demonstrando que os poemas curtos são parte e não o todo de seu trabalho. Ana C. tem prosa e verso longos e curtos, é completa. Seus passos largos foram para além da moda oswaldiana do poema-piada ou das polaroides dos poemas-minuto que reinavam na poesia marginal dos anos 70. Ana C. é intensa, em um poema sem título, termina, e dá o aviso: “preciso me atar ao velame com as próprias mãos./Sopra fúria.” E, para mim, Ana C. alcança o clímax da expressão no poema 33ª Poética, um desabafo irônico, que começa com o protesto “estou farto da materialidade embrulhada do signo/da metalinguagem narcísica dos poetas”, e propõe: “quero antes/a página atravancada de abajures/o zoológico inteiro caindo pelas tabelas/a sedução dos maxilares/o plágio atroz. (pg.325)” Todo este poema tem uma linguagem trabalhada invejável, todo conduzido numa forma impressionante.

   E aqui termino o relato de minha aventura com Ana C. Fica a recomendação da leitura do livro Poética de Ana Cristina Cesar, mais uma grande sacada, depois de Leminski, para recuperar obras que andavam esquecidas e/ou fora de catálogo. 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

ATRÁS DOS PÉS DELICADOS

Entra aí, my dear. Perguntei por você no Arpoador, seja dor o que a harpa toca, tinha febre de você em Ipanema, procurei suas sandálias pelo Leblon. Nada, tinha música quando te deixei lá sozinha, foi de maldade, a praia estava vazia, beijei um cadáver, ele sorria como quem vivia. Saudade sisuda, respect and fullmoon. Tenho cartas de verão de amores de inverno, tenho inferno em tudo que me bate nos dentes, nódulos de cachaça em minhas mãos, torturas de rum e sevícias de whisky, tenho pavor de vodka, amo limão azedo, amo queijo e vinho pinot noir, uma vida encantada nos aguarda no champs elysée, cada debrum de suas nádegas é uma dose minha de ilusão, e que certa poesia está bem em tua juba de pantera selvagem, como nos tempos em que não se tinha ouro, mas se roubava um bocado, se tinha um tanto de prata sem trabalhar, só com juras aos livros ao recorde do pressentimento. Jogava adoidado sinuca em casas de tolerância, sorvia absinto em toda a rua de miragem, atrás dos pés delicados cheirava as sandálias vermelhas, também tinha as mãos delicadas, mesmas mãos de carícia e de porrada, quando me vi já me encontrava na central, cinquenta centavos, foi o que um barbudo me pediu, eu não tinha nada e ele me xingou e me mandou para o inferno, fui parar na Lapa, um travesti esfregou a bunda em mim, achei que tinha sido roubado, não, ainda tinha dinheiro para uma sinuca, procurei no jardim das delícias as curvas de Vênus num pedaço de revista masculina carcomida pela umidade, bati uma punheta numa esquina suja sem ninguém perceber, voltei e pedi uma dose de conhaque na ladeira perdida, estava todo sujo, mas tinham me lavado as partes depois que tomei o conhaque, fui embora, com as sandálias vermelhas ainda nas minhas mãos, foi em algum lugar que tinha deixado aqueles pés ligeiros, teria que passar uns anos para não mais perder os pés e as sandálias.


18/12/2013 (Gustavo Bastos)

MODUS OPERANDI

Que discurso está no púlpito? Ademanes entre a retórica e o balbucio. Finda está a oração, um tom acima do ideal, o suprassumo indolor que está na letra morta do orador. Calo e olho em volta, um deserto no plenário, se derrama o café no paletó, temos auxiliares por todos os lados, a verba do gabinete é gorda, a mulher garbosa passa com espalhafatos, um espantalho observa na amurada, dorme o senador na sacada, lá fora tem protesto, fogueira e malhação de judas (dentro da burocracia se espatifa o regimento com uma canetada).

18/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SANGUE E PORRADA

Nada que sobra da minha estampa,
só os óculos escuros.
Mordi a maçã,
pulei o muro.
Dei murros, murros,
murros.
Dei socos na janela,
cortei os pulsos,
soçobrei.

Só sobra o velho, a veia, a vela, a velha.
Manjo as minhas belas cicatrizes,
são olhos no tempo
da memória,
lembro do sangue na parede
da universidade,
e os vidros espalhados
da porrada
que tinha dado
sem pestanejar.

18/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SOBRE O MISTÉRIO SELVAGEM

Busquei o selvagem dentro do corpo,
encontrei duzentas almas de fogo,
quinhentos cartuchos de artilharia,
doze leões e quinze tigres,
busquei o selvagem do coração
como o corte da espada
na noite que grita,
como o sangue que ferve
no meio do orgasmo,
saltei o violento oceano,
morri como um dia santo,
e todo o rio que canto
cai azul sobre o corpo
no caos da história,
vingança, assassinato, loucura,
insônia, morte e vida,
todos os silêncios
explodem de poesia
quando a pena
acorda a dor
numa literatura selvagem
de coração
que quer morrer viver
dentro do tremor
que sai do verso
numa noite dia
de manhã na lua.

08/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ESPELHO VIDRADO

A estrada sob a chuva
me leva ao caos da noite,
passo entre os potes de ouro,
vejo uma tumba nesta tempestade
de olhos na morte que espreita.

Os olhos se perdem na noite azul,
qual o corpo em fundo vermelho
que se esvai no mar do tempo
como uma flor que dança
com a maior dor do mundo.

Vai o vento ao norte de meu coração,
fala ao silêncio o estrondo de uma visão.
Cai o silêncio dentro d`alma na areia,
o trovão sobre a noite densa
braveja toda a raiva
do poema que derrama
como a tormenta
que se perde no mar,
meus ossos doem
de tanta água,
meus braços querem se soltar
e as pernas correm,
e meus olhos vidrados
se voltam
aos espelhos
quebrados.

08/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

TRÊMULO

Chamo a voz interior
na capa de chuva
do amor derramado.
Deságua tanta água,
mais rio do delta
ao sorriso
em festa,
calmo danço
com o horror,
flor viçosa
ao caudal ao templo
de teu corpo,
flor dança amor
horrorizada,
pausa florida
ao peito
desarma,
qual nada
de tudo foge,
qual sândalo
ao mais frio da bruma
e do escândalo,
minha pátria
é o teu corpo
nas minhas mãos
que tremem.

04/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SALADA

Sete passos ao flerte,
nada instante
para o meu instante.

Claro a se esclarecer:
alvo alva flor,
morte crava a dor.

Eis a mancha
sob o tédio
que é indolor,
furta-cor
de cobre cobre
o rosto
de um vermelho ácido
de tomate,
de um caos anímico
de cebola,
de uma salada rota
de fetiches.

04/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

domingo, 8 de dezembro de 2013

INCÊNDIOS

"A ruptura espaço-temporal em Incêndios é radical."

   Wajdi Mouawad, nascido no Líbano, em 1968, teve de abandonar aos 8 anos sua terra natal, devido à guerra civil que se instaurara no país. Mouawad foi morar, então, na França por um tempo. Mas, acabou por se estabelecer no Canadá, em 1983.
    Escritor e diretor, Mouawad criou com Isabelle Leblanc sua primeira companhia de teatro, tendo, depois, em 2005, fundado mais dois grupos teatrais, um em Quebec e outro na França. Ainda em 2005, recusou o prêmio Moliére, pois não concordava com a indiferença dos diretores contemporâneos de teatro em relação aos autores vivos.
   Além de dirigir seus próprios textos, Mouawad também montou peças de Shakespeare, Cervantes, Irvine Welsh, Frank Wedekind, Pirandello e Tchekhov. Atualmente, dedica-se a levar aos palcos sete tragédias de Sófocles.
   Em Incêndios, a peça que representa sua produção mais forte, e isso, dentro de uma tetralogia de contornos matemáticos, Wajdi Mouawad estabelece um jogo com o número quatro, sendo Incêndios, a segunda parte desta tetralogia, uma peça que tem, por sua vez, sua divisão em quatro partes.
   Ao grupo de teatro que criou na França, Mouawad deu o nome de "ao quadrado da hipotenusa", e este será o grupo com o qual trabalhará na montagem da peça Incêndios. Assim como nas peças de Shakespeare, Incêndios não tem qualquer limitação de espaço e tempo. Tanto há o deslocamento espacial abrupto, como diálogos simultâneos em tempos diferentes. A ruptura espaço-temporal em Incêndios é radical, sem perder em precisão e naturalidade.
   Incêndios, como a segunda parte de uma tetralogia iniciada com a escrita e a encenação de Litoral, em 1997, não é uma continuação narrativa desta. Incêndios retoma a reflexão sobre a questão da origem. Assim como Litoral, Incêndios nunca teria nascido sem a participação dos atores. O texto, tal qual em Litoral, foi escrito ao longo dos ensaios dos atores.
   A contribuição dos atores para a caracterização dos personagens da peça foi fundamental. Mouawad foi construindo a peça no sentido de revelar os atores através de seus personagens, e vice-versa. O texto se construiu pela reunião dos desejos dos atores pelas mãos de Mouawad. O espetáculo estreou em 14 de março de 2003, no Canadá, com o texto e a direção, por óbvio, de Wajdi Mouawad. Aqui no Brasil, por sua vez, Incêndios estreou no Rio de Janeiro, no Teatro Poeira, em 19 de setembro de 2013. O projeto foi idealizado por Felipe de Carolis, e agora está em cartaz com direção de Aderbal Freire-Filho, com a atriz Marieta Severo fazendo a personagem principal da peça, a mãe dos gêmeos Jeanne e Simon, a sofrida Nawal Marwan.
   A peça começa com o tabelião Hermile Lebel, amigo de Nawal Marwan, que recebe os gêmeos Jeanne e Simon Marwan. Ele está com o testamento da mãe deles, Nawal Marwan, e a abertura do testamento é feita na presença de seus dois filhos. O tabelião tenta cumprir a vontade de sua amiga que já estava morta, e que tinha um "enigma-bomba" para jogar nas mãos de seus dois filhos, ambos com 22 anos de idade. Dentre outras determinações no testamento, havia dois envelopes, um para Jeanne entregar ao pai deles, e outro para Simon entregar para o irmão deles.
   Simon resiste aos pedidos da mãe, e joga a culpa nela por ter abandonado a ele e a irmã. Jeanne, no entanto, quer resolver o mistério, tal como em suas soluções matemáticas. Pois, Jeanne dava aulas de matemática, e, por sinal, todo o mistério da peça Incêndios se dá em torno de uma trama que se fecha como uma solução imprevista, até mesmo dentro da própria matemática. Tal desenlace não será revelado aqui, pois a chave do mistério que leva à conclusão da peça é uma das coisas mais viscerais já imaginadas para o fim de uma estória. Dado isso, abro aqui apenas os determinantes da trama, mas não seus fechamentos.
   Intercala-se, na peça, a trama atual dos gêmeos, com a história passada de Nawal Marwan. A temporalidade, na peça, é dividida no mesmo espaço cênico, aonde os diálogos se dão simultaneamente nesta divisão, e até a própria divisão, muitas vezes, é aparentemente transgredida pelas vozes plurais que surgem nos diálogos. As vozes dos personagens são encarregadas de criar uma dinâmica ensurdecedora e perturbadora, mas a atenção é mantida pela tensão do espaço em que se dá a ação, o espaço cênico é compreendido facilmente, apesar de seu caos aparente. Também há uma dinâmica matemática nos diálogos criados por Mouawad na peça Incêndios, nada está fora do lugar, daí a sua compreensão nada caótica.
   Na peça, Nawal Marwan conhece Wahab, o qual será pai de seu primeiro filho, e este filho será, por circunstâncias da vida de Nawal, criado longe dela. O franco-atirador Nihad, figura que se torna central na peça, é como um ponto fora da curva, mas que será o centro do círculo trágico em que se fecha toda a trama de Incêndios. Seu drama e sua tragédia, junto com a sua comicidade, são o desvio e o encontro em que se dá o desenlace fatal de toda a peça. Nihad aparece no espaço cênico como um contraponto cômico de uma tragédia que mantém a tensão de toda a peça. Nada ali está fora do lugar, como já disse. Nihad segura um fuzil M16, com um walkman nos ouvidos, e toca o fuzil, qual uma guitarra, ao som de "The Logical Song" do Supertramp.
   Abu Tarek, por sua vez, é o carcereiro que estupra Nawal na prisão, pois ela passa muito tempo presa, depois de ter sido capturada por milicianos, e se torna, na prisão, a mulher que canta. E é na prisão que nascem os gêmeos Jeanne e Simon Marwan. O curioso é que Nawal terá dois momentos na peça, uma como a mulher que canta, e outro de um silêncio absoluto. A tensão da prisão e a violência de Abu Tarek, refletem no seu canto que é espanto de dor, e no seu silêncio que é a dor dentro de si. Esse é o destino de Nawal Marwan que, por sua vez, só poderá ser enterrada com a face virada para o sol, ao ter os gêmeos, seus dois filhos, junto com o irmão e o pai, chave do mistério.
   A peça Incêndios teve uma versão para o cinema, em 2010. O diretor Denis Villeneuve conseguiu uma proeza, o filme é um dos melhores já feitos, na minha opinião. Ler a peça, ver a peça montada aqui no Rio de Janeiro, e depois rever este filme incrível, pois já tinha visto esta obra-prima no cinema, me fez entender que não foi à toa que o filme foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O filme dirigido por Denis Villeneuve faz uma grande honra à peça de Wajdi Mouawad. O tema é forte, e tudo que decorreu desta estória, tanto o filme, como, agora, a montagem da peça no Brasil, tudo isso concorre para se fazer uma grande justiça a uma estória que não se vê todo dia e nem em qualquer lugar.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

BANCAS DE JORNAL

   Eu sempre frequentei bancas de jornal, desde muito cedo. Comecei a minha história com bancas de jornal recém-alfabetizado, ia atrás das revistas da Turma da Mônica, era engraçado, pois era uma época complicada de hiperinflação, você chegava para comprar o almanaque da Mônica por 15.000 cruzeiros numa semana (sim, gibis já custaram isso um dia), e na outra semana já estava custando 20.000 cruzeiros, acho que peguei ainda um período de cruzado e cruzado novo, mas, vá lá.
   A coisa começou a ficar boa quando descobri a Mad, fiquei louco por Mad, fui aplicado em Geraldão e Chiclete com Banana também, mas colecionei mesmo, numa primeira fase, e já com assinatura, a Turma da Mônica, que teve um fim trágico. No apartamento novo, para o qual a minha família se mudou, achei que iria manter o meu esquema clandestino de ler gibis da Turma da Mônica no escuro do quarto, depois que tinha "ido dormir". Pois, lia os gibis só com a luz do corredor, o que me rendeu um ano de astigmatismo e hipermetropia de meio grau, e tive que usar uns óculos por um ano, até que não precisei mais.
   Pois então, mantive esta leitura clandestina por um bom tempo numa casa em que morava com minha família, mas, na primeira noite no novo apartamento, eu "rodei" com a minha mãe, e logo, na semana seguinte, ela suspendeu a minha assinatura de gibis da Turma da Mônica, dizendo que eu já não tinha mais idade para aquilo. Foi o fim trágico do meu esquema, da minha assinatura e de minha história com os gibis do Maurício de Souza. (Como é bom lembrar das leituras vorazes do Almanacão de Férias!).
   E então, comecei, já durante esse processo todo, a colecionar Mads, curtia o Ota, o "Respostas cretinas para perguntas imbecis" era o meu preferido, tinha lido Geraldão algum tempo também, nunca fui de Marvel e essa pilha de heróis, gostava do escracho, e isso nunca faltou na Mad, ler a sessão de cartas da Mad também era uma diversão.
   Também tive a minha febre com álbuns de figurinhas, passei por figurinhas Calafrio, o mais foda foi um álbum chamado Viagem ao Mundo, que era bem educativo, outro de terror, com Jason e Freddy Kruger, a Gangue do Lixo, Vamp (a novela), Que Rei Sou Eu (também novela), e vários álbuns incompletos sobre um pouco de tudo. Tinha um de dinossauros, outro de cachorros, um de carros, outro de corrida de carros, e a fase do futebol que todo moleque passa alguma vez na vida, o que me fez saber nomes de jogadores aos montes. E, hoje, me lembro como nós, moleques, sabíamos quais figurinhas não tínhamos, dentro de um bolo, sendo que o álbum inteiro tinha umas 250 figurinhas para completar o álbum, era algo prodigioso.
   Com uns 13 anos comprei a minha primeira Playboy, a da Paloma Duarte, depois uns pornôs, e aí comecei com onda de rock pesado, e conheci a Metal Head, e logo depois pirei com a Rock Brigade, passei a assinar a Rock Brigade por uns anos, com 11 e 12 anos, também tive uma onda boa com a Placar de futebol (na época em que ainda me interessava por futebol, sabia tudo, até os resultados de toda a tabela da Copa de 1994 em que o Brasil fora tetra).  Passou o tempo, deixei a Rock Brigade para lá. E essa história também teve um fim trágico, pois a coleção que eu tinha, molhou toda,  e isso, junto com outras tralhas que, por fim, quando soube, a minha madrasta tinha jogado tudo fora. (Essa de jogarem minhas coisas fora, eu já tava vacinado, perdi minha coleção de latinhas importadas que o meu padrasto bebeu, e minha mãe jogou tudo fora).
   Bom, nos últimos tempos, tenho tido ido muito às bancas de jornal. Compro revistas de política em geral, Carta Capital e Istoé, Le Monde Diplomatique, revistas de Filosofia, descobri a Piauí, que é ótima. Também comprei uns filmes clássicos. Numa época, há uns dez anos atrás, comprei uns pockets da Martin Claret, que agora, tô me desfazendo.
   Sempre tive uma relação muito boa com bancas de jornal. Hoje, você pode comprar uma revista, e ainda tem coca-cola, e um cigarro pra completar o pacote. Perto da minha casa, antes de ir ao trabalho, paro numa banca, e sento num banquinho que o jornaleiro tem na entrada da banca, e fico tomando uma coca e fumando um cigarro  (tenho que largar essas coisas). E tem de tudo um pouco. Hoje, em bancas de jornal, agora tem até cerveja, mas já parei com isso.
   A banca de jornal, hoje, é um mundo que tem tudo. Passa de CDs do Legião Urbana, comprei alguns, os filmes clássicos da Folha, também tenho uns. Sempre tem alguma novidade, hoje compro até cédulas e moedas importadas, tudo na banca de jornal, o difícil é segurar o dinheiro quando estou dentro daquele mundo, é um mundo cada vez mais vasto, com várias enganações, também, vide o número de revistas de Maçonaria e sociedades secretas que invadem alguns tópicos por aí. Tem banca, também, até de Playboy velha, vai ver se achamos as raridades tipo Beth Faria por aí. Tem os livros da LM& pocket, os da Martin Claret deram uma sumida, tenho algumas relíquias comigo, que tô passando para a frente. As Mads, já não tenho mais "idade" para isso, a Mônica e o Cebolinha viraram jovens, e se transformaram em mangás, nunca li mangá, nunca fui de Marvel, mas andei comprando umas Vertigo, que ainda não li. Tô atrás de uns Neil Gaiman, tipo Sandman, comprei a Orquídea Negra, tem uma madrinha que vai me dar sua herança de HQs, tenho agora que reentrar neste universo. Minhas Mads eu não sei como sumiram, ah, foi na tragédia da Rock Brigade!

27/11/2013 Crônica (Gustavo Bastos)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

CARTA AO INVENTOR DA MÚSICA

   Uma outra morte nos dará vida. Neste bem-vindo anátema dos dias fugidos do horizonte. Não quero o emblema da farsa no meu sangue, ouvi os odres vazios, os cacos de blues sob a névoa de jazz. Claro como o silêncio, delirava montanhas no meu passo entre meu corpo e meu espírito, entre a minha dor empírica e minha angústia transcendental.
   Volta e meia dá água, vou ao hospital psiquiátrico, tenho a barriga do tamanho do mundo, o meu punho umedecido, os meus olhos espoucados de riso, meu ventre túmido de pranto. Volta e meia tenho asco de poesia de penumbra, quero a poesia de luz estourada e de sombra macabra. Vejo na água do frio o mar como um grande basalto de limo e de ferro. Tenho asco de poltrões, asco de minudências vis, os asnos de asco que moram fora dos vitrais, os asnos mortos de uma longa dor, estes que estão bem longe das dores de uma flor de ametista. As flores mais úmidas eu as guardei em uma vagina rainha, a queda de debrum de suas vísceras eram bem vivas, me alimentavam e me davam boa capacidade de sonho.
   O poema risonho no mar de urdidura fenecia como bela pintura nos átrios de um mausoléu, fantasmagorias passavam entre as visões, canções de visionários lutavam com seus fogos entre os detritos de uma guerra nuclear. Fecha o blues da meia-noite, na aurora suscitava desdém de febre com o horror das ventanias de música, soldados armados de bombas defendiam os trópicos de duendes frios, seres do gelo contemplavam o frio mais absurdo das notas que caíam nas vinhas mais diurnas, girassol e pecado, revelação e teoria, nada ficaria impune sob a veste dos náufragos, vento e poesia seriam volteios de dança na lembrança de uma chuva.
   Os nazistas seriam vitoriosos na farsa de um ditador, morte e surra na pauta, carne e demônio nos rádios, estoura a boiada, faz-se uma revolução de paus e pedras, uma intifada mais que justa na queda dos déspotas de suma ignorância. Velocidade e ataque, tudo o mais que fosse de verso morreria no mar de overdose, nadamos em esmeraldas sob o luar de loucura, os loucos uivam para a lua, o riso dos loucos é patético, patética é a ilusão dos loucos, os loucos são poetas desgovernados, arrotam símbolo entre as nuvens, morrem de seus símbolos, comem seus fantasmas, ficam na noite à espreita de uma boa porrada. Nada mais claro na dor dos loucos, a música os entoa entre os desejos, entre as canções, e vigas são destruídas por um montante incalculável de sonhos abortados.
   Os poetas fazem a cadência da decadência. O decadente sonha pouco, fala pouco, sempre ou tem cara de mau ou rosto azedo, não faz mais nada senão delirar estultícia sob o governo do álcool, uma cena podre de riso torto, de choro escondido, de grito de abismo sob a lua plangente de sofismas burros, o decadente queria ser grande, mas fala das mesmas coisas e não diz nada, a decadência dos poetas é um pouco diferente, é astúcia entorpecida, inteligência rítmica e verbosa de tanto explodir e resgatar-se de ondas inumeráveis, do vício do espanto que rutila de onde o sonho mais fundo eclode na harmonia do beijo venenoso de um poema bruto como o sol.
   Levita a rosa sob o sândalo vidente. Vento e porra na hora da música, tanto sonho de cal e gesso e fuligem e brilho fundo de alma. Fogo entre os sonhos mais azuis, rosa pálida da negra flor da noite, vento e karma sob a justiça de deidades iradas sob o manto de um monge ressequido. O verso se enumera de coleções de espantos, mas ao espadachim não há nada limitado, honra se dá na nau da palavra como monte no céu de Meru. Shambala anárquico dá as cartas, os olhos são muitos, vento e drama são faces duplas de poesia de espada de corte no coração pelo gelo mais frio da rima e do verdor de tanta bruma. Verso e reverso na noite suja, mais longe vai o grito na dor espetada dos dias. Os poetas do ócio não vão além, pois na escrita tem que ter o sentido da guerra, a morte de guerra, a vida disputada à tapa na farsa derrotada, na faca enfiada dentro d`alma!
   Corrói o espesso drama, teatro de verso na hora da tragédia sob o riso funesto de um delírio que ruma ao norte, o norte da saudade dos vícios cerúleos dos anjos, das máquinas vigoradas na lida mais forte de todas as armas apontadas no fogo do brio com o olho mórbido do poema suicidado que não dá nota fora do fastígio. Emblema, dor e fúria, a pena atávica decifra todos os enigmas como um duende, o mago abissal revela ao terror a bruma na lua dos lobos uivantes como os loucos. Vejo a música tétrica e vejo a lua cheia, nota abissal retinta sob os gritos da penúria que sai dos alvos campos e mata a caça depois de fugir da verdade búdica que cantou num espírito jovem. Lembra: os notívagos iam atrás das canções de amor como flechas dançando entre os corações ciosos de tanto amar, com o corte da madrugada em seus vinhos, com a beberagem e a voragem dos livros estacados entre palavras de mistérios gozosos. A virgem mais linda sorriu como poema de sonoro verso, e a noite se abriu na galanteria, os versos são paixões tortas como o fiel sabor do amor depois da fria mentira que ressoou pelo tempo matado de raiva.
   Me espantei na alma da esfera como fera pútrida de tanto canto em mar de selvagens, com os ossos na urna que ressoa o cadáver entre os potes quebrados e uma ratoeira. Mas que alma mora no sol? Quais os segredos guardados na urna de Da Vinci? Tem poemas estarrecidos de penumbra com flores viciosas na temperatura bruta do cais em tempo de fervura e paixões vermelhas. Venta muito no leste de meus olhos, tempestade que ruma ao sonho alto da viga de aço do terror que rumina entre as frias canções de morte que ainda vivia nos adoradores de Moloque. Venta com a nuvem roxa entre os cantos de funeral num inverno grosso de neve tola nas quedas românticas de mar glacial que congela o poema sob o sangue mais sério da litania. Venta e tudo é tempo na vida da selva, romance de calor vai ao longe falar de flor quando o desmaio é inevitável, caem os espíritos das nuvens que rumam para o oriente, monges fogem de suas cercanias, o monastério fica azul como num bom delírio beatífico.
   Venta ao sul, ao norte venta. Mais poemas caem de meu relógio, tenho poemas caindo por todos os lados, tenho poemas em vento como na dor horizontal que teima em versos verticais. Venta com tudo o que há na mais intensa fornalha dos ares que deliram por todos os rios que veem os castanhos deltas sob a piramidal letra. Rezo. Tenho o vício de tantra em meu corpo com os leves sonhos de asa da vertigem entre os folguedos que rumam ao sul, ao norte, vejo no horizonte flores pulando no fim do mar. Quais ventos me levam ao sul ao norte? Vento que reclama na funda bruma do verão, que grita no vinho secreto do inverno. Rezo em todas as cores de meus delírios atávicos, brota o símbolo de minha pena como um mar tolo de fundo drama que é floração do tempo em tinta de eternidade, flor e saudade, mais a queda dos anjos com cintilantes fenecimentos que caem de rumor e vigor que vem na estrada, tal é a estrada brusca dos ferozes campos de trigo, desterro do deserto amarelo, amar a virtude como a morte saudosa do campo de feno, fadado ao sucesso como a alma mais risonha do sangue que pula no mar azul de safira, mar de sangue, flor e tempo, sepulcro rinha de gládios gaudérios pascácios néscios patuscos parvos patente de todo poema quando afoga na tenebrosa beldade que é berro de morte entre a areia e os olhos da pesca.
   Lembro dos ócios antes da morte, tenho o caos que nem poema pelo canto de mistério que rumina febre nas ondas que invadem o estaleiro na dor da urtiga e no frio dos espinhos. Cai e renasce o sonho de flor vermelha na via macerada das cabeças de ferro, aço indelével mora no peito, e o poema se vinga com as machadadas na cara de poetaços.
   Ruma ao sul, ao norte, qual nau fomentada e de paramentos rústicos como carne e memória. Lenho seco entre os fogos, galhos espraiados na noite de céu estrelado como abóbada na carne e no tempo, memória que ruge em mnemosyne que nem o espanto de renascer com os olhos furiosos na panaceia que levita no sonho do préstito. Bela unção vem o tempo ressoar a estrela maldita que nasce na manhã, enquanto o arrebol canta qual fulminado a dor de seu trovão, venho em mais sal e vigor que o mar, venho com o tempo vertido em mancha de desaforo, em mentira vertida entre o sangue e a espada, entre a faca e o livro, dentre todas as vinhas canto o valor da poesia que nem mendigo diante do fardo de ser máquina entre o total universo e o repleto nada.
   Vingo os filhos, caio sem fé nas poças de estanho e no limo do gás que ruge no ar entre as frações de meu coração, tento abarcar os sonhos vis na canoa que vem do mar com os lírios de ilusão nas mãos, venho que nem estrela na barafunda de um pomar que tem tulipas de raiz e tubérculos na metamorfose dos insetos, venho no mar ao mar e vou ao sol pelo sol para tardar até a lua, o sangue vinga o tema azul das horas mais sujas que rutilam pelo vinho e nas sagradas sacerdotisas do império milenar que é nódoa na vulgar serpente dos dramas que comem as tragédias no vício pantraguélico de comédias excêntricas.
   O vento rumina flor funesta que nem ritmo de muro pintado de cor estranha no palco dos venenos de mundo e de mundo atordoado na tinta funda dos lenhos mais tardos da chuva. Vinho e terror, a paus e pedras se faz todo o monte de lenho, pedras são roladas no átrio do coração em espanto de ferro como certezas de cobre. Venho, e o vento é mais sinistro que todo o mar, o poema é mais veneno que o delírio da serpente, o poema é vício de estrela entre o sol e a lua no eclipse de sombra que aguarda mistério na ventania e nos olhos que acordam entre satoris de sarça e sândalo. Vejo como o poema cresce como flor circense nas odes mais cruentas que podem nascer da pena vingativa.
   O tempo da hora vasta, como filho de Pã sob a lua cheia, tenho meu cenho cortado de palração infinita, sob o leme ao castelo de dor em febre, meus instantes são como sóis, guardo a beleza em forno de ossos. Enquanto a febre dá o calor da morte, tenho o frio sob a noite, e eles, os déspotas, fogem sob a espada com o grunhido louco da ferocidade, cada lado da moeda antiga celebra o punho erguido da viga e da força. Tem toda a hora espetada de espanto, a poesia se emoldura de fracasso, a força não está lá no mundo, a poesia busca desde o eterno sua salvação, e ela, a poesia, se salva própria, de si, uma vez que verso e prosa se fundem no mistério que vem na pena. Não há eterno que se busque, a pena se dá ao fim como ao mítico começo, e o universo se faz verbo e emula em seu sonho um poeta e todas as cores do desespero, um poeta e todas as dores da esperança, os filhos da carne se dão aos montes na orgia, o sal que corre em meu sangue é o poema quando danço, o sal que mora no silente campo de fora, é alma dentro de um poema que se faz carne, e a santidade destes mistérios, ao poema tudo se desvela, e não há chave que a poesia já não conheça, a vidência é o poema em sol com veste lunar, pois à noite o lírio se espanta, e à lira, funda parca, o poema se eterniza.
   Flores rutilam no jardim das delícias, minha alma não se salva de tanta dor, e do amor mais vasto, não se fere aos montes mais gélidos, e da cantoria à música de orquestra, ao fundo da câmara a alma se encanta, e o poema-música de som ao corte de cor e morte faz como sinal e signo de toda uma canção. O poeta está na visão, e os olhos ouvem toda a cor de que o cais vai ao mar, nada sobra senão o som do marulho na dama que dança, e o sol fiel morre de êxtase na lira possuída de sombra, ritmo e farsa.
   Os poemas montam no campo de flor e riso, e o pranto mais doído, se esquece na queda e olvido. Mais, ao terror da febre o poeta se tece, dá tudo o mais, ao calor feérico de seu delírio, e ao frio racional de sua pena. Dionísio se esmera de loucura abissal, e o poema cai refém de toda loucura da imaginação, todas as sabedorias explodem no ventre de morte que ao lodoso vinho os corpos se esfacelam, e a alegoria dos campos elísios era nada mais que o surto visionário que à poesia se traduziu, olho esférico no transe que é hipnose de uma doença de eternidade.
   A alma que tem saudade, no jogo da língua e na torre de luz vai à areia da praia pela liberdade que se encontra com o mar, e da aurora mais funda, o resto do nada ao eterno vai à luta imortal que se fez encampada, e da guerra moribunda a poesia virou corpo e denso karma de canto e música. Nos solos da terra eterna o canto moldou seu ressoar de esfera, e o corpo do som à cor gerou a criação em sinestesia, e o olho semeou a flor de anarquia, e o poeta virou anjo e visão na morte do mar que a onda batizou. O mar feroz se virou ao caudal da prosa. E o silente rumor das feridas d`alma, da flor nascedoura ao rio desceu, como ferro e brasa que na vitória foi liquidada, e o mistério da nuvem densa de amor à tempestade se derramou. A pena faz a História, e o verso se dá ao espanto, sob a jugular da Necessidade:

                             Lírios de morte querem vida,
                             os olhos querem explosão,
                             vinho de meu fel vai ao céu,
                             o paraíso é a rua e a boêmia,
                             vaticina seu holocausto a temida
                             pena de socorrista, nau estrelada
                             que nem vertigem, a noite densa
                             liberta a alma amargurada,
                             de fel morre a estrada sem luz,
                             pois do lume ao vigor do poema,
                             todo mar é música.

(Escrito em dois dias diferentes, pronto em 26/11/2013)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
 

ANGÚSTIA

O espectro retumba na sombra,
sua sede é de alma viva,
a vida lhe dá muito ódio,
o espectro chora e se desalma
qual fundo sopro de escuridão.

Seu corpo já não mais vê,
seu tempo já não mais o tem,
o espectro chora
seu não ter e não ver
em que ele está.

O espectro não tem mais a alma,
a perdeu ao pacto de morte,
e espera,
sob a sombra fúnebre,
um novo sol
que nunca vem.

26/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O FIM DO MISTÉRIO

Faço do tempo o dorso da hora,
qual ferrugem e sopro,
vento e líquido,
ao passar de sua cauda.

Faço da estrada o espanto da manhã,
a esperança do dia é o ritmo do tempo,
o temporal que se funde ao espaço-átomo.

Desde sua queda, o homem não
se vê mais em paraíso,
já se vai longe o delírio de eternidade,
a herança não é maldita,
o mortal se crê em infinito,
e o tempo lhe é a mão que tudo faz,
e o corpo é o fim que o pecado,
origem das coisas,
dá ao tempo suas horas
e às horas o fim do mistério,
como quem faz poema
e nada sabe.

26/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

AS DOZE ESTÁTUAS

Bruma de solitude aporta ao pórtico,
doze estátuas de mármore
vivem sob pedra de escudo,
a defesa da mortalha
acorda o mistério
em flor que se nutre
do mel ao vento de lamparina.

Doze estátuas recordam
suas vidas na estrada,
aprisionadas pelo escultor
sofrem na febre do mármore,
sonham despertas e petrificadas.

Quem mais delira que o poeta
em tirá-las do frio da pedra?
Desafia ao escultor
uma vida em sua goiva,
a dar um coração e uma alma
a estas doze estátuas
mortas sob a dureza
do mármore
na vida encantada
de suas esculturas,
pois ao poeta a pena
revira a pedra,
e o coração que pula de sua pena,
é alma viva à arte
que da pedra se esculpiu.

26/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LETRAS DA PENA EM POESIA

O solo, em teu corpo de sol,
remove a terra da devoluta solidão.
Clamo às fadas o olho do furacão.
Mais que o vigor que se oculta no matagal,
quero ver flechado o meu amor no abismo.

Quantas águas douram ao rio frio?
Que sóis morrem de fundo suicídio?

O mar, tal o esteio da água e sal,
freme em seu violento vento
de onda e tormenta.
Eu sei dos sábios antediluvianos
ressuscitados do sal,
eles atravessam a noite oceânica
com seus corpos de cobre
sob a lua das mortas almas,
e correm com seus papiros
na penumbra do cais
ao mistério da flor da noite.

O sol, em sua fúria de terra,
do sal dá ao solo a sesmaria do caos.
Eu, poeta insano, boêmio e roto,
cato os detritos de versos
que a lua indômita
cantou depois do silêncio
de meus ardores de paixão.

As nuvens de céu vermelho
cantam a poesia na fria bruma,
gotas vermelhas caem
no patíbulo de meus vitrais,
na amurada o afresco saboreia
o lume que desponta da aurora,
e o temor de arrebol que encanta
fecha ao negro da noite,
quando a poesia,
malgrada a hora,
se volta ao vento
de versos que brotam
da corola que,
à copa de uma árvore,
vê o desterro do poeta.

Lembro que a alma se quer infinita,
e de morte se quer lembrada,
uma vez já ao corpo vivido,
dá seu adeus
na ponta da pena,
e a poesia lhe assina.

26/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

sábado, 23 de novembro de 2013

AUSTEN, ORGULHO E PRECONCEITO

"Jane Austen é considerada, por muitos, a maior escritora de todos os tempos."

   Jane Austen nasceu em 16 de dezembro de 1775, em Steventon, Hampshire, Inglaterra. Viveu pouco, pois morreu com apenas 41 anos de idade. Criada numa família que incentivou seu talento literário, desde cedo investiu seus esforços nesta empreitada que, por sua vez, começou a dar certo por volta de 1810 e 1811, com a publicação de Razão e Sensibilidade. Mas, o sucesso arrebatador veio com a publicação do romance Orgulho e Preconceito em janeiro de 1813. Portanto, neste nosso ano de 2013, se comemora os 200 anos deste romance, que era a imagem de uma Inglaterra provinciana do final do século XVIII, um país que estava dentro de uma grande transformação com a Revolução Industrial, mas que, ainda, guardava códigos sociais da nobreza e da burguesia nascente, no meio agrário inglês.
   Jane Austen é considerada, por muitos, a maior escritora de todos os tempos, com milhões de fãs por todo o mundo. Sua escrita concisa, sem floreios, sem a faculdade descritiva excessiva em que pecam muitos escritores, talvez até pela miopia da romancista, coloca Austen no aprofundamento psicológico de uma visão interna de personagens que não são definidos de antemão, mas sim no desenvolvimento do enredo romanesco, pois Austen tinha esta qualidade de determinar o caráter de um personagem mais pela ação. Esta mesma ação é, por sua vez, carregada de significados de personalidade para seus personagens, mas sem colocar, tanto a descrição objetiva de ambientes, como a descrição psicológica em si, como métodos de sua escrita. A descrição, em Austen, dá lugar a uma ação definidora da psicologia dos personagens em função da estória. Ou seja, é o enredo que traz as características dos personagens, e não prévias pontuações do caráter dos mesmos.
   Austen retratava a sociedade em seus tipos medíocres, no ridículo dos hábitos. A vaidade e a tolice de burgueses e nobres ficava evidente nos escritos de Austen, um mundo de aparências era desvelado e examinado dentro de sua própria dimensão, a crítica direta não aparecia, ela era feita na simples demonstração de hábitos e comportamentos que falam por si. Austen não se dá ao trabalho, portanto, de fazer uma crítica da sociedade no sentido usual, sua crítica era a simples enumeração dos costumes, sem tachá-los, só mostrando-os. Os encontros familiares eram verdadeiros  enredos da futlidade reinante num mundo provinciano e alienado, aonde a convenção poderia resguardar ardis da mais profunda hipocrisia. O jogo social tinha o medo individual escamoteado por uma moral de códigos de conduta conhecidos e previsíveis.
   Falando, agora, da obra Orgulho e Preconceito, que completou 200 anos de sua primeira publicação neste nosso ano, e que é uma das principais obras do classicismo inglês, esta tem como protagonistas Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Estes dois são duas criaturas literárias complexas e completas. Pois, em Austen, temos uma obra digna de uma literatura universal. Elizabeth é a segunda filha de cinco filhas, que tem a mais velha Jane, e mais outras três mais novas, incluindo aí, a desmiolada Lydia. Elizabeth é filha de Mr.Bennet, uma criatura irônica, num casamento precário com Mrs. Bennet, que, por sua vez, quer garantir casamentos para as filhas, pois sabe que a propriedade da família, em Longbourn, será herdada pelo sobrinho de Mr. Bennet quando este morrer, já que Mr.Bennet tinha cinco filhas e nenhum filho homem.
   Os personagens de Austen lutam pelo amor, contra as regras sociais da época, dos casamentos de conveniência, arranjados e negociados em família. E, embora as estórias de Austen sejam todas sobre relações familiares, noivados e casamentos, a romancista passa longe de um tom meloso, o que poderia advir de tal temática, naturalmente. Em Austen, reina uma certa objetividade, não há derramamentos apaixonados, tudo se mantém num tom sóbrio e racional, o que irá refletir na relação complexa, em um jogo de tensão, de argumentos sólidos, entre os protagonistas, Elizabeth e Mr.Darcy, estas duas criaturas literárias, de alto quilate, que amam, e que se descobrem amando um ao outro, mas sem qualquer sinal da afetação de enamorados comuns.
   A economia literária de Austen passa, portanto, tanto pela ausência de descrições enfadonhas de ambientes, como pela colocação dos sentimentos do amor no contexto em que se dá suas estórias, colocação que passa o caráter de cada personagem, mais do que o arrebatamento de paixonites imaturas. A maturação da relação Elizabeth- Mr.Darcy se dá na complexidade de um jogo de reconhecimento mútuo, sem o alarde da precipitação, mas com a certificação de um ao outro que se confirma na união dos dois, ao fim do trajeto, recheado de contradições, e que, enfim, são superadas num consenso firme de intenções.
   O pano de fundo do romance Orgulho e Preconceito é o da aristocracia rural inglesa, com burgueses e jovens nobres, dentro de uma sucessão de jantares, bailes e chás, que, portanto, podem denotar o caráter monótono da temática de Austen, embora haja qualidade literária de quilate universal, sobretudo na construção dos personagens, e numa boa qualidade dialógica, o que, por outro lado, facilitou muitas das adaptações de obras de Austen para o cinema, por exemplo.
   Talvez, e esta ressalva deve ser feita, a monotonia da temática seja justificada ao olhar já viciado da modernidade. Pois, o que Austen escreve, era retrato de uma época e de um lugar específicos, com todo o vazio que uma vida provinciana pode comportar. E a própria vida de Austen não teve grandes eventos, mas isso não a impediu de aprofundar o caráter de sua própria época, e este é o mérito de Austen para a posteridade. A temática nos parece banal ao preconceito moderno, mas, não há falta de profundidade em sua obra, este é o paradoxo, e o olhar moderno só pode mesmo ter o referencial histórico para não diminuí-la. As obras de Austen são respeitadas em todo o mundo. A universalidade, em Austen, se sobrepõe ao mundo oco do provincianismo inglês de sua época, qual é o tamanho de sua percepção desses limites, e que referendam suas estórias.
   A riqueza, em Orgulho e Preconceito, está nos personagens, vazios e provincianos em si, mas que, ao menos nos protagonistas, estes sobram em complexidade. A ambiguidade do orgulho, em Mr.Darcy, leva Elizabeth, à primeira impressão,  a refutar possíveis qualidades naquele homem. Então, tudo piora, na sua ilusão da estorinha chorosa de Mr.Wickham, que difama a reputação de Mr.Darcy, a deixando convencida do caráter duro e orgulhoso de Mr.Darcy, o que, no decorrer dos acontecimentos, cai por terra, ao fim do trajeto do romance, e toda a consideração de Mr.Darcy em relação à Elizabeth se demonstram sinceras, e é aí o ponto de inflexão que redime Mr.Darcy aos olhos críticos de uma profunda Elizabeth.
   O humor e a comicidade, no romance, ficam por conta do pai de Elizabeth, o Mr.Bennet, que pontua suas falas com ironia, e até uma despreocupação imprudente, em comparação ao desespero da própria esposa, e a afetação caricatural do primo de Elizabeth, o Mr.Collins. A cumplicidade das duas irmãs, Jane, a mais velha, e Elizabeth, a segunda mais velha, também é um nexo importante de todo o romance. As duas são as irmãs que pensam, enquanto as outras três irmãs são influenciadas pela irresponsabilidade da mais nova, Lydia, que chega a fugir com Mr.Wickham, até que os dois são encontrados, depois de alguns contratempos. Mary gosta de ler, e Kitty reflete Lydia. Charles Bingley é um dos melhores amigos de Mr.Darcy. Bingley tem um caráter leve em comparação com os gestos duros de Mr.Darcy, que, por sua vez, dissuade Bingley de se casar com Jane, o que deixa Elizabeth furiosa com Mr.Darcy por um bom tempo, sendo, ainda, alimentada pela estória falsa de Mr.Wickham em relação ao mesmo Mr.Darcy. Jane, a irmã mais velha de Elizabeth, tem um caráter condescendente, tende sempre a amenizar as desconfianças de Elizabeth. Jane tenta ver o lado bom de cada um, antes de julgar negativamente. Este caráter bondoso, e até inocente, de Jane, conduz seu trajeto junto com Elizabeth, que é o contraponto de resistência em relação às ideias de Jane, pelo romance, como um bom equilíbrio entre ela e Elizabeth, formando outra dualidade interessante no romance.
   E duas dualidades se compõe ao final, com o retorno de Mr.Bingley, e seu casamento com Jane, e a união amorosa de Elizabeth e Mr.Darcy, uma união forte dos dois protagonistas, que são, não por acaso, os personagens mais ricos e complexos de Orgulho e Preconceito. Aqui, deixo duas definições possíveis ao romance de Austen:  Elizabeth como o senso crítico, e Mr.Darcy, como a ambiguidade, em gestos que escondem uma constância de caráter admirável, que pode, muitas vezes, ser levada por uma aparência arrogante e orgulhosa, o que ilude a própria Elizabeth por um tempo, até reconhecer nele um mundo muito maior do que a aparência hipócrita das convenções familiares. O orgulho de Mr.Darcy era um preconceito de Elizabeth, agora os olhos veem e tudo é claro, Mr.Darcy tem uma clareza essencial, à qual o mesmo senso crítico de Elizabeth tem que dar seu veredicto positivo, depois de tudo.
   Termino aqui, com uma citação do romance Orgulho e Preconceito, sobre o orgulho: "o orgulho - observou Mary - é um defeito muito comum, , creio eu. Por tudo o que tenho lido, estou mesmo convencida de que é muito comum que a natureza humana manifeste uma tendência muito acentuada para o orgulho, que são pouquíssimos os que não alimentam esse sentimento, fundados em alguma qualidade real ou imaginária!"

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/14106/14/austen-orgulho-e-preconceito

sábado, 16 de novembro de 2013

CAMINHO DO BEM VIVER

Trago a felicidade em minhas mãos.
A felicidade não é o mistério do universo,
é muito mais simples,
muito mais fácil.

A felicidade não é um sonho metafísico,
é um senso prático de oportunidade,
o pragmatismo da sensação
de bem-estar
sem nenhuma razão aparente,
é ter na razão e na emoção
o equilíbrio do sentir-pensar
do coração e do pensamento
como a senda unívoca
da alma completa,
ser feliz nem sempre
é ter grandes ambições,
é tê-las, as grandes ambições,
como frutos da alma, da bondade
e da sensatez,
e não como a queda do megalômano
que sonhou em ter o mundo
e foi expelido pela cloaca
deste mesmo mundo,
ser feliz, alcançar a felicidade,
é ter a plenitude
de ser tudo o que
completa a jornada
de existir.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O PENSADOR

Tenso, gravo o nome do pensador
na lápide das horas mortas.
Tinha pensado na figura e no busto
do pensador,
nos pensamentos que ele pensou,
nas teorias, conceitos, cálculos,
conclusões, dúvidas, caminhos.

Eis a obra principal,
eis os comentários,
eis uma antologia.

O seminário sobre
os pensadores obsoletos
e a moderna florescência
foram gravados
por um discípulo fiel,
cada verbo registrado
em sua voz viva.

O pensador morreu,
e de ter pensado
em várias coisas,
um único pensamento se deu:
a vida pensa e age,
o poema é só
 a certeza de nada.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

RAZÕES DO SENTIR

Claro o corpo que se funde ao espaço.
De teus braços e pés
o abraço em uníssono,
os corpos vorazes
no vozerio da paixão,
os dias lilases
de corpos nus
em santeria
de ervas
sob a noite
de areia
e clarividência,
a flor da ciência,
a fortuna da sabedoria,
todas as filosofias
num ósculo
de convergência
ao sentido unívoco
do mundo
que é tangido
de corações
aos pulos
pelo inesperado
do destino.

Este é o tempo limpo,
a clareza da ideia
amante que rutila
em toda razão de vida.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

MARÉ DE SOL

Cheiro de maresia ao dia da maré.
Quem tem fé é sacra lida,
sacrifício de medida,
tempo de poema e sol.

Com os vinhos tintos da litania,
cai e sobe o mar,
ventre do frio lunar,
vem e vai maré cheia e vazante,
a dor espera o instante,
a flor desperta adiante,
e o calor refaz o caminho
que ao largo do silêncio
o poema se faz mirante.

Cheiro de bruma no rio das léguas,
caminho de vinho pelo ardor
que gera meu mistério de alegria.
À flor suada o bem-te-vi faz festa,
bem rica nasce a onda na enseada,
o plano divino delineia toda estrada,
já é o poema ao qual o tempo
vê no espaço infinito
todos os versos
da fúria que ama
todo alvorecer
de que o sol
refulge.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

AMORES LUNARES

Frutifica o tempo
em vão de paixão
ao frio e ao calor
dos instantes noturnos.

Poema devaneia verso loucura e grito,
silencia o termo calado
depois do surto,
garante o estro à flor ferida,
e divaga mistério
nas cãs da alma de lua.

Ao poema o ardor fulgura
sempiterno céu de fundo amor.
Qual queda o plenilúnio
dá lugar à lua nova,
e já na mirada do minguante
faz crescente
o amor refeito
que senti.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LUZ CONCENTRADA

Desfecho, nesta luz incontida
que ilumina a noite fria.
Olho os meus topázios,
desafio o cobre e a prata das armas.

Intenso é o segredo marmóreo
de meus silêncios.
Diante do timbre a voz rouca,
em fio de meada o ensejo das cordas.

Flecho o fecho do coração convulso.
Digo e desdigo a paixão que
dá volta ao mundo,
caio mudo e desnudo,
picho um muro
de tinta azul,
e o amarelo da parede
dos dias
corrói
a tez alva
do meio-dia.

Conjugo o verbo amar
como desarmar,
e o coração noturno
fecha e contorce
o sol que mora
no poema que dá
o sentido da dor.

16/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

ENSEADA DO TEMPO

O mar não esmorece de teu calor de oceano.
Tal poema fustiga os demônios,
a sombra da intempérie
recava a sua queda e decadência,
as palavras soltas flutuam
ao tempo do versejador,
o poeta crê na nuvem
de sua loucura,
o tempo antevê
o visionário,
e o poema tudo vê
ao olho do vinho
que sustenta
as esferas
do céu limpo
que ilumina
a poesia.

O mar ignora tal tempo de ferro,
e no sal qual esmero,
faz continente
e terra de enseada.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

VISÃO DE PAISAGEM

A paisagem desfigura a razão,
nota por nota o cais descansa,
e a paz da penumbra foge ao sol.

Leve o susto cai da razão morta,
e o sol, qual flecha de loucura,
espanta a noite com seu dente de luz.

A paisagem, tal o temor da fúria,
cai ao silêncio como funda esmeralda.
O sol, ventre do solo fértil,
faz chuva com o poema de fausto
que avança sobre o trigo queimado,
e forte o poema se volta
ao vento que sopra
do infinito
dos mares
da visão.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

CONTO DA FADA

Fada-madrinha, de teu mel
ao teu mal quero-te todo o bem
da fauna real.

Floresta do encanto,
me traz a honra do poema
do pó alucinógeno
de tuas asas,
fada-madrinha,
sei que estás
no sol e na nuvem
como quem quer
meu todo
d`alma
à flor
d`aurora.

Eis teu rito e magia,
fazer de mim
mais poeta
que todo drama
visceral da vida.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

TEMPO INCLEMENTE

Diante da vida, tardo nos meus lençóis.
Faço hora com a danada manhã.
Corro pelo vento à hora exata,
e o tempo me combate
e eu combato com o tempo.

Fauna rústica é o grito da cidade,
passa passaredo em revoada,
uma noite a mais no meu canto ébrio,
uma paz de verso no cantinho do meu quarto.

Eis tudo, o poema e seu topázio,
a poesia que rutila ametista,
o pó do vidro que torna diamante,
e o amante com rompante
de dor e êxtase
na noite suja
do sangue
que a boêmia
bebeu.

14/11/2103 Êxtase
(Gustavo Bastos)

A RUA E AS TRÊS IDADES

Atravessar a rua para um menino
é aprender a olhar para os dois lados.
Todo menino comportado aprende isso
e depois sabe que só se atravessa
com o sinal vermelho.

Os adultos, por sua vez,
calham a correr,
deixam os meninos
atrás,
furam fila
e andam na pista
sem olhar
e no sinal verde.

O velho, já de bengala,
volta a olhar os dois lados
e o terror do sinal vermelho
lhe avisa que ele tem
trinta segundos
para não ouvir
buzinas
no meio da pista
do espanto
de um atropelo.

O velho chama o menino para atravessar,
e um adulto corre sem mais.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O OLHAR DE UM GATO

O gato passou debaixo da mesa de jantar,
viu em espírito a total família da casa,
pulou e agarrou um vulto
que ninguém viu,
o que seu olho de gato
viu é o fundo da parede,
é o mistério envolto da xícara,
é o riso imaterial na janela,
é o quadro em sua tinta forte,
é a criança fascinada
que tenta lhe pegar pelo rabo
enquanto corre
atrás do vulto
como um berro de miado
que a família
pensou que fosse
fome e não
vidência.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ZÊNITE

Eu vejo o andor e o sol me castiga.
Lá bem longe a máscara fere o poema.
Tal é o senhor tempo
da pura magia ao tambor,
sete índios se pintam
para a guerra,
e os tambores são gritos
dentro do corpo da floresta.

São juncos terríveis
os castelos invisíveis,
são fantasmas os temores
da ayahuasca,
e é vermelha a pele
que o poema
maquina,
sob as intempéries do caos
a cal e a penumbra,
e as asas movediças da paixão
socorrem a infausta queda
da qual a poesia
se levanta,
e mais tambores tocam
com a dança do sabá
de fogueira
na noite
dos lírios
que versejam
no zênite do amor.

Flautas doces ressoam nas nuvens.
O mar está longe da funda mata,
a guerra entre as tintas de urucum
são brios atávicos
de música de totem,
e as flechas são coroas
do corpo ferido
de oceano infindo
d`alma.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LAGUNA DOS GIRASSÓIS

Laguna, que semente a tua bruma
do musgo e da verve clama,
e os sóis fugidios na quentura d`alma.

Paz armada, da luz ventilada.
Meus livros são senhores
do tempo firme da visão,
a febre visionária
que ao caudal da chuva
luta com o cibório
em fogo de púlpito,
tal é a guerra da honra
em seu corpo belo de bronze e ferro,
ó poeta, tens o sal em tua roupa,
qual o pântano dos dizeres
no qual renasce a penumbra?

Faz o tempo o ar e o estalo
das flores com tão bento acalanto.
E as sombras rotas, de fios lassos,
não têm poder sobre a lua
nos teus girassóis.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O LUGAR PRÓPRIO

De pouca monta o ardil que nos cala,
o fruto do silêncio que
fulmina a verdade
é o triunfo da ignara
senda ao nada.

Da mais temível febre
o espanto e o medo,
e tal covil espantado
da morte oculta
o poema também cala,
e o calor sob o mistério podre
da canção enumera
a vala dos números
de um cadafalso
já mentido sob juramento,
e o justiçamento do sangue poeta
dá de ombros aos feitiços
de ardis que enfraquecem,
e o tempo-rei dá o riso e desdém
deste mundo oco
de tanta lida sem eira nem beira,
uma vez que poema e poeta
sempre souberam
onde estão.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

MISTÉRIO DO PÂNTANO

Todo pântano dos silêncios
ressoa sobre o grito calado
do húmus e do musgo,
deserto verde de serpente,
funda brisa úmida de tempestade.

Tarde, ao largo do rio,
dorme o espanto de pranto
que nem o corpo de um déspota,
seu mando de sangue
é o rito que fere a fria luz,
e o albor do eldorado
dorme sem sol à mostra,
tal luz de utopia
se esconde em mata densa
e o fim do mistério
não tem nada
do que afirma o tempo
e suas vãs cartas suicidas.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ALMA LÍQUIDA

Concentra o ar na lida da fumaça.
Dos ases sobre o céu,
a clemência da artilharia
diante do peito nu.

Perde-se em verso o tempo da luta,
perde-se toda luta
sem o verso da contenda.
Queda e mistério é o terror da dança,
 febre e tumor é o riso torto do desespero.

Vai o ar sob fumaça e o tempo na desrazão,
ceifa o coração a garra da loucura,
crê o coração na alegria do caos.

Parte ao meio o coração o peito rasgado.
O poema se esfumaça
de tanta dança
ao coração
que vira água,
e o luto fundo
do corpo já morto
revive
e roda
qual
chuva
de tormenta,
o corpo desigual
de uma alma líquida.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

DA VOZ SUCUMBIDA

Quem à dor tem a voz sucumbida?
De flores o ardor mais cândido,
soçobra o ferro da morte
no corpo indócil,
e encontra no meio do mato
o doce fel de aço à flor mastigada.

Quem ao sol o vento exulta?
Pois, do ar doente do frio,
o vento, sentimento de sopro,
acorda o dia, tal aurora perdida,
como sinal da luz sobre o silêncio.

Quem, d`alma funda, corpo em bronze,
sede à sede a vã paixão?
Sente o poeta tal risco de luta,
e que luta a batalha da senda,
e que funda tal poesia
que inda quebrantada
de coração em punho
com as mãos furiosas
de tanta briga,
e o sonho ferido
de tanta queda.

Vai firme, e o passo largo
como um continente, e o poema reto
como uma faca.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SOL DE ÊXTASE

Puro nada é o êxtase,
ao fio d`água o bronze e o sol.
Cama, louça escura da fome,
vai de teu sexo ao meu sexo,
corpo derrama.

Desdém é o nada em seu fundo,
paz edulcorada e sem estrada,
êxtase é solidão,
sem amor e sem flechada.

Cai da carne o carnaval,
seu vento puro nos enleva,
de corpos tais os sais fulguram,
orquestra maestra da festa,
corpos tais de carnavais.

Puro tudo é o triste lamento,
de tudo a litania ressoa,
ao nada e ao mar
o êxtase dissolve,
dissolução romântica
é o poema,
e de outro lado
o corpo que intumesce
ao brilho do bronze e do sol,
ao fio d`água
da sede que morre
 de mar.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PASSADAS

Ao passo do que anda,
tudo vai a pé.
De todos os dias passados,
flor d`água cai em pé.

Mesmo dia de labuta,
mesma praia da ausculta.
Peso o corpo na água,
sou tão ali como aqui.

Peço ao vento o lasso calor,
do frio o vento traz albor.

Ferve a morte na onda,
o nada se compraz da tragédia,
como no auge do verso
sob a capa da chuva,
com o verso sob o sol
que no meu corpo luta.

Em todos os caminhos
se vai a pé e todo caminho
vem do andar que não tem fim.

14/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

CONVERSA COM UM TELEPATA, DENTRO DE UM HOSPÍCIO

   Certo dia, isso já tem uns bons dez anos, resolvi passar uns três dias dentro de um hospício para fazer uma reportagem. Ela rendeu boas histórias, algumas delas até viraram contos pequenos, mas uma em particular me chamou atenção, e me remeteu às viagens de William Burroughs atrás de seu Yage, erva que continha a chamada substância da telepatia, a telepatina. Dentro do hospício, descobri, no meu segundo dia lá dentro, que havia um homem de uns 40 anos no quarto 12 que, segundo outros internos, era um mago. Depois, consultando o seu psiquiatra, descobri que era um sugestionado místico, que o paciente se julgava em transe espiritual e que tinha a faculdade de telepatia.
   Pedi autorização ao psiqiuatra para conversar com seu paciente que, por recomendação médica, passava a maior parte do dia sedado, numa cama, dentro do quarto 12. Fui até lá de tarde, que é quando o paciente em questão era liberado para o almoço, e que, após a refeição, podia passar umas horas da tarde interagindo com os outros pacientes daquele hospício. Fui até ele, vi que tinha um olhar do que, no espiritismo, que bem conheço, se tratava de um obsediado já em estágio avançado de fascinação. Fiquei uns bons dez minutos só olhando para ele, antes de abordá-lo, reparando na sua linguagem corporal e no seu diálogo com os outros internos: "Vejam só, eu tomei quinhentos ácidos em um ano, mas o porre mesmo foi o Yage, depois do peiote não deu nada, depois da ayahuasca não deu nada, mas a telepatina me deu o poder, posso ler todos os seus pensamentos, eu sou o dono desse lugar aqui, posso me comunicar com vocês através da telepatia, tomei telepatina e meu terceiro olho abriu, man!" Ao que outro interno respondeu: "Você é o mago, é? Me mostra sua chama vermelha, me mostra sua chama vermelha!" Outro, ao lado, começou a rir e falou: "O mago tá louco, depois somos nós que somos doidos!". Ao passo que o mago respondeu: "Posso ver o teu pensamento, tem um monstro dentro da tua cabeça, meu caro discípulo, invoco mamón e moloque, tenho a espada da justiça em minhas mãos, meu poder astral é magnânimo, vou me concentrar a criar o teu fogo interior, só um minuto e teu monstro vai sumir daí!". O outro paciente retruca: "Você é o mago, mas não me comanda, daqui a pouco vão te pegar e dar um sossega, você é besta, muito besta, até um metido à besta!".
   Olhava aquele diálogo surreal e incrível, e então, finalmente, me aproximei do mago para conversar com ele: "Fala mago! Como você está? Ouvi dizer que tu tem o dom da telepatia? Poderia me mostrar como isso se faz? Também posso me tornar um telepata?" "Ainda bem que você crê! Tenho esse poder da telepatia sim, você quer ver?" "Claro, sou médium e só me falta o dom da telepatia para que tudo funcione para mim." "Então vai lá, se concentra, vê o que estou vendo? Embuti uma flor de lótus dentro da sua cabeça, posso ver os seus pensamentos, agora vou lhe enviar um tipo de pensamento, e você me diz se recebeu." "Opa, peraí, um minuto, mais um minuto ... ahá! Agora eu vi, você pensou numa serpente lutando com um porco, não foi?" "Eh ... sim! Sim! Você entendeu tudo! Tá vendo como sou um telepata! Eu sou um telepata! Eu sou um telepata!" "Sim, você é um telepata!" "Eu sou o dono deste lugar, ouço todos os pensamentos de todos que estão aqui dentro! Eu sou um telepata! Tá vendo aquele gordão babando ali no meio do pátio? Ele tem o dom da cura nas mãos, ele é meu servo, sou o mago e sei o que ele está pensando agora, ele só pensa em coisas com bacon, seu corpo clama por bacon toda hora, olho e vejo um porco no lugar de sua alma." "Cara, isso é demais, vamos lá falar com seu servo, que tal?" "Claro, eu sou um telepata! Vamos lá que vou ouvir o pensamento dele e falar o que vi dele para você."
   Bom, àquela altura já sabia que a fascinação espiritual do autointitulado mago e telepata era um perigo para ele mesmo, sabia que seria muito difícil que ele saísse daquela trama psíquica, e que o máximo que podia fazer, como repórter que sou, e não como psiquiatra, era embarcar na onda pra ver até onde ela ia, e foi o que eu fiz, fingi ser um crédulo, "mais um discípulo". O mago também, a meu ver, tinha um problema sério de ego, sua crença em si mesmo parecia um tanque, ele era o dono de tudo, ao menos naquele lugar, mas, concretamente, não passava de um dos pacientes de um hospício, e pior, vivia a maior parte do tempo recluso, não se sabe e nunca se saberá o que passa exatamente por sua mente quando está sedado e recluso no quarto 12, nem o que sonha quando está dormindo, e nem o que tanta medicação provoca e o que tanta droga alucinógena provocou até ele chegar a este ponto que, agora, eu estava vendo.
   Fomos até o seu discípulo, o gordo babão, para mais uma exibição dos dons do mago telepata. "Eu sou um telepata! Todos aqui são meus discípulos, eu sou o dono deste lugar, ouço todos os pensamentos daqui, vamos aqui, eu sou o mago e vou ler seus pensamentos." Se dirige ao gordo babão, "Eu sou um telepata! Agora vou me concentrar e olhar dentro de seu pensamento. Você está pensando em bacon, sempre pensa em bacon, não é verdade?" "Eeeeu tô pen pen san dôôôô ah ah ah ah! Bacoum bacoum magôôô eue tô pensano ou ou ou ou .... blah!" "Tá vendo, ele só pensa em bacon, toda hora ele só pensa em bacon, eu vi seu pensamento, ele tem a alma de um porco, um espírito está a seu lado, sua vida virou uma obsessão por bacon, ele nem fala direito mais, é meu servo, me serve taças de ouro maciço com vinho à meia-noite em um de meus banquetes reais. Faço magia negra dentro do meu palácio. Eu sou um telepata! Eu sou um telepata!"
   Bom, depois daquela cena horrível de humilhação contra o gordo babão, pelo mago ególatra, deu quatro horas da tarde, e então dois enfermeiros recolheram o mago para tomar injeção, e o telepata em questão voltaria, pelo resto daquele dia, às trevas de sua reclusão no quarto 12. Da minha parte, produzi uma reportagem, algumas partes eu poupei para não chocar, e aqui está meu relato da principal história que vi dentro do hospício, foram três dias de uma experiência bem curiosa, como se fosse uma antropologia da loucura, muito mais do que o intuito da reportagem em si, ou de possíveis e forçadas psicologizações que não dão conta do fenômeno humano. E foi isso que eu vi lá, a natureza humana, talvez até mais amplificada por uma dor entre anestesias inexplicáveis.

13/11/2013 Crônicas (Guilherme Thompson)  
 

domingo, 10 de novembro de 2013

PULPHEAD, ENSAIOS DE SULLIVAN

"Há uma liberdade literária muito maior nos ensaios contemporâneos, e isso fica claro, no caso de Sullivan, em seu Pulphead."

   John Jeremiah Sullivan, norte-americano nascido em 1974, em seu segundo livro, Pulphead, de ensaios, se revela um talentoso contador de histórias, que tomou da ficção muito de sua veia ensaística. Com textos em revistas como Harper`s, GQ, The Oxford American e The Paris Review, tem sido comparado a Tom Wolfe e David Foster Wallace. Com uma prosa flexionada em torno de seu tema, assume dicção oitocentista americana, num eco de Emerson e Thoreau. Ao contrário da trama bem cortada de Tom Wolfe, Sullivan desenvolve seus ensaios através de uma trama que leva à diluição de sua prosa, esta mesma que, por sua vez, carrega o tema de modo desordenado, pois temos aqui o viés do romance dentro do ensaio contemporâneo, que toma seu método no tema que se espalha pela prosa, tal como num romance, e a trama não se fia em exatidão racional.
   O ensaio americano em revistas, tanto no texto longo como no ensaio crítico, floresce, atualmente, em condições novas, superando uma falsa nostalgia intelectualista da Nova York dos jornalões da década de 1950, pois nada faltaria a nomes como Edmund Wilson ou Alfred Kazin, nos dias de hoje. Revistas surgem, como McSweeney`s, n+1, The Point e The Common, e outras antigas aparecem reformadas. As revistas tomam o lugar, na crítica, dos jornais, os quais evaporam. O ensaio contemporâneo aparece como uma fronteira que supera a novelização, e se coloca no modo fragmentado, que tira o enredo e segue o fluxo, e que, numa fratura de parágrafos numerados, deixa-se de lado a verossimilhança, e põe-se no lugar uma relação imbricada de realidade e ficção.
   No ensaio contemporâneo, o autor deixa de lado sua impessoalidade na segurança da terceira pessoa, tendo então um autor que entra e sai, transgredindo a estrutura tradicional da ficção. Há uma liberdade literária muito maior nos ensaios contemporâneos, e isso fica claro, no caso de Sullivan, em seu Pulphead. É a nova prosa ensaística, que usa de técnicas retiradas dos truques da novela e do romance para negá-los, liberdade que passa por irrealidade ou a pura falta de qualquer definição categórica do que é real, num misto e paradoxo que não se desvela em unidade de percepção, permanecendo a dubiedade, uma vez que até a temática do reality show, por Sullivan, em um de seus ensaios, denota o fracasso desta distinção entre realidade e ficção, no mundo contemporâneo.
   Sullivan, embora posto pelo crítico Geoff Dyer, como um ensaísta fora de moda, tem seu talento no ponto exato da questão do real que passa pelo mundo contemporâneo, pois é no nexo de criar na realidade a ficção que Sullivan, portanto, consuma seus ensaios, numa aparente ficção criada a partir de dados reais. O ensaio de Sullivan joga de propósito com este duplo sentido e o coloca como fratura que é nada mais que indefinição, e que busca o real, apesar desta cisão contemporânea. "O realmente real" de Sullivan é afirmado e, paradoxalmente, questionado o tempo todo. Sua ficção é real, pois se funda em fatos reais de reportagem, à exceção de um ensaio malsucedido sobre animais em fúria contra humanos, deste mesmo livro Puplhead, que é um caso isolado de tentar uma ilusão de fato. Em Sullivan, ao fim de Pulphead, fecha-se a chave dupla do ensaio contemporâneo, pois, pelos escritos de Sullivan, esta chave bem atual do conceito de realidade não nega que haja, na forma, em tais ensaios, ainda uma prosa clássica ou oitocentista.
   Destaco três dos ensaios de Sullivan do livro Pulphead. Um sobre Michael Jackson, outro sobre Axl Rose e o último sobre Bunny Wailer. Começando pelo ensaio sobre Michael Jackson, que tem seu início num Michael no dilema entre as músicas encomendadas de seu grupo com seus irmãos nos Jackson 5, e a ambição que levaria Michael muito mais longe do que aquele início, e que, numa busca de seu instrumento interior, o leva ao estrelato. Pois, desde sua visita aos ensaios musicais de Stevie Wonder, sua curiosidade e sua intuição se tornaram as sementes que produziriam o maior astro pop da História. E tal História se firmou, de forma polêmica, numa ambiguidade de cor branca ou negra, que era um conflito de sua imagem, mesma imagem que sairá, mais tarde, arranhada por escândalos de pedofilia.
   O retorno de Michael à sua infância, por sua vez, se torna o reflexo de alguém que só tomou consciência de si, já no caminho do estrelato. Por outro lado, depois de Off The Wall, em que Michael consegue grandes êxitos, ele não se dá por satisfeito, e queria fazer algo realmente grande, se juntando aos irmãos mais novos, Randy e Janet, com os quais já tinha criado "Don`t Stop `Til You Get Enough", e produz a pérola "Billy Jean". Daí pra frente, Michael explode com Thriller, e se considera um abençoado de Jeová, ao qual agradece pelo seu talento. Michael alcança o tal próximo nível de sua carreira solo e tem seu sonho realizado. Ele não queria inclusão, mas ter o público a seus pés. Sullivan afirma que ainda falta uma biografia realmente séria sobre Michael, pois ele era o centro onde convergiam todas as correntes culturais da música americana.
   Em seu outro ensaio, Sullivan fala de Axl Rose. Este ensaio é uma prosa, evidentemente, de um fã incondicional, pois Sullivan defende Axl até de sua velhice, tentando deixar claro que ele ainda é o mesmo Axl que despontou na juventude, de onde veio do nada, do centro de Indiana, lugar do nada, para Sullivan. E Axl grita: "You know where you are?", ao que o mesmo responde ao público no final: "You`re in the jungle, baby." Clássico indefectível, os Guns N` Roses ainda conseguem dar conta do tranco, mesmo que a banda não seja mais a original, só tenha Axl, mas que, devidamente, substituiu o guitarrista Buckethead por um cara chamado Bumblefoot, que toca muito, e os caras, então, decidiram conseguir tocar as partes do Slash. Tudo está perfeito, nota por nota, é uma batalha entre ver todos esses caras que não estavam no Guns N` Roses original, pulando no palco com Axl, e tocando músicas dos Guns N` Roses, e as qualidades duradouras das músicas em si. Axl, desde o início, segundo Sullivan, foi o único dançarino branco e homem indispensável de sua geração, o único que valia a pena imitar de brincadeira. Para Sullivan, sobre os Guns N` Roses: "Eles foram a última grande banda de rock a não achar que existe algo meio constrangedor em fazer parte de uma banda de rock."
   Para fechar, falo aqui do ensaio sobre Bunny Wailer, que é, disparado, o que mais gostei neste livro de Sullivan, uma verdadeira aula sobre a Jamaica e Kingston, pela visão de um de seus mestres, Bunny, que foi, nada mais, que um dos membros originais da lendária banda que lançou Bob Marley, os Wailers. No início de julho de 2010, Sullivan foi de avião até a Jamaica, com o intuito de entrevistar Bunny Walier.
   Kingston, em uma década, viu o surgimento de Bob Marley & The Wailers, Toots & The Maytals, Jimmy Cliff, Desmond Dekker, The Pioneers e The Paragons, The Melodians e The Ethiopians, The Heptones e The Slickers, The Gaylads e todo um rol de gente, que formam um vórtice de talento de primeira linha. A maioria veio dos mesmos conjuntos habitacionais, e em grande parte, estava cantando para sair deles. E o motivo pelo qual o melhor material jamaicano se aprofunda com o passar do tempo, é que a música, na Jamaica, tem um sentido espiritual.
   Na entrevista com Bunny Wailer, Sullivan ouve muitas histórias antigas sobre Kingston, de como, a partir da década de 60, o país jamaicano se tornou um dos mais violentos do mundo, pela tomada das milícias, que se dividiram em dois partidos rivais, o esquerdista People`s National Party (PNP) e o conservador Jamaica Labour Party (JLP). E, nos anos 70, a coisa piorou. O líder do PNP, Michael Mandy, manifestou simpatia por Fidel Castro, o que levou ao apoio da CIA americana ao líder do JLP, Edward Seaga, e as armas recebidas pelas milícias, portanto, aumentaram em quantidade e calibre. Era Manley contra Seaga, socialismo contra capitalismo, PNP contra JLP. Kingston se tornara um front em miniatura da Guerra Fria.
   Enfim, fecho esta resenha com a curiosa história de conversão de Bunny Wailer ao rastafarianismo. Bunny conta a sua história: "Eu sabia dos rastas desde criancinha." explicou, "mas Blackheart Man era o nome dado ao Rastaman para manter todos os jovens longe daquele indivíduo, porque ele arrancaria o coração deles para comer e coisas do tipo. E quando alguém desobedecia ou fazia qualquer coisa errada na família, diziam: Se não se comportar direito, vou chamar o Blackheart Man para pegar você."    
   Em Kingston, na região de Trench Town, quando os garotos se atrasavam para a escola, costumavam cortar caminho pelas valas para chegar mais rápido. Os rastas moravam nas valas, onde montavam acampamento. "O Blackheart Man morava no lixo", disse Bunny. Às vezes um desses místicos com dread-locks saía do barraco "para encher sua panela de água" e, quando as crianças o viam, corriam na direção oposta. Bunny então percebeu que, enquanto ele e seus amigos fugiam correndo dos rastas, estes voltavam aos seus buracos andando calmamente. Uma vez, Bunny parou e interrogou um rasta, que fez, numa pequena conversa, converter Bunny ao rastafarianismo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/13877/14/pulphead-ensaios-de-sullivan-1
   

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O DIA EM QUE CONHECI BILLY MOON

   Em minhas andanças pelas ruas, tenho o hábito de observar quem, por todas as vias que passo, pode se tornar personagem de uma boa crônica, ou de uma má crônica, por que não? Não se trata exatamente de achar em qualquer um o "Santo Graal das ideias", e nem a busca de um surto de criatividade em meio ao caos urbano, não, mas de pinçar em meio de tudo, algo singular, fora dos padrões.
   Numa madrugada de quinta-feira, depois de eu ter tomado três doses de conhaque, depois de ter passado pela beira da praia e visto mulheres e travestis sendo exploradas por rufiões do submundo, e passando por um quiosque, no qual resolvi tomar um suco de laranja e fumar um cigarro, vi ao longe, na areia, um grupo de pessoas, me aproximei deste grupo, vi que eram jovens que escutavam um recital de um velho com cabelo rasta, e que tinha todo um tom teatral, cheio de meneios, uma coisa realmente vigorosa, aquilo me encantou, me tirou do lugar comum daquelas doses rotineiras de conhaque, nas quais estava muito habituado. Entrei num mundo paralelo, ali, e já deveria ser bem umas três horas da madrugada, até porque trabalho só de noite, como cronista maldito de planfetos, de jornais clandestinos, passo flyers também, não tenho vínculos com o sistema, e por isso me identifiquei logo de cara com aquele senhor rasta que era pura ousadia, e que tinha o poder de hipnotizar um grupo de uns dez jovens, que estavam ali, admirando a performance do velho style rasta.
   Ouvia-se da sua performance (peguei o bonde andando): "Tenho tudo do sabor, sabor do vento, sabor da praia, gosto de madrugada e de cerveja, gosto da juventude, tenho tesão de tudo, e tudo me pertence, tal como a água do mar!". Fiquei extasiado com aquelas palavras que eram puro oráculo e pura sabedoria de rua, e com erudição de inteligência universal. "Me visto do jeito que quero, faço o que quero, pois Jah Ras Tafari é meu pêndulo, meu relógio, tenho minhas horas ao vento, sou poeta ao relento." Que noite! Pensei em acompanhar aquilo até o fim, via naquele velho rasta um vigor raro de quem tem a coragem de romper, e na ruptura estar mais dentro de tudo que todos os outros. "Venha juventude, temos o tempo do universo, o eterno universo, do qual faço verso e canto pela noite sem fim." Nada mais restaria para mim naquela madrugada, senão travar um lero com aquela figura fascinante que me acordou de um transe de conhaque em plena madrugada urbana. "Passei pela Jamaica sim, minha cabeça vai aonde eu quero e como eu quero, sou músico, cantor e poeta. Dou a seta, dou a flecha, sei da queda." Encantamento puro, êxtase divino e místico, iria entrevistar aquele cara, não poderia sair dali mais, sem saber um pouco de sua história, este rasta provavelmente já deveria ter passado por muita coisa, coisa que ninguém nunca viu. Logo vieram os urras daquela juventude que fazia um círculo em volta do rasta, parecia um culto, era um culto, o pastor daquelas ovelhas era o velho rasta derramando seus versos de sapiência de um lugar único, sua alma que rodava pela noite, não teria realmente mais nada para fazer, e mesmo se tivesse, cancelaria tudo só para ver como aquele evento terminaria.
   Eu, Guilherme Thompson, cronista e outsider profissional, reconheci ali um outsider muito mais profundo que eu, era o extremo, eu ainda cantarolava no meio, o rasta já tinha passado do meio, tava na estrada paralela total, ali vivia e como vivia, não sei, só sei que tava ali, vivo, e declamando no meio da praia, em plena madrugada de quinta pra sexta, no meio de uma cidade em que metade de tudo dormia, naquela hora de plenitude e amor. O rasta certamente era muito mais outsider que metade destes que posam por aí, pois ali não tinha pose, era a performance da vida, um cara vivido ali falava, e sabia que jovem é o que vale a pena, pois são eles que ouvem os "malucos da rua".
   Ali continuava a performance mais vigorosa que já tinha visto: "Eu penso através do encanto, tudo o que canto eu falo do coração, poesia é tudo de canção, não rima com não, tem tudo de si, pois é sim, sim pra vida." Na lata! Tinha acabado de ver um golaço. E os urras dos jovens não paravam, e eram urras de respeito total, nada irônicos, a galera ali realmente tava curtindo de montão, e eu, com uma curiosidade infinita. Guilherme Thompson, the observer, tinha dado um furo, já tinha pauta, yes!
   E, depois de mais uns quinze minutos de improvisação (sabia que o rasta improvisava tudo ali, no momento, on the spot), então veio a coda máxima: "Eu só como vegetais e frutas, tudo é planta, a planta marginal das ideias, e tudo que é ideia vem da alma, vai pro corpo e vira palavra, vira canto e é sinal da estrada, vida da estrada, vida de cantor, vida de quem bate tambor e toca violão, vida de quem bateu de cara, levantou e virou lenda, é a lenda de cada um, folclore da realidade, vida em atividade, ação direta de amor, vida incerta que o rumo deu." Fechou a coda. Vivas e bravos. Decidi me aproximar, discretamente, do velho rasta.
   Cheguei até ele, entre os dez jovens que conversavam com ele. Pedi licença, educadamente, e travei o lero que precisava: "Caramba cara! Gostei muito de tudo que você disse, foi tudo de improviso, man?" "Ah, eu sempre faço o que dá na telha, sempre foi assim, desde que fugi de casa com dez anos de idade, lá no Nordeste, e resolvi viver por aí. Conheci um velho hippie, isso era lá pelas bandas dos anos 60, e ele me ensinou artesanato, e depois mandou eu me virar. Foi bom, passei a viver na estrada, conheço a América do Sul na palma da minha mão, e tenho tudo escrito em diários, não sei se passo isso pra frente, mas desencanei e resolvi dar uma de desapego bicho, sabe como é?!" "Puxa, sua vida é fascinante, desculpe, não me apresentei, sou cronista de planfetos, de jornais marginais, meu nome é Guilherme Thompson, e isso que você fez, aqui agora, foi a melhor coisa do meu dia, muito obrigado cara, posso citá-lo num texto? Seria uma honra, qual a sua graça?" "Meu nome de batismo é Francisco, mas, meu nome de guerra, em meio aos rastas, é Billy Moon. Bem doido, né bicho?" "Incrível." "Ah, e pode escrever o que tu quiser bicho, não tem grilo de nada não, nem peço nada, me viro bem por aí, e boa sorte aí nos seus trampos, a vida não é fácil, mas com poesia e música tudo fica bom, bicho. Nem sabia que tinha um jornalista aqui por estas bandas, me vendo nessa doideira improvisada, muito legal bicho, e a juventude nem se fala, são os únicos que nos ouvem por aqui nesse lugar maluco, já já volto pra mata, que é lá o meu lugar." "Que bom cara, vou escrever a matéria hoje, o dia em que conheci Billy Moon, inesquecível, muito obrigado bicho." "Não foi nada, é isso aí!" "Valeu cara, a gente se vê por aí." "Paz de Jah." "Paz de Jah".

06/11/2013 Crônicas (Guilherme Thompson) - I
 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CICATRIZES

Desde as veredas de tempo acre,
morde o poema a flor pela chuva.
Desce o castiçal com maldoror de frio,
e os cântaros ressoam a altiva canção.

A febre, flor de susto,
retumba no cadáver sonhador,
ao náutico clarão o poema ferve
de espada e coturno,
e o grito pelo vento ecoa
tal chiste de bruma ao sol.

Vento mais acre da dor perdida,
desespero de vento no caule da selva.
Vento de puro prazer no corpo,
silêncio de vento no braço dormente.

Vai o tempo ao caos de mistério,
revelar o osso da estância,
e do instante, o eterno frio.

Desde os trópicos o negror d`alma
funda seu pavio de canção,
poeta mais tardo da tarde bruta,
poeta d´aurora que a ferida
possui de seus dons de cicatriz.

04/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

POEMA PURO

Benquisto o poema
ao sol de fúria,
que à dor funda
rebate.

O corpo, tal corpo,
é mais carne
que olor de alma.

O tédio, espírito imundo,
é matado de tanto tempo,
do verso o espanto
viceja,
e o tédio,
tal tempo tardo,
cai exangue
de verso duro.

Maldito o poema puro,
que de andor e fulgor
o espanto braveja,
e com o verso em riste,
vento de dor
e prazer de flor
à paz mais limpa
o poema se tece.

04/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

DE POETAS SEDENTOS

Viceja a palma da fúria
e medra o grito d`alma.
Pelos sinos os frios atávicos
que a dor é flama.

Ventos, dos lagos mais puros,
ao calor a pena dança.
Faz feroz rio ao caudal do tempo,
e o riso o mais teatral emblema.

Dos corpos a rocha do topázio.
Do poema o flerte da lâmina.
Corte ao talante do verso,
carne ao instante perverso.

Ventos que correm à bruta sede,
ventos ao tempo da bruta fome.

Quais poetas morrem de absurdo?
Nenhum, dos que se matam
o sangue dorme,
dos que morrem
a vida renasce.

04/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

FLOR NASCENTE

O verde musgo, no altiplano do sol,
murmura indecências de seu atol.
Perfura a velha vela, o vento.

Como nos tempos dos febris corações,
a chuva se embala de água,
mais fria inda que o canto fluvial.

Das quenturas do corpo, o cerne final.
Vem de esmeralda a flor tarda,
mais fina da flora à calma.

Com os girassóis em silente flerte,
passa a faca à alma ausente,
e o colar madrepérola vem na sede.

Pelos alvos dias, ao flanco da hora,
emudece o karma ao sol mais espantado.
Tal a dor da carne inerme,
que de grito a paz fuzila.

Nomeio as estâncias de tal desterro.
Pois da fleuma a alma tola encanta,
e do tardar ao crepúsculo,
o corpo se fere de bruma.

Pela paz alva no negror da noite,
os corpos reluzem a tal poesia,
da qual a sede da alma desfalece.

Vem a bruma, ao pálido horror,
temer a sede mais bruta
do corpo,
matar a fome mais temível
do desespero,
e fundar seu rito
sob o sangue
do vinho
que derrama
tal clamor
violento.

E tudo se firma na funda estrela,
tal o torpor exangue,
que da máquina de morte
nasce uma flor.

04/11/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)