“Sonhei que como eu estivesse a caminhar/Súbito o inverno se
mudou em primavera”
DADOS BIOGRÁFICOS –
PARTE II
Shelley foi para Londres e foi com Harriet para Edimburgo,
onde se casou com ela. Embora Harriet fosse bem educada e tivesse o hábito da
leitura, Shelley diria dela mais tarde que ela não era sensível à poesia e não
alcançava a filosofia. Em seguida ao casamento, Shelley estampou, privadamente,
seu Queen Mab, agressivo em matéria de religião e de moral.
Neste meio tempo, Shelley começou a se corresponder com
William Godwin, já no início de 1812, e veio a conhecê-lo pessoalmente no fim
do ano. Godwin fora casado em primeiras núpcias com Mary Wollstonecraft, autora
de The rights of Women, que faleceu pouco depois de ter dado à luz uma menina,
Mary, em 30 de agosto de 1797. Godwin consorciou-se pela segunda vez com
Mrs.Clairmont. Vivia com eles Fanny, filha de Mary Wollstonecraft e Mr.Imlay, e
Claire, filha de Mrs.Clairmont. Fanny se suicidaria em outubro de 1816, segundo
parece, levada a isso por seu amor sem futuro a Shelley, e Claire viria a ser
amante de Byron.
Foi por volta de maio de 1814 que Shelley conheceu Mary
Godwin, que estava para fazer 17 anos, e apaixonaram-se um pelo outro. Depois
de meses de crise conjugal com Harriet, Shelley foge com Mary, acompanhada por
Claire, em 28 de julho. Em janeiro de 1815, porém, Sir Bysshe Shelley morre, e
Shelley herda a propriedade de seu pai, onde Shelley passara a infância, o que
lhe dava uma renda de seis mil libras por ano.
Em meio disso, Shelley e Mary decidem residir em Bishopgate,
perto da floresta de Windsor. Lá Shelley produz seu primeiro poema considerável
“Alastor, or the spirit of solitude”, publicado em 1816 e que permanece destacado
e distinto na obra poética de de Shelley, segundo o crítico Ed.Blunden, diferença
que poderia ser notada nos quesitos paisagem e movimento.
Dado o isolamento social de Mary, Shelley resolve ir para a
Suíça, levando junto com Mary, a irmã desta, Claire, e o filho William, que
nascera em 24 de janeiro daquele ano de 1816. Vão para Sécheron, perto de
Genebra, e se hospedam no Hotel de L`Angleterre, e uns dez dias depois, Byron
chega ao hotel, momento no qual Shelley e Byron se tornam companheiros e passam
a andar de bote no lago, com paradas nas margens entre viticultores. Uma noite
uma tempestade os colheu, sobre a qual Byron fez os versos: “Como o lago aceso
brilha, mar fosfórico,/E a grande chuva chega dançando à terra.”
Numa certa noite, todos estavam lendo uma coleção de
histórias alemãs sobre fantasmas, e Byron recitou um trecho do Christabel de
Coleridge, ainda não impresso. Shelley sugestionou-se e afinal decidiu-se que
cada um escreveria uma história de mistério. O melhor resultado desta aventura
foi o livro Frankenstein, de Mary, de um conto que a moça desenvolveu
estimulada por Shelley. O autor favorito de Shelley, na ocasião, por sua vez, era
Wordsworth, por ele recomendado a Byron.
Diz o crítico Blunden que Shelley decidiu educar Byron como
ninguém havia feito e induzi-lo a conceber seus poemas como um profeta e
adorador da natureza. Cuidou vantajosamente da publicação do novo manuscrito de
Childe Harold, de O prisioneiro de Chilion e do Manfredo de Byron, e escreveu a
este: “Sei apenas que seus poderes são assombrosamente grandes, e que devem ser
exercitados até seu pleno alcance”.
Shelley se casa com Mary em 30 de dezembro e estabelece-se em
Great Marlow, Buckinghamshire. Mr.Westbrook, baseado em que Shelley abandonara
Harriet e iria criar os filhos em crenças ateísticas e antissociais, pleiteou a
tutela de seus dois netos. Shelley então perdeu a guarda dos filhos, mas esta
não foi deferida para Mr.Westbrook, mas a um médico irlandês, o dr.Hume, apontado
por Shelley.
Seguindo com a sua obra de poesia, Shelley submete a Leigh
Hunt, diretor do The Examiner, o “Hino à Beleza Intelectual”, sob pseudônimo.
Hunt o publicou em outubro de 1816. Em dezembro, Hunt, esclarecido o pseudônimo
e à vista de mais obras de Shelley, honrou-o ao lado de Keats e de J.H.Reynolds
com o manifesto “Jovens poetas”, os quais, junto com Byron em seu novo estilo,
reavivam a poesia inglesa.
Hazllitt veria Shelley, como escreveu após a morte do poeta,
como “um homem notável”: “Sua pessoa era um símbolo e imagem de seu gênio. Sua
pele parecia transparente, e o espírito dentro dele tão divinamente formado,
que se poderia dizer que seu corpo pensava (...) ele se esmagava sob o peso do
pensamento que aspirava a atestar, e murchava no clarão de relâmpago de uma
filosofia implacável.” Joseph Severn, o amigo de Keats, por sua vez, descrevia
Shelley assim: “Seu rosto dolorosamente intelectual, porque mostrava traços de
sua luta com a humanidade e denunciava o dom transcendente de um espírito
elevado em escassa relação com o mundo. Seus olhos azuis, inquietos, pareciam
deter-se mais no aspecto interior do que no exterior da natureza.”
Em 1817, Shelley compôs “Laon and Cythna”, do qual se diz que
Cythna é a primeira nova mulher da poesia inglesa. O poema foi depois
rebatizado como “Time revolt of Islam”. Em maio, Mary completa então seu
Frankenstein e prepara-o para publicação, o que acontece em 1° de janeiro de
1818. Shelley manifestava, por essa altura, contudo, “langor e doença que se
agravava” e consultou em Londres um médico que lhe prescreveu repouso e mudança
de clima. Resolveu então partir para a Itália, onde o “sol seria o melhor
médico”, pensava ele.
Neste ínterim, Shelley
lê Ariosto e traduz O Banquete de Platão, escreve Rosalind and Helen, e em
seguida o poeta compõe “Lines written among the euganean hills”, bem como
“Julian and Madalo”, poema no qual transparecem suas impressões de si mesmo e
de Byron (que como poeta ele tinha em alta conta, “cisne fiel à tempestade”).
Estava Shelley convencido de que tudo o que pudesse exortar Byron a usar todos
os seus dons seria um serviço ao mundo.
TEMPO:
O poema segue a imagem do mar, mas nele evoca sim a vida,
como um grande oceano, lugar em que podemos navegar, e se vê com os olhos de
Shelley tais coisas: “Mar insondável, cujas ondas são os anos,/Oceano do tempo,
cujas águas de aflição/Receberam o sal do pranto dos humanos!” (...) ”Tu, mar
sem praias, que na cheia e na vazão/Abraças os limites da mortalidade,”,
Shelley compara as ondas do mar insondável (a vida) aos anos, a hora e o tempo
e o mar revolto, oceano do tempo, aqui tempo e vida com o poema sobre o mar,
vida enigma, insondável em seu sentido completo, ao menos num conceito de razão
filosófica, mas intuído pela poesia com metáfora, uma forma de condensar o que
uma expressão demasiado explicada jamais esgotaria, aqui a poesia funciona como
mapa, roteiro, atalho, ao que o coração humano quer traduzir, e a vida com o tempo,
matéria precípua deste caminho, é também a aflição da mortalidade, a qual o
ateu Shelley acolhia sem anseios de além.
HINO DE PÃ:
Poema repleto da lira grega, com sua matriz mítica, invoca
Pã, e ele toca a sua flauta nestes versos, como a clamar e chamar e dizer o que
ele é: “Eu cantei das estrelas que dançavam,/Eu cantei da dedálea Terra,/E do
Céu – e dos gigantes em guerra,/E do Amor, e da Morte, e Nascimento,” (...) “Deuses
e homens, assim somos iludidos!/Isso perturba nosso peito e então sangramos:/Tudo
chorou; vós ambos choraríeis, penso,/Se a inveja – ou a idade – vosso sangue
não o pôs gelado,/Com a tristeza de minha doce frauta.” Amor, morte,
nascimento, eis um dos elementos que podem resumir toda a ópera da vida,
palavras simples, como as outras, mas que possuem uma densidade que todo o
resto do léxico é inútil diante disso, o poema, com a flauta de Pã, fala destas
coisas fundamentais, e que participam do jogo do poeta, também ele um fauno que
incorpora Pã para traduzir esta sensação que tudo anela, possuir que nada
possui, nem deuses e nem homens, todos iludidos!
A PERGUNTA:
O poema segue assim: “Sonhei que como eu estivesse a caminhar/Súbito
o inverno se mudou em primavera:” (...) “Lá crescia a violeta; a anêmona,
ademais;/Arcturo ou pérola da terra, a margarida,/A constelada flor que não se
põe jamais;/A primavera, a campainha, que nascida/Mal ergue o seu torrão; e a
flor que molha a face” (...) “Cresciam íris, branco e púrpura adornados,/Próximo
da margem trêmula do rio;” (...) “Fico a pensar que dessas flores ideais/Faço
um buquê, de tal maneira combinado/Que as cores que nos seus abrigos naturais/Se
mesclam ou se opõem – arranjo assemelhado” (...) “Contente e ufano, com essas
flores eu enfim/Para o próprio lugar me apresso donde eu vim,/E quero dá-las de
presente! – Oh, para quem?”. Shelley adorna seu poema todo floral com toda cor
de seu estro, enuncia o buquê que faz com versos, mas sem a quem empenhar,
súbito o inverno se mudou em primavera, mas para onde vai o poeta não sabe, e a
pergunta do poema termina como tal, aberta, dando título propriamente ao poema
que Shelley conclui.
HINO DE APOLO:
O poema, mais um da senda grega, mítica, em que lira e estro
representam a imagem da vida, agora em sonho que acorda: “As Horas vígeis que
me guardam, se deitado,” (...) “Fazendo voar dos olhos meus a sonharada,/Acordam-me
quando a Mãe delas, a cinzenta Aurora,/Lhes diz que lua e sonhos foram já
embora” (...) “Os arco-íris e as nuvens nutro, e as flores belas/Com suas
etéreas cores; o globo lunar/E, em seus pousos eternos, as estrelas,/Meu poder,
como um manto, os vem cercar;/As lâmpadas que acendem Terra ou Céu/São porção
de um poder, que é o meu.” (...) “Sou eu o olho com o qual o Universo/Contempla-se
a si mesmo e sabe-se divino;/Toda harmonia de instrumento ou verso/E minha, e a
medicina, e a fala do destino,/E toda a luz da arte ou natureza: é jus
portanto,/A vitória e o louvor pertencem ao meu canto.”. Aqui a mortalidade que
havia em Pã, se converte em força e poder com Apolo, este possuidor das chaves
da arte, da natureza, o que contempla sua criação, a harmonia do instrumento, o
poeta Shelley consegue um pouco deste viço, e por momentos se torna imortal,
acorda, desperta, o olho que vê como um deus do olimpo, este que aqui é Apolo,
encarnado em poeta e verso, ao calor da aurora, em que não há mais sonho, mas
plenitude de sentidos, que são o poder, que Shelley/Apolo diz: que é o meu.
TEMPO
Mar insondável, cujas ondas são os anos,
Oceano do tempo, cujas águas de aflição
Receberam o sal do pranto dos humanos!
Tu, mar sem praias, que na cheia e na vazão
Abraças os limites da mortalidade,
E uivando por mais vítimas, em tua saciedade,
Vomitas teus despojos em sua costa inóspita;
Traiçoeiro em calma, horror na tempestade,
Velejar em ti quem há de,
Insondável mar!
HINO DE PÃ
I
Das florestas e montanhas
Nós chegamos, nós chegamos; e das ilhas
Que o rio cinta,
Onde emudece a onda de voz alta,
Ouvindo a minha doce frauta.
II
E estava o líquido Peneu correndo
E Tempe inteiro escuro se estendia
Sombra do Pélion, vencendo
A luz do dia que morria,
Os Faunos e os Silvanos e os Silenos
E as Ninfas das florestas e das ondas
Na relva úmida dos rios, bem na orla,
E à beira das cavernas orvalhadas
E os que os serviam e os acompanhavam
Silenciavam de amor como tu, Apolo, agora,
De ciúme de minha doce frauta.
III
Eu cantei das estrelas que dançavam,
Eu cantei da dedálea Terra,
E do Céu – e dos gigantes em guerra,
E do Amor, e da Morte, e Nascimento,
- E então mudei o som de minha frauta
Cantando como ao pé do Mênalo correndo
Persegui uma moça e agarrei só um caniço.
Deuses e homens, assim somos iludidos!
Isso perturba nosso peito e então sangramos:
Tudo chorou; vós ambos choraríeis, penso,
Se a inveja – ou a idade – vosso sangue não o pôs gelado,
Com a tristeza de minha doce frauta.
A PERGUNTA
I
Sonhei que como eu estivesse a caminhar
Súbito o inverno se mudou em primavera:
E o suave odor pôde meus passos extraviar,
Unido ao som da água a murmurar austera,
Por relvado declive a custo ia lançar, risonho,
Seus braços verdes ao peito do manancial:
Mas beijou-o e fugiu, como se pode em sonho.
II
Lá crescia a violeta; a anêmona, ademais;
Arcturo ou pérola da terra, a margarida,
A constelada flor que não se põe jamais;
A primavera, a campainha, que nascida
Mal ergue o seu torrão; e a flor que molha a face
- Como criança, com alegria e com meiguice –
Da mãe com as lágrimas que bem do céu juntasse
Sempre que a voz do vento companheiro ouvisse.
III
A eglantina crescia pelas sebes quentes,
A verde briônia e o pilriteiro cor de luar,
E a flor da cerejeira e os cálices albentes
Cujo vinho era o orvalho, até o sol o secar;
E a rosa brava e a errar heras espiraladas,
Sem norte com as folhagens e botões sombrios;
Flores pretas e a zuis e de ouro filetadas,
Mais belas que as que vejam olhos prestadios.
IV
Cresciam íris, branco e púrpura adornados,
Próximo da margem trêmula do rio;
E entre lanços, uns botões estrelejados;
E flutuava o nenúfar, longo e luzidio,
A alumiar o carvalho, sobre a sebe penso,
Com os raios de luar de seu áqueo fulgor;
E juncos e caniços de um verdor intenso
Deslumbravam o olhar com sóbrio resplendor.
V
Fico a pensar que dessas flores ideais
Faço um buquê, de tal maneira combinado
Que as cores que nos seus abrigos naturais
Se mesclam ou se opõem – arranjo assemelhado
Essas filhas das Horas nestas mãos retém:
Contente e ufano, com essas flores eu enfim
Para o próprio lugar me apresso donde eu vim,
E quero dá-las de presente! – Oh, para quem?
HINO DE APOLO
I
As Horas vígeis que me guardam, se deitado,
Veladas com a tapeçaria constelada
Do vasto luar copado;
Fazendo voar dos olhos meus a sonharada,
Acordam-me quando a Mãe delas, a cinzenta Aurora,
Lhes diz que lua e sonhos foram já embora.
II
O domo azul do céu, galgo-o ao me levantar;
Caminho sobre os montes, sobre as ondas,
E deixo o manto meu sobre a espuma do mar;
Minha presença aclara as cavernas redondas,
Calçam com fogo as nuvens os meus passos
E o ar deixa a verde Terra nua para os meus abraços.
III
Meus dardos, os raios de sol, com os quais mortal
Sou para o engano, que ama a noite e teme o dia;
O homem que faz ou que imagina o mal
Voa de mim, e de meu raio que gloria;
Ganham as boas mentes e ações francas nova força,
Até que a noite para débil a distorça.
IV
Os arco-íris e as nuvens nutro, e as flores belas
Com suas etéreas cores; o globo lunar
E, em seus pousos eternos, as estrelas,
Meu poder, como um manto, os vem cercar;
As lâmpadas que acendem Terra ou Céu
São porção de um poder, que é o meu.
V
No píncaro do céu ao meio-dia eu estadeio,
Depois, com passos relutantes, lento eu me despenho
Nas nuvens do cair do sol atlântico; em seu seio;
Elas choram a mágoa de eu partir, franzem o cenho.
Que olhar dá mais prazer do que o sorriso ideal
Com que as acalmo da ilha ocidental?
VI
Sou eu o olho com o qual o Universo
Contempla-se a si mesmo e sabe-se divino;
Toda harmonia de instrumento ou verso
E minha, e a medicina, e a fala do destino,
E toda a luz da arte ou natureza: é jus portanto,
A vitória e o louvor pertencem ao meu canto.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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