PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O ANEL

   Ricardo era um cara irascível, não tinha muitos limites quando se tratava de mulher e de ciúmes, desde os 15 anos se envolveu de corpo e alma com o álcool e a cocaína. Certo de que poderia fazer tudo o que quisesse, de pai rico, ganhou uma Harley-Davidson ao fazer 18 anos, já com a soberba de um verdadeiro campeão de infâmias.
   Ele não teve paradeiro por um ano inteiro durante os seus 18 anos, pois decidiu que adiaria a faculdade de Economia (ideia do pai, que o queria ver ganhando dinheiro, e muito) para cair na estrada, e levou consigo uma namoradinha de um relacionamento aberto e bem recente, pois fidelidade não era seu forte, e até aí nenhum problema, se ele não fosse um cara intratável, muitas vezes, e então foi à estrada.
   Portanto, sua ideia era fazer Economia no ano seguinte, e convenceu o pai de que ele merecia um ano sabático depois de ter passado numa boa faculdade. Então, já com a sua sonhada Harley e uma mochila que tinha, dentre outras coisas, ácido, cocaína e duas garrafas blue label de uísque, coisa que ele certamente compraria mais, depois, na estrada, e sua namoradinha, patética, que não entendia o que ele faria depois da viagem toda, pois Ricardo era dissimulado e não dava sinais evidentes de tudo o que dizia, sendo um cara até paradoxal, pois poderia ser muito calmo quando queria, mas em grande parte se achava o máximo.
   A viagem seria pelo Nordeste do Brasil, ele até pensou na transamericana, mas preferiu as praias do Brasil. Sua namoradinha se chamava Antônia, e tinha só 17 anos, bem burrinha, mas bem bonita. E foram os dois pela estrada, sem pensar no amanhã, Ricardo acelerando sua Harley perigosamente pela BR-101. Já na Bahia, perto de Prado, Ricardo decidiu que iria levar Antônia, com ele, a um puteiro, pois queria fazer uma ménage à trois, e Antônia, como dependia dele para tudo, materialmente e emocionalmente, não teve escapatória, a aventura começava já de maneira bizarra, Ricardo bebeu uma garrafa de blue label inteira, e deixou a cocaína para depois do sexo para não broxar.
   Ele se portou como um animal, falando impropérios para a puta e para Antônia. A cena era um pouco ridícula, duas mulheres assistindo àquele espetáculo de ego inflado que elas não entendiam muito bem. O sexo foi bom para Ricardo, mas extenuante para a puta e para Antônia. Logo depois, Ricardo levou suas duas mulheres para o bar do lado do puteiro e pediu cervejas, o que durou até a tarde do dia seguinte, com Ricardo indo ao banheiro para renovar o seu delírio do pó. Depois disso, ele se despediu da puta respeitosamente, o que era algo surpreendente para alguém como ele, e disse para Antônia se arrumar que a viagem para Porto Seguro tinha que ser rápida, ele queria correr ao máximo, sua adrenalina era passar na contramão na dupla faixa dando risadas bizarras.
   Em Porto Seguro, Antônia e Ricardo passaram dois dias inteiros, muita praia, até Ricardo decidir que eles iriam para Trancoso tomar os ácidos que ele levara. Lá, passaram uma noite numa rave, Antônia passou mal com o ácido, e Ricardo não deu a menor bola, a deixou num canto e pegou outras duas mulheres, aonde tudo foi regado a muito uísque e cocaína.
   Um cara local ficou um pouco bravo com Ricardo, pois ele se exibia muito, parecia um pavão, e este local chamou outros dois locais para conversar “calmamente” com ele (isto é, com aquela abordagem sutil de quem diz vou te porrar, mas com elegância), no que Ricardo os dissuadiu com ácido a rodo para os locais, o que foi o bastante para ele ficar livre para seu ego inflado. Na rave, lá pelas oito da manhã, foi quando Ricardo se lembrou de Antônia, que dormia com uma baba pendurada na boca num canto escuro, ele a acordou aos gritos e disse para ela se arrumar e “tomar vergonha na cara”, que eles tinham que partir para Sergipe imediatamente, e que preguiça não dava dinheiro.
   Ricardo queria ir para Japaratuba, para tomar o tal Banho de Prata, ou melhor, onde era uma nascente de águas cristalinas, e ele decidiu que a viagem teria que ser cada vez mais rápida, pois seu dinheiro era muito, mas não infinito, enquanto Antônia não tinha um puto. Logo foram para Aracaju, e passaram voando pelo Parque da Sementeira e o Parque dos Cajueiros, lá dançaram, foi um dos poucos momentos de romance entre Ricardo e Antônia durante toda a road trip, pois Ricardo estava sempre preocupado em chifrar Antônia, e isso gratuitamente, o tempo todo.
   Ricardo ficou admirado com o Banho de Prata, pensava em voltar lá, mas sem Antônia, que, por sua vez, também sabia ser muito desagradável quando queria, pois vivia paranoica de que Ricardo a abandonaria na estrada (o que poderia acontecer a qualquer momento). Ricardo, numa correria maníaca e doentia, do tamanho de seu ego, queria tirar onda com a Harley, quanto mais rápido na estrada, poderia se satisfazer de sua sede de aventura, de forma desordenada e imatura, e Antônia não era nada mais que uma vítima, que estava refém de um amor tóxico. Ricardo tinha o plano de margear o Nordeste até o Ceará e depois voltar pelo mesmo caminho.   
   Ricardo morava no Rio de Janeiro, e ganhou um apartamento ao passar no vestibular de Economia, em plena Ipanema, na Visconde de Pirajá, tinha três quartos e uma suíte, seu pai até pensou em não lhe dar nada, mas viu que ele tinha se esforçado no ano do vestibular, coisa que ele nunca fizera na vida, sempre passou na recuperação final até o segundo ano do ensino médio, e lhe deu não só um apartamento, como uma BMW e a sua sonhada Harley-Davidson. Ricardo não pedira nada, mas sempre dava indiretas ao pai de que faria uma viagem de um ano, e convenceu o pai disso depois de ir na maciota, pois seu pai era rico, mas era durão, não dava nada de primeira. Na verdade, o pai de Ricardo pensava que finalmente seu filho levaria os estudos a sério, o que não passava de uma doce ou amarga ilusão, o que os fatos comprovariam.
   Agora Ricardo e Antônia estavam em Maceió, lugar em que as discussões do casal ficaram bem duras, e Ricardo ameaçou de a deixar para trás, mas Antônia se agarrou em suas pernas e pediu pelo amor de Deus para ela seguir com ele, no que ele, com um ardil, aquiesceu, mas estava crescendo em sua mente algo sinistro, digno de uma novela ou filme. Ricardo, de súbito, ficou doce com Antônia, e ela caiu na rede meio que sabendo que seria deixada para trás, que aquilo tudo era ceninha de Ricardo para depois ela levar uma bordoada daquelas. Os dois decidiram que ficariam em Maceió por uma semana inteira para descansar, e depois tomariam a estrada na velocidade da luz. A semana foi calma para os dois, mas sem romance, a doçura dissimulada de Ricardo não convencia Antônia, que se enganava de propósito para não ter problemas futuros.
   Ricardo, no último dia de estadia em Maceió, levou duas putas para o hotel em que estava com Antônia, depois de uma calmaria rara, lá estava ele com os olhos esbugalhados e delirando que queria matar alguém. Resultado: no meio da tarde, depois de quebrar o quarto, ele, Antônia e as duas putas foram expulsos do hotel, e Ricardo só não foi preso, pois subornou o dono do hotel para ele ficar de bico calado. Naquele dia acabara a doçura pré-fabricada de Ricardo e ele estava que nem um monstro indócil, pronto para morder o primeiro que aparecesse. Sua cocaína estava acabando, ele saiu por Maceió para encontrar uma boca de fumo imediatamente, pois morria de medo de faltar o seu pó, abstinência, que ele sabia, o fazia cagar sem parar.
   Ricardo conseguiu uma cocaína boliviana, depois de conversar com uns malandros que encontrara na rua, foi ao melhor traficante da região, e dentro da boca experimentou o pó, quase tendo uma síncope de tanto prazer. Voltou para falar com Antônia transtornado pelo pó boliviano, ela não se assustou, pois já sabia como era aquilo. Ele então foi a um banheiro de um bar, onde cheirou cinco carreiras, e saiu urrando e com os dentes trincados. Suas narinas estavam com o gosto de sabão do pó, sua garganta exalava aquele cheiro de ego que possui a cocaína. Ali se finalizava o descanso do casal em Maceió, com Antônia resignada e certa de que seria abandonada na estrada. Os miasmas, a esta altura, eram febris e perigosos.
   E Ricardo agora só pensava em se esbaldar em Pernambuco, sua Harley foi voando como um cometa em direção de Olinda. Antônia tinha medo de que tudo acabasse em Pernambuco, pois Ricardo era obcecado por aquela região, e uma das poucas coisas que lembrava das aulas de História, era de Maurício de Nassau. Portanto, a coisa começaria a degringolar exatamente no paraíso de Ricardo, Olinda, aonde ele já estivera duas vezes no carnaval, e sempre em meio de muita loucura. Já em Olinda, nas ruas antigas, Ricardo começou a cheirar sua cocaína boliviana na rua mesmo, quando foi abordado por um policial à paisana, no que, como sempre fez, Ricardo subornou o policial, este que até deu umas dicas de onde encontrar mais pó para Ricardo, quando ele arrumou uma cocaína poderosa da Colômbia.
   A droga colombiana descontrolou Ricardo, que apanhou numa briga de bar, e decidiu arrumar um revólver para matar o primeiro que o desafiasse, pois ele era fodão e valentão, mas na verdade era um títere de seu próprio ego, não tinha muita base de reflexão no que fazia, era impulsivo, sabia que sua faculdade de Economia seria uma constante enganação, que seu pai estava realmente iludido de que ele tomara jeito, de que deixaria de ser o playboy que sempre foi, desde que despirocou aos 15 anos. Logo, a droga colombiana resultara em um nariz quebrado e um revólver Magnum. Seu tesão pelo álcool, sobretudo o uísque, agravara a situação, ele estava a ponto de agredir Antônia fisicamente, depois de tanto fazer isto verbalmente e com ardis e ironias de uma malícia covarde.
   Antônia estava a ponto de se revoltar e ela mesma ficar na estrada por vontade própria, mas sabia que teria de voltar de carona ao Rio de Janeiro, no que declinou da ideia. Ricardo realmente ficara num estado de fascinação com a droga colombiana, só não tinha um piripaque porque a adrenalina não permitia. Sua viagem por Olinda o deixara muito feliz, mas ele já estava, àquela altura, com gestos corporais rígidos, alternando com súbitas ondas de expressionismo afetado. Parecia um ator de circo numa chanchada que viraria uma tragédia.
   De Olinda, ele partiu com Antônia para o Recife, e Ricardo já se sentia o próprio Maurício de Nassau, o conquistador holandês, com sua rigidez pulando para um expressionismo de cargas kármicas indescritíveis. Ricardo queria pirar por três noites em Recife, e disse para Antônia ficar no hotel, que não a queria perto dele naquelas três noites, e Antônia, num dilema abissal, alimentou novamente a ideia de fugir de Ricardo de carona mesmo até o Rio de Janeiro, no que declinou novamente, meio que abúlica por toda a situação.
   Em Recife, Ricardo sumiu, arrumou mais uma briga num bar, mas desta vez levou a melhor, um nocaute com um único soco, se sentiu o máximo e depois foi contar vantagem com uns malandros que encontrou na esquina, e que não era para ninguém mexer com ele, pois tinha uma Magnum na cintura. Sua mão fervia para usar a arma a qualquer momento, e a droga colombiana o incentivava, como a voz interna de um duende: “Do It! Do It!” Ele delirava sem saber, o estranhíssimo miasma de lucidez aparente da coca tinha o ardil de contra-atacá-lo quando Ricardo menos esperasse. E a Magnum explodiria inesperadamente para Ricardo, eis o ardil.
   Já de saída do Recife, quando ele voltou para o hotel, encontrou Antônia com uma faca, ela dizia que iria cortar os pulsos se ele a abandonasse. Ricardo riu, mas depois pulou em direção de Antônia e atirou a faca pela janela. Antônia começava a entrar num quadro de depressão e paranoia, Ricardo era uma verdadeira dor alucinante para ela, que, apesar de tudo, se via apaixonada e enredada numa história que só Deus sabia onde iria parar, mas ela tinha esperanças bobas de que na volta do Rio de Janeiro, com a faculdade de Economia de Ricardo, e a vigília do pai do mesmo, tudo ficaria, finalmente, no lugar, e os dois se casariam.
   A próxima parada era a Paraíba, onde Ricardo queria fazer que nem na música do Raimundos, uma orgia num puteiro em João Pessoa, ele era rockeiro, ouvia rock nacional, não conhecia muita coisa, mas sempre gostou de Raimundos, da fase do debut e do Lavô tá novo. Ricardo tinha se saciado insanamente no Recife, com a sorte, para ele, de ter convencido Antônia a ficar no hotel. Neste ponto, João Pessoa só agravaria as coisas para Antônia, pois a ideia de orgia de Ricardo parecia uma das ondas de Charlie Sheen ou Dominique Strauss-Khan, numa síndrome de Michael Douglas escravizante.
   Mas, Ricardo queria bater todos os recordes em João Pessoa, e não tinha tempo para ouvir ladainhas de caretas, só não tinha pegado AIDS ainda por pura sorte. Na estrada para João Pessoa ele foi cantando a música dos Raimundos achando que era um ás da estrada e do sexo, como se fosse um infante querendo provar para si mesmo que poderia gozar quatro ou cinco vezes numa noite e dizer que foi dez, o que ele já fizera, mas num esforço patético de puro esfolamento.
   Em João Pessoa a noite no puteiro foi trágica, Ricardo, ainda possuído como um demônio pela droga colombiana, deu uma broxada na terceira rodada e começou a esbravejar, saindo quebrando o puteiro e quando chegou um local, dono de um bar ao lado para tirar satisfações com uma peixeira, Ricardo mostrou sua Magnum prateada na cintura, no que tudo se fez silêncio, e Ricardo e Antônia saíram voando da Paraíba, e no meio da estrada, na alta velocidade, numa noite de neblina, a Harley de Ricardo derrapou na pista e desceu num barranco, arremessando Antônia e Ricardo numa poça de lama, os dois ficaram com escoriações e arranhões, mas nada muito sério, no mesmo momento Ricardo ordenou para Antônia para os dois subirem e voltarem para o acostamento que foi onde a motocicleta fora parar, com um dos retrovisores torto, mas Ricardo cheirou mais uma carreira da droga colombiana e gritou estridentemente um grande “Foda-se!” no meio de uma neblina numa estrada deserta só com ele e Antônia por lá.
   A viagem seguiu para o Rio Grande do Norte, onde Ricardo queria se perder nas dunas, talvez para tomar um ácido e mergulhar no mar, ou certamente ele faria isso, e disse que Antônia também teria que tomar um ácido, para ninguém ficar em desarmonia um com o outro, Ricardo tinha, às vezes, umas ideias místicas bem bobas, sem embasamento e conhecimento nenhum, fruto de sua cabeça alarmada pela cocaína.
   As dunas eram a nova obsessão de Ricardo, depois de seus delírios holandeses em Olinda. Nas dunas, Ricardo e Antônia tomaram um ácido fortíssimo, era o tal do gel, que pirou muita gente por aí, e a viagem de ácido durou da manhã até a noite, com Ricardo e Antônia gritando palavrões e imitando animais por toda a duna, até ficar noite, e os dois transarem em moitas esparsas, com Ricardo depois correndo pelado em direção do mar em plena madrugada, mergulhando e nadando maniacamente por toda a enseada, não se cansou, o estado de surto do ácido lhe tirara a noção de cansaço físico, e ele então voltou esbaforido para a praia, e viu Antônia delirando que havia caranguejos subindo em seu corpo, no que Ricardo riu e jogou água no rosto de Antônia, e ela começou a chorar com um efeito tosco de bebê, e então Ricardo a pegou no colo e os dois voltaram para a Harley, e tomaram a estrada novamente, para chegar ao ponto final da viagem em Fortaleza no Ceará.
   A aventura ficaria quente e pegaria fogo em Fortaleza. Antônia sonhava que dali para o Rio de Janeiro, na volta pela estrada, as coisas ficariam normais, ledo engano. A Magnum fritava na cintura de Ricardo e pedia encarecidamente, como uma voz interior de Ricardo, para cuspir balinhas pelo vento, sua droga colombiana o deixava cada vez mais com esta convicção sinistra.
   Em Fortaleza, Ricardo decidiu esbanjar, ele e Antônia foram para um hotel cinco estrelas, na suíte presidencial, uma fortuna, e foi uma imprudência, pois Ricardo gastara muito dinheiro com o pó boliviano e o colombiano, mas ele tinha feito as contas e disse para Antônia que na volta para o Rio de Janeiro o caminho seria de Fortaleza para o Rio de Janeiro, direto, sem paradas, pois todo o dinheiro acabaria na esbórnia que Ricardo planejara na suíte cinco estrelas.
   No hotel cinco estrelas, Ricardo desta vez não chamou putas nem aventureiras, ficaria só ele e Antônia, e ele tinha uma ideia vaga de fazer uma roleta russa, mas decidiu que ele e Antônia desceriam para o mezanino para comerem até se fartar. Depois foram para rua, na porta de um bar, onde Ricardo se intrometeu numa briga de bar e levou porrada de um terceiro que apareceu do nada dando uma voadora na sua cara. No que Ricardo, irascível incurável, sacou, finalmente, a sua Magnum, deu tiros a esmo, não acertou ninguém e foi fugindo direto para o hotel, levando Antônia a tira-colo. Chegaram na suíte presidencial, Ricardo disse que iria ao banheiro cheirar a droga colombiana, e que depois os dois fugiriam do Ceará e pegariam a estrada novamente.
   O ledo engano de Antônia se concluiria de súbito, Ricardo sai do banheiro transtornado, com os olhos cintilantes de fogo, esbugalhados, ele saca a Magnum, faz que vai atirar pela janela nos passantes da rua, se volta de frente para Antônia e lhe disfere três tiros no peito, ela morre na hora. Ricardo começa a chorar copiosamente, a cocaína acabara de transformá-lo num assassino, ele decide que tinha que ser rápido, em três horas esquarteja o corpo de Antônia e coloca numa mala, vai até a praia, nada com a mala, e deixa a mala afundar no mar, a um quilômetro da costa. Esbaforido a apavorado, Ricardo volta para a praia, pega a Harley, e vai como um foguete, sem parada, em direção ao Rio de Janeiro. Quase bate fatalmente doze vezes na estrada, chega ao Rio de Janeiro, vai ao seu apartamento em Ipanema, e começa a rezar desesperado para não ser descoberto.
   Uma semana depois, um mergulhador encontra a mala, ele estava ali para caçar peixes, mas acha estranho uma mala no fundo do mar, e ainda com o garrafão, abre a mala, saem pedaços de um corpo que sobem à superfície do mar e começam a boiar numa cena trágica. Ao mesmo tempo, um funcionário do hotel vai à suíte presidencial limpar o quarto e encontra um anel. Resolve avisar o gerente de que alguém esquecera um anel na suíte presidencial, o gerente descobre que foram os hóspedes da semana anterior, e nisso o mergulhador leva as partes de um corpo para o IML, chocado. O anel e o corpo tinham o mesmo endereço? Ricardo fica um dia inteiro em seu apartamento cheirando o resto da droga colombiana, com delírios persecutórios de que seria preso, de que tudo iria por água abaixo, apartamento, BMW, Harley, e a faculdade de Economia.
   O anel, o gerente descobre, eram de duas assinaturas, ele liga para o celular, que era o de Ricardo, ele atende, mas gaguega, o que o gerente acha estranhíssimo, Ricardo não fala coisa com coisa, o gerente pergunta se ele esquecera um anel no hotel, se tinha dado falta dele, Ricardo começa a chorar, e desliga o telefone na cara do gerente. O exame do IML descobre que o corpo era de um esquartejamento, a polícia civil entra na investigação, um delegado de Fortaleza manda fazer uma varredura por Fortaleza para achar o assassino. Nisso, outro funcionário do hotel acha um dedo mindinho no banheiro da suíte presidencial, a coisa ficaria feia totalmente para Ricardo.
   O anel, um dedo mindinho, e um delegado de Fortaleza obcecado por encontrar mais um assassino, a somatória era óbvia e ululante, Ricardo rodaria. Descobrem que as duas pessoas que foram ao hotel são, além de Ricardo, uma moça de nome Antônia, começa-se a ligar os pontos, como na matemática, uma geometria que daria no Rio de Janeiro. É tirada a digital do dedo mindinho, na mão do corpo o anel entra perfeitamente, as digitais, zás, são as mesmas, era Antônia, identificada, e com digitais de outra pessoa nos pedaços do corpo, e com três balas de uma Magnum para o exame de balística.
   Ricardo pensa em se matar, mas lembra da Magnum, vai à praia de Ipanema, no posto dez, nada para bem longe, e deixa a Magnum afundar, desta vez nenhum mergulhador encontraria a arma, mas o estrago já estava feito, os pontos se ligariam de súbito, a investigação conclui por A mais B de que o assassino era Ricardo, um mandado vai à sua captura no Rio de Janeiro, o delegado de Fortaleza contata um delegado do Rio de Janeiro para buscá-lo e pegar as suas digitais. Chegam no apartamento de Ipanema, estava vazio, e com vestígios de cocaína por todos os lados. Ricardo, a esta altura, tinha pegado a estrada da Via Dutra em direção a São Paulo, seu objetivo era chegar no Uruguai e comprar uma identidade falsa, mas bate com sua Harley na Dutra a mil por hora, é arremessado, e morre na hora.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.