“há uma verdadeira participação autoral neste sofrimento
universal que nos dá a dimensão do romance dostoievskiano”
INTRODUÇÃO
O romance dostoievskiano pode ser entendido como uma espécie
de tragédia, o meio romanesco aqui também é utilizado como um instrumento de
conhecimento da alma humana pelos personagens deste autor que atuou como um
verdadeiro psicólogo ficcional. O caráter sui generis do romance pelas mãos de
Dostoiévski é este em que as personagens passam por transformações, recomeços,
na luta de contrariar o destino, de enfrentar com toda a alma as agruras do
desespero e da loucura, aqui a tragédia dostoievskiana ganha sentido amplo e
profundo, com todo o caráter de conhecimento intuitivo das relações e situações
da alma humana que são possíveis para um romancista dar exemplo e fazer a sua
construção, o que Dostoiévski consegue como poucos, e de um modo único, com a
sua impressão e assinatura.
Dostoiévski tem suas personagens numa trama que nem sempre é
bem-sucedida, pois a ideia de vitória na vida pode resultar no infernal malogro
das intenções, aprofundando, no entanto, o caráter e a definição sólida de tais
figuras do romance dostoievskiano, e que pela escrita do autor nos aparecem
como personagens falhados tais como os humildes, fracassados, vencidos, numa
pedagogia que revela o humano em situações-limite, e que também nos leva a esta
alma ou análise psíquica dos dilemas e dores demasiado humanos da trama
romanesca dostoievskiana.
A piedade do autor para com tais personagens na sua ficção
também nos dá esta dimensão do caráter humano tanto do trabalho literário como
de quem o realiza, que é o homem biográfico Dostoiévski, pois a riqueza de suas
personagens também nos revela o caráter deste autor, um dos mais destacados da
História da literatura russa e mundial, pois há uma verdadeira participação
autoral neste sofrimento universal que nos dá a dimensão do romance
dostoievskiano, a medida do destino humano está posta como exemplos em vários
destes romances do autor.
Dostoiévski passa com seus personagens por experiências
diversas como sentimentos de revolta e de ódio, anseios vingativos, toda uma
teia de relações em que as paixões transbordam, um lado obscuro da alma eclode
e, no entanto, tal situação negativa nos dá uma dimensão de fé inaudita pelo
senso comum, pois está iluminada mesmo em tramas de caráter alucinante e de
situações dolorosas. Portanto, há uma luz, o divino se manifesta nesta trama
visível e caótica do destino humano, nas forças dispersivas do mal temos, como
efeito reverso, a luz da fé ou ainda da própria razão natural.
Dostoiévski elabora suas personagens de um modo que o leitor,
já nos seus primeiros contatos com tais figuras, fica sabendo bem em que
terreno está pisando, pois instantaneamente no romance dostoievskiano as
personagens já se nos apresentam inteiras, em todo o seu caráter e luta, tais
espíritos puros e sólidos lutando contra o sofrimento universal, esta balança
das situações em que a provação é a regra, na ideia ou imagem precípua da
queda.
E como nos diz Hamilton Nogueira: “As suas resoluções, como
as dos anjos, são por assim dizer irrevogáveis. Não há possibilidade de volta,
nem mesmo de parada. Tudo obedece àquele ritmo trágico.” Temos uma estrutura
psicológica firme e bem definida nas personagens dostoievskianas, nos revelando
almas impassíveis face aos fatos mais extraordinários, como se a predestinação
fosse a forma dominante da percepção exercida por tais figuras criadas pelo
autor.
O fenômeno humano e comum do desespero aparece aqui como a
intensidade máxima do sofrimento, mas que temos também que tal sofrimento não é
definido por sua dimensão dorida, mas pela luta de forças antagônicas, a luta
interna reveste a angústia de tais personagens, e não uma medida de intensidade
de tais sofrimentos, uma vez que a personagem dostoievskiana tem a sua
liberdade e sua alma inteira em conflito contra os limites impostos pelas
formas visíveis da natureza humana, tal força oculta e angélica, que tende à
vida contemplativa, é sucumbida no mundo cotidiano e físico dos sentidos
terrenos e suas agruras.
O mundo romanesco de Dostoiévski, por conseguinte, é
revelador de um universo humano vertiginoso, pleno de contradições, de
oscilações extremas e repletas de paradoxo, como se dá comumente em almas
intensas e autênticas, com movimentos rápidos e intuições imediatas, não
existindo nenhuma dimensão de indiferença em tais personagens, familiarizadas
com a tragédia humana que são, e que são, portanto, personagens com convicções
profundas e caráter constante, isto é, com condutas claras. E o resultado é que
tais personagens, partícipes diretas do sofrimento universal, buscam a solução
para o problema do destino e da tragédia, numa pesquisa sequiosa pela verdade,
com posições extremas, e o mistério da vida então perpassa todo o dilema e
vivência ativa de tais personagens dostoievskianas.
A eclosão de sentimentos antagônicos nas personagens
dostoievskianas é bem comum, pois amor e ódio se revezam em tais corações com
uma presteza nauseante, a amplitude psicológica de tais figuras desenhadas por
Dostoiévski dá vazão para estas alternâncias bruscas de sensações num mesmo
ambiente ou situação, e a alma pode ter como uma sua definição dostoievskiana
como uma ideia de contradição, o paradoxo dos sentimentos reina como o sentido
de sua própria riqueza e da amplidão da percepção de tais almas sofredoras.
Ou como nos diz Hamilton Nogueira sobre Dostoiévski: “Ele é o
soberano criador dos estados angustiosos, é o mestre incomparável no jogo
dificílimo da fixação desses imponderáveis que constituem a vida mesmo do
espírito, vida ilógica, inatingível nas suas raízes, mas vagamente perceptível
no mundo tumultuoso de ideias e de sensações que afloram à superfície da nossa
consciência.”
NASTÁSSIA FILIPOVNA
Nastássia Filipovna é uma dessas personagens dostoievskianas
que são plenas de contradições, com sentimentos divergentes e desordenados
convivendo na mesma alma, é também devido a esta amplitude de sensações que
temos uma das chaves do enigma interior de Nastássia. E tal se dá, isto é, este
enigma que envolve várias camadas de uma luta interior intensa, por
conseguinte, em meio à incompreensão de um mundo medíocre, amiúde
unidimensional ou preto no branco. Nastássia Filipovna, por sua vez, como nos
diz Hamilton Nogueira : “é um dos mais extraordinários tipos de mulher criados
pelos romancistas em geral, e sem dúvida a máxima criação feminina de
Dostoiévski.”
E segue Hamilton Nogueira, quando nos diz: “o segredo do seu
mundo interior, as suas lutas íntimas, a sua imensa amargura, a sua profunda
desolação, o seu desespero ao ver-se arrastada por um turbilhão de lama, e
sobretudo o fundo de pureza que ainda perdura na sua alma, permanecem
inatingíveis ao olhar profano dos homens que a rodeiam. Somente uma outra
criatura também ordenada no sentido da perfeição poderá compreender a tragédia
de sua vida e contemplar maravilhado o lado luminoso da sua realidade
existencial, o príncipe Muischine. Esse jovem de olhos claros e luminosos, de
palavra suave, olhando-a com expressão de quem a conhecia, impressionou
profundamente o espírito de Nastássia.”
É tanto a construção da personagem como a história de
Nastássia Filipovna que faz de O Idiota uma obra-prima, pois é revelador de uma
escrita com alma rebelde, o que não seria comum num espírito resignado de
ideologia reacionária que estava no homem Dostoiévski. Neste romance temos um
autor tanto trágico e lírico, como também satírico, e temos que Nastássia
Filipovna está situada entre as personagens femininas de maior envergadura e
complexidade da literatura russa e mundial.
O romance O Idiota tem a participação assídua da personagem
Nastássia, pois ela reina no centro dos acontecimentos, dando assim a sua
dimensão de grande personagem da obra literária de Dostoiévski. E em meio a
canalhas e beberrões temos uma Nastássia que atravessa altiva a ignomínia
geral, com todo o rigor de um caráter firme e uma alma inteira e bem edificada,
pois ela conhecia todos os celerados que a cercava, sem sucumbir a tais odores
depravados, num plano de vingança bem urdido que deixava ao sabor das intenções
de farsa de tais homens como um modo de fazê-los cavar as suas próprias ruínas
devido aos impulsos podres que Nastássia manipulava com episódios desenhados
por Dostoiévski como verdadeiras cenas de teatro, quando o autor é mais uma vez
o plasmador perfeito tanto da psicologia individual como da coletiva.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35285/17/personagens-de-dostoievski-sao-instrumentos-de-conhecimento-da-alma-humana