PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

POEMA ESTRELA

 Ausculta da acuidade do som,

veja desta flecha teu

estro refeito, os cantos

perfeitos que se autodestroem,

as overdoses dos karmas

como satoris invertidos

no caudal das estrelas,

tenha deste cântaro

teu vinho tinto

e reflui teu sangue

sobre o sal do mar,

claro o enigma do sol

persegue a luz da

visão, jogue as cartas

do navio de sua viagem

na espuma das esponjas,

cante aos seus peixes

sua era de aquário,

como "somebody to love"

ou "I feel free"

ou pense em "paint it black"

com seu dedilhado negro,

pense em janis

a cantarolar rouca

"piece of my heart"

em seu corcel ou na

na luta de sua opala e topázio

e seu zênite que 

derrota o nadir,

pense em seus sonhos

como ventos nas noites

das cantilenas do violão,

use sua cocaína na brasa

de suas narinas ao

ouvir fleetwood mac

depois de bowie

em "station to station",

pense em sua biografia

como um aventureiro,

pense em sua obra

como um aventureiro,

colha de cada viagem

lisérgica seu entendimento

das cores demudadas

que estão na sua alma,

lute na tua copa de vinho

e na copa densa

de sua árvore do conhecimento,

estude sua própria sabedoria

na insciência de seu

poema feito estrela.


15/10/2020 Gustavo Bastos 

OS ENIGMAS

 Setas fugidias cortam

as lágrimas do coração,

venho partir ao meio

os sete enigmas

e restituir à flor

sua visão orvalhada,

caros sinais, os enigmas

pulam das órbitas

arraigadas, os cantos

de raiz saem desta

terra e seu húmus

irrompe da vida

o canto da terra,

o cio das aves

é o poema adventício,

alvíssaras ao rei

dos enigmas,

teu cajado

decifra o verso

final : a coda.


15/10/2020 Gustavo Bastos 

TROVADOR SOLAR

Na cidade que tilinta

entre os metais

dorme o meu ferro,


ferro de toda a obra

que se ergue, eu tento

me inteirar das estantes

e das vigas, dos ossos

e das estalactites,

meus membros fortes

e minha visão resoluta,


no estio, nada faltará

ao esforço, o suor na

testa e o coração

disparado de emoção,


veja, os poemas caem

da mão madura

que assombra

os céus da tempestade,


ad infinitum, eu escrevo

o meu verso com o meu

corpo bronzeado

de um sol furioso,

como poeta da lira

ou trovador

solar.


15/10/2020 Gustavo Bastos 

VISÕES

Um estudo profundo e eu lhe anotei os hemistíquios, uma febre obnubilada sob a sombra e o campo vasto que fremia entre o ventre  e a cabeça, um mar de poesia se abria, como em toda nota sol vigorosa, passei ao relento e a chuva caía aos cântaros aos borbotões, torrencial, trevosa, tonitruante.

Avisei aos camponeses que a hora do martírio havia passado, em cada gesto de foice o vinho na cara seca do sol, meu frêmito, o espasmo, a sede, cada canto silvestre, a pérola, o mármore, cada sonho e cada poema como um suspiro que cai exangue diante da lama dos dias.

Sim, os estudos críticos avançavam, da plêiade o topázio brilhava em berilo, como toda astúcia, a esmeralda renascia forte, verde neste campo de ambrosia, cada fastígio como um enigma, e todos os rios castanhos na bela queda do estro, um estrondo quando cai a cachoeira, a correnteza era misteriosa, todos os ídolos do passado acordavam neste nascedouro de ressurreição, eu e o poema nos entendíamos, toda a escrita flui nesta intimidade abissal.

O poema estudava a si mesmo, se media e se fazia, como um exercício físico, um exame de seu próprio corpo e de sua potência, vi, venci, na luta do campo de marte matei um bárbaro, ele sangrou sob a minha espada, lhe retirei as tripas e joguei aos abutres, como gritei na noite de verão, como um astro na fúria de seu show, como um presidente que acabara de se exaltar num comício.

O rio castanho com todo o seu fulgor era fogo e era furibundo, descia ao mar com a certeza dos espíritos inteiros, completos, bem estudados, bem testados, conhecedores de todos os venenos e de todos os antídotos, como o poema deve se conhecer, para que o poeta não o tropece, não o derrube, o levante como um corpo, e não se coloque em seu caminho, lhe conduza como rio castanho que é.

Na luta violenta da noite, se matavam os suicidas, matavam os assassinos, brigavam os beberrões, choravam os desiludidos, roubavam os delinquentes, corriam os perdidos, passavam frio os mendigos, e os poetas nada sabiam da noite, apenas viviam a noite, como profetas de fancaria sobre estrelas que moravam em suas cabeças de abóbada, na verdade com suas almas como vinhos embriagados, repetindo ladainhas sobre satori para parecerem cool, imitando beats como se fosse a glória.

Joguetes alucinavam, eu joguei o carteado como um furor de cada choque em meu braço e meu blefe, vi a passagem ao céu firmar um canto estrelado sem pestanas, sem peias, sem ornamentos, apenas um bel canto depurado como um som do coração, tal o poema que pensei, ou melhor, senti.

Assim, depois, penso em fazer de novo estas astúcias de abóbada, de páramo, ou talvez pensar ao rés do chão, cavando da terra meu sumo, e pensar que do mundo da vida, a colheita é farta para quem prorrompe de si tudo o que tem, pense : os poemas não nascem de seu capricho, eles surgem de sua inteligência, mas nada vem, a não ser de tua vontade potente e soberana de querer tudo fazer, assim tua inteligência se torna vontade, e tua ideia, um poema.

Dez meses passam na luta renhida dos corsários, como na procissão, eu cansei de ver mártires, cansei de ver santos, cansei até de ver os demônios imaginados da demonologia, passei ao largo das rezas, das cantorias, dos delírios religiosos, vi o êxtase, mas logo o deixei para trás, nada me interessa em mística, simplesmente me passa a ser enfadonho todo o esforço inútil de cobrir de ouropéis o que se pode ver a olho nu, a maravilha dos átomos em atividade e nada mais.

As visões caem aos cântaros, aos borbotões, são visões de vinho, de céu na terra roxa, são visões de horizonte, eu estou em meu poema como uma visão, vejo tudo em toda cor, neste átimo está a paralaxe do sol que passa, neste silente campo, o aleph, sente deste sempiterno som todo som, e deste exangue verso branco o vinho de sua tinta na cor de seu sonho, pense em todos os dias vividos.

Pense em tudo, não se transborde como um sentido mole, prorrompa como um estro forte, conduza o trabalho das flores, neste seu campo de trigo, neste seu vasto horizonte, as visões não são delírios, são o plano de sua arquitetura, a tessitura de sua biografia, a costura de seu caminho, violento em seu mar e em sua vitória.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

Poema em prosa – 15/10/2020

 

 

 

 

 

domingo, 11 de outubro de 2020

CANÇÃO DO FOGO

A peste se expande, caio na febre montanhesa sobre estrelas fugidias, na horda que nasce deste poema, primeiro o líder montês anuncia que cortará a cabeça de seus soldados, ele está delirando uma festa, chama o sacrifício pelo seu nome próprio : a fogueira.

Vá, pois os demônios da noite tocam tambores em transe, a noite ferina que do fogo se haure, o peito intumescido do poeta que tem delírios na seta que lhe corta a carne, a dama brumosa que da chuva cai aos cântaros, sua chuva torrencial de sacrifício.

Em todos os ritos que o líder manda, as estrelas caem do céu, o vinho derrama sob as luzes da lua, rente aos ídolos de madeira, um escravo morre na sangria, os tambores entram em frenesi, um litofone ronca, os músicos ardem no fogo, é o delírio da noite em seu êxtase de poesia.

Agora o cinéfilo olha novamente, deste primeiro momento antes da Suméria, a horda some no tempo, passamos aos ritos de Gilgamesh, cada vício em todos este vítreos versos do primeiro poeta, qual um Téspis, para depois brindar Homero em seu documento sobre os micênicos, a Ática em polvorosa, Anacreonte e a lira.

Vamos, os beats ainda não chegaram, temos versos metrificados e enfadonhos, troqueus e espondeus para dar em bardos na cantilena do amor cortês, os bas-fonds ainda não eram mainstream, ainda não havia punks de boutique.

Bruma na suada cantata, vamos, os sete sonhos da curva, as quedas monumentais, as enormidades com que fizeram da epopeia uma saraivada de ignomínias, cantos porosos, um vidro se espatifa, o poeta sangra, se corta, quase morre, ele delira outro século, grita feito um touro, pede anarquia no meio acadêmico, em vão.

Eu vejo este cinéfilo, seu elenco é só de atores amadores, seu plano-sequência chama ao trabalho duro, seu set encanta e o roteiro é improvisado, o diretor filma fumando, charutos Cohiba, sim, o poeta tem suas suturas, tá todo remendado, suas cicatrizes são de quem viveu, ele pensa em se afogar, em nadar ao horizonte, ele pensa em tudo e não tem norte, seu livro é uma miscelânea de sonhos infantis.

Fica pronto seu livro infantil, Os Poemas da Plêiade, seus cantos anacrônicos não dão em nada, ele vai à praia, compra badulaques, sonha, acorda, toca violão, nada. O filme fica pronto, o diretor fuma filmando, nada vai dar certo, seu disco é flopado como um brio que morre logo, não dá em nada este filme improvisado emulando Cassavetes, até seu P&B ficou afetado, uma semana em cartaz e acabou.

Ponto e final, o poema que nasce da desordem é este vício beatnik, vento e Buda, satori e maconha, tudo em escrita automática, um furor literário sem eira e nem beira, ah, parou, porra, que é isso? As vontades literárias são um estrondo, vem cá, eu vi a noite quente nos tambores, desmaiei, estava bêbado, deitei no chão, dormi, acordei, ainda era noite.

Fui ao mar, a lua estava cheia, tudo claro, o mar refletia esta lua potente, nadei, vi tudo em um mar de esmeralda, quase saí voando, era um sonho, acordei suado numa manhã quente, sem janelas, encastelado como uma cobra na toca, pensei que era um tipo de bicho, vomitei.

Melhorei e peguei meu bus para mais uma aventura sem destino, fui ao morro cantarolar com as armas, meu vício virava fumaça, vi todos os meus conhecidos se arrebentarem, sobrevivi, este livro que deixo é só um documento vasto feito de sangue.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Poema em Prosa – 11/10/2020

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

O GRANDE POEMA

 I feel o grande poema

na cara da astúcia,

como manda o figurino.


As grandes rimas foram

rifadas, o hausto exótico

se tornou obsoleto,

sobrou o canto inteligente

que se organiza 

no tempo de seu

tear, sem alucinar,

sem delirar,

apenas desenhando

seu próprio

contorno,

um poema

bem forte

e sólido,


grande, I feel the biggest poem,

I feel, I feel,

and I gained all things of

goodness,


oh, a bondade destes corações

possessos, varando a madrugada

com a inspiração de um

estro vulcânico,

qual magma da vida.


11/10/2020 Gustavo Bastos 

OS ABALOS DA POESIA

 O cristal rutilava na estalactite,

o umbral em que vivia o pistoleiro

obumbrava seu sangue de pista,

o poeta Villon, no degrau inferior

do inferno, caía ao Lete ao invés 

de se enforcar, morada breve

da alma perdida,


vejo agora :

o escritor de nome inscrito

na forma da calçada sumiu

pelo mundo, virou viajante


sua rota era inaudita :

teatro bunraku de Osaka

e sutis levitações

em Lhasa,


de chofre, chovia aos cântaros

nas monções, eu vi o poeta

em Cingapura, no Sri Lanka,

em Papua Nova-Guiné,

ele andou como poesia seleta

em Brisbane, em Perth,

e caiu no sono bêbado

ao rimar em Madagascar,


venho destas fotografias 

que tirei em Goa, a repetir

o tema em Kashmir,


Villon renascia em meu poema

como um canto parisiense,

Caronte enevoou a sua face

em minha visão, eu delirava

que poderia ser um mambembe,

um circense, vendo Poquelin

servir-se destes saltimbancos

nas noites das fogueiras,


sim, o proscênio embebido

em vinho, e os herdeiros

de Téspis na última badalada

da torre quando nasce

o sol.


11/10/2020 Gustavo Bastos 


OS PASSOS DE ESTRELA

 Eu antevejo o vento na lista

dos ares que pensei em verso,


qual nuvem, o sopro.


Eu pensei que pudesse vislumbrar

na altura o céu sob estrela,

qual estrela que rima o sol

tua quadratura e tua paralaxe,

a abóbada, que refestela

sobre a terra, seu caudal

e gira o sol n `aurora,


verte o canto vertebral,

anúncios de carros passam

e o canto dos bárbaros é forte,

um susto, o estetoscópio

me diz em língua surda

seu sinal :

zênite.


11/10/2020 Gustavo Bastos 

MARÍLIA GARCIA E O NOVO EU LÍRICO

“O eu lírico, em Marília Garcia, ganha seu caráter nesta sua interação com personagens e com a construção de cenas”

Quando se questiona o estatuto do sujeito lírico ou eu lírico na poesia, é muito comum se colocar este ente na dicotomia comum entre este sujeito lírico e o sujeito biográfico, a lacuna que pode se abrir entre um e outro, e que coloca o poeta e a poesia diante de um eu lírico que pode ser um tipo de potência infra ou hiper de sujeito, e que a abordagem autobiográfica se vê como insuficiente para esgotá-lo, um eu lírico que aparece muitas vezes dentro de uma pluralidade e uma complexidade que não se limita a um eu biográfico.

Marília Garcia, como tradutora, trabalhou os textos de poetas como Nathalie Quintaine e Emmanuel Hocquard, sendo este último objeto de investigação de sua tese de doutorado, ambos os poetas estão dentro do contexto da poesia francesa, entrando Marília nesta discussão sobre a voz lírica na França a partir da segunda metade do século XX, entrando, por conseguinte, na discussão dos impasses desta voz lírica.

Marília Garcia, em diálogo com estes poetas que traduziu e investigou, entra na senda poética que se coloca em uma poesia de estilo literal, recolocando o eu lírico numa dimensão mais complexa, superando a dicotomia entre abstração simbólica e um eu concreto, entre a linguagem mais pura e metafórica e o mundo empírico.

Contudo, esta linguagem híbrida sai da esfera de uma linguagem poética típica, buscando um universo de referências reais e concretas, como locais e fatos concretos, misturando esta concretude com processos criativos influenciados pelo cinema e pela fotografia, aparecendo aí um eu lírico sem carga autobiográfica, sendo um tipo de eu lírico construído pelo leitor.

Os poemas em Câmera Lenta são em sua maioria enunciados na primeira pessoa, mas este eu não obscurece a presença do mundo real e exterior, sendo este sujeito poético na poesia de Marília construído justamente nesta sua interação com o outro, numa espécie de contraste, uma alteridade que reflete no eu lírico e que o coloca como tal, não mais como um sujeito interiorizado ou refugiado numa abstração simbólica.

O eu lírico, em Marília Garcia, ganha seu caráter nesta sua interação com personagens e com a construção de cenas, o eu lírico aqui se projeta no outro e nos cenários que aparecem nos poemas, os versos em Câmera Lenta se desenvolvem numa ação.

A construção deste eu lírico, num mundo de cenários, personagens e ações está, portanto, num movimento permanente, inacabado, é um eu lírico ativo em seu mundo, uma poesia do real que mantém toda a intensidade característica do eu lírico que existia neste outro contexto da linguagem poética típica, que aqui neste projeto do Câmera Lenta, já está superado por uma nova abordagem ativa, um eu lírico que agora tem um caráter performativo.

POEMAS :

TEM PAÍS NA PAISAGEM? (VERSÃO COMPACTA) : O tempo aparece neste poema numa versão bem delineada, sem abstração, sem metafísica, na sensação que se dá entre o registro e o que se vê depois deste mesmo registro, a relação, de percepção, memória e imaginação ganha aqui um corpo poético que questiona, no que temos : “aqui só tenho uma regra :/todos os dias às 10 h/tiro uma foto da ponte./o resto é livre e gira/em torno da pergunta :/como ver o tempo/passar neste lugar?”. A imagem da ponte, que evoca passagem, aqui vira passagem do tempo, no que segue : “atravesso a ponte com 124 passos./quando um barco passa,/uma onda se forma./escrevo a partir das fotos e/depois apago as fotos.”. As fotos também são estas entidades próprias a evocar o tempo e seu enigma, a mistura entre a sensação do momento e a imaginação desta passagem depois que este momento se foi, no que vem : “antes de chegar,/ela me disse que o quarto era iluminado./“é difícil olhar as coisas/diretamente”, penso.” (...) “no teto tem uma claraboia/e todos os dias às 10 h/pergunto :/como ver este instante/passando? sempre tinha tentado/pular as etapas da vida/e apagar o entre.”. A captura impossível, deste vão entre uma coisa e outra, o entre dos instantes, a poeta Marília aqui se esgarça em sua luta temporal, e volta novamente à fotografia, no que vem : “a fotografia divide futuro/e passado – seria possível ver o que/está no meio?”. A fotografia coloca Marília novamente em sua busca desvairada por uma fração que se perde nesta divisão entre passado e futuro, e a desorientação no tempo, fenômeno comum da questão que se coloca com tal intensidade neste poema, se torna inevitável, no que temos : ““um mês depois/ainda pareço um zumbi”,/ela me diz e estamos no dia/7 de fevereiro.” (...) “todos os dias agora/um novo vocabulário se espalha./todos os dias tento entender/o que as pessoas dizem/seria [terrorismo] ou [terremoto]?/todos os dias agora/uma linha de sombra/por onde passo e aquela/poeira cinza/e colante.”. A imagem da ponte, neste poema, é tanto a referência de passagem, moldando a ideia de tempo contida no poema, como seu enigma que ecoa e reverbera em seu mistério, temos : “procuro a foto da ponte/feita um mês antes./seria possível ver/algum indício do que aconteceu?” (...) “olho agora para este texto que digito./como ver alguma coisa aqui?” (...) “a data 13 de novembro é a data/13 de novembro e na quarta vez/que repito 13 de novembro/eu vejo esta/data.”. Aparece um espectro, pode ser uma explicação, em vão, a poeta divaga novamente, o poema se torna evanescente, de súbito, diante desta aparição do fantasma de uma mulher, no que temos : “por fim, vou até ela :/hoje é dia 13 de novembro/e saio de casa às 9 h 55./quando chego ao rio,/sinto um vento nas costas/e lembro do fantasma que ronda a ponte./ela era casada com um homem/que estava na guerra/e teve um amante que lutava/pelo país inimigo.” (...) “contam que, em uma noite de inverno,/uma noite fria e escura,/ela ficou na ponte esperando o amante/durante muitas horas/e ele não veio./ela morreu congelada/ou caiu no rio.”. O tal fantasma some entre os carros, o poema se mistura entre o mundo real e o imaginário e se esvai numa coda indefinida, o poema não se responde, deixa tudo em aberto, e termina com a ideia perturbadora do desaparecimento : “agora me sento no parapeito da ponte/e olho para o outro lado do rio./tem país na paisagem?,/pergunto,/e, enquanto isso, ao longe,/o fantasma vai indo embora/no meio dos carros,/ela caminha/em plena luz do dia/e some.”.

PLANO B : O poema possui um caráter espacial complexo e evoca o mar, novamente o spleen, e Marília Garcia navega aqui com uma tonalidade concreta e desconcertante, no que temos : “hola, spleen, disse. nos cruzamos/no fundo do mar. você sentado no banco de trás/olhando pelo vidro azul-cobalto/a 3 mil quilômetros do ponto em/que eu o deixara.”. A ideia de espaço está bem presente no poema, que é um poema anguloso, com meandros, e que se expande com a firmeza de imagens inteligentes, no que vem : “pensava na carta sem remetente,/pensava em alguma maneira de dizer,/pensava nas/esculturas sonoras” (...) “era como descobrir o sulco/fechado de um disco e ficar/rodando no loop daquela melodia/circular. preciso de uma língua/que defina isso.”. O poema não fala da latitude, mas fala do mar, segundo a poeta Marília, e que tem : “hola, spleen, disse,/mas não falava da latitude/no mapa, eram peixes/no fundo do oceano com a cartilagem/luminosa derretendo nos olhos” (...) “a vingança começa num/aquário :/é como furar a realidade/com a realidade, ele dizia,/ficar no quarto/medindo o nível do mar/para descobrir onde pôr/os peixes”. A realidade é furada com o olhar poético, aqui tudo é possível, medir o nível do mar para, simplesmente, resolver um problema trivial, onde pôr os peixes.

UM QUADRADO QUE CEGA : A ideia de desorientação, a composição da luz, e o leitmotiv do poema, um quadrado que cega, temos :“aqui a luz faz o contrário de/iluminar : é como/a desorientação ou a serendipia. blind/light, um quadrado que/cega.”. Tentar aplainar o esférico, ideia estrambótica do poema, e que gera buracos, no que temos : “o último jantar era silencioso,/só conseguia pensar em uma escala/que planificasse o esférico./o mundo já não seria redondo/mas uma superfície plana/cheia de buracos.”. Buraco, queda, hélices, a ideia do giro, a hélice? A queda de um corpo, o título do livro, câmera lenta, poema estranho, angustiante, e que termina : “o que eu penso ao lembrar/de você é um buraco./só um buraco./um buraco cegando tudo./diante do buraco, as hélices desenham a/cena em pleno ar :/imagina/que desce durante o giro, o corpo em/câmera lenta caindo.”.

POEMAS :

TEM PAÍS NA PAISAGEM?

(VERSÃO COMPACTA)

1.

aqui só tenho uma regra :

todos os dias às 10 h

tiro uma foto da ponte.

o resto é livre e gira

em torno da pergunta :

como ver o tempo

passar neste lugar?

penso no infra

- ordinário do georges perec

e todos os dias

vou até a ponte

e tiro uma foto

que possa me dizer

alguma coisa

sobre estar aqui.

a ponte tem três arcos.

a água o rio é verde.

atravesso a ponte com 124 passos.

quando um barco passa,

uma onda se forma.

escrevo a partir das fotos e

depois apago as fotos.

(você poderia imaginar uma foto

do primeiro dia?

isso aqui é uma

expedição)

 

2 .

antes de chegar,

ela me disse que o quarto era iluminado.

“é difícil olhar as coisas

diretamente”, penso.

são muito luminosas ou muito

escuras.

no teto tem uma claraboia

e todos os dias às 10 h

pergunto :

como ver este instante

passando? sempre tinha tentado

pular as etapas da vida

e apagar o entre.

como atravessar os meses neste lugar

e ver o que acontece?

a fotografia divide futuro

e passado – seria possível ver o que

está no meio?

 

3 .

“um mês depois

ainda pareço um zumbi”,

ela me diz e estamos no dia

7 de fevereiro.

chego na ponte às 10 h para

a foto diária e tem

um caminhão em cima

da faixa de pedestre.

espero alguns segundos

até ele andar

e aperto o clique.

volto para casa com pressa

e leio o aviso na porta

de entrada.

há um mês colocaram

este aviso ali e o país

entrou em estado de alerta.

 

todos os dias agora

um novo vocabulário se espalha.

todos os dias tento entender

o que as pessoas dizem

seria [terrorismo] ou [terremoto]?

todos os dias agora

uma linha de sombra

por onde passo e aquela

poeira cinza

e colante.

 

4 .

 

procuro a foto da ponte

feita um mês antes.

seria possível ver

algum indício do que aconteceu?

procuro a foto do dia seguinte :

um caminhão e quatro pessoas.

tento ver alguma mudança

de um dia para

o outro.

 

olho agora para este texto que digito.

como ver alguma coisa aqui?

tento me fixar no desenho das letras,

na tinta impressa sobre

o papel do livro.

a data 13 de novembro é a data

13 de novembro e na quarta vez

que repito 13 de novembro

eu vejo esta

data.

 

5 .

 

por fim, vou até ela :

hoje é dia 13 de novembro

e saio de casa às 9 h 55.

quando chego ao rio,

sinto um vento nas costas

e lembro do fantasma que ronda a ponte.

ela era casada com um homem

que estava na guerra

e teve um amante que lutava

pelo país inimigo.

contam que, em uma noite de inverno,

uma noite fria e escura,

ela ficou na ponte esperando o amante

durante muitas horas

e ele não veio.

ela morreu congelada

ou caiu no rio.

 

olho para a esquina

em busca do espectro dela.

olho ao redor e a ponte tem três arcos.

a água do rio é verde.

atravesso a ponte com 124 passos.

quando um barco passa,

uma onda se forma.

ouço o barulho da onda

e o do barco.

 

agora me sento no parapeito da ponte

e olho para o outro lado do rio.

tem país na paisagem?,

pergunto,

e, enquanto isso, ao longe,

o fantasma vai indo embora

no meio dos carros,

ela caminha

em plena luz do dia

e some.

 

PLANO B

 

hola, spleen, disse. nos cruzamos

no fundo do mar. você sentado no banco de trás

olhando pelo vidro azul-cobalto

a 3 mil quilômetros do ponto em

que eu o deixara.

                               hola, spleen, disse. uma linha esconde

outra linha, a voz esconde o que

existe entre os dois. pensava na carta sem remetente,

pensava em alguma maneira de dizer, pensava nas

esculturas sonoras (não havia

um plano c? para onde

seguia)

 

era como descobrir o sulco

fechado de um disco e ficar

rodando no loop daquela melodia

circular. preciso de uma língua

que defina isso.

 

hola, spleen, disse,

mas não falava da latitude

no mapa, eram peixes

no fundo do oceano com a cartilagem

luminosa derretendo nos olhos

e a única preocupação quando

 

entrou ali era o som por detrás da voz dela :

saber se está triste há um ano

ou há 24 horas.

 

(na volta, passa a colecionar

os objetos. a vingança começa num

aquário :

                   é como furar a realidade

com a realidade, ele dizia, ficar no quarto

medindo o nível do mar

para descobrir onde pôr

os peixes)

 

UM QUADRADO QUE CEGA

aqui a luz faz o contrário de

iluminar : é como

a desorientação ou a serendipia. blind

light, um quadrado que

cega.

         a pergunta certa podia ser :

o que você está fazendo enviando postais

de tão longe? mas emudecia,

congelava quando as coisas

ficavam assim.

 

o último jantar era silencioso,

só conseguia pensar em uma escala

que planificasse o esférico.

o mundo já não seria redondo

mas uma superfície plana

cheia de buracos.

deste ponto de vista,

o verde não seria mais verde.

precisa agora de

24 dimensões para caber e, então,

ela entra em cena

 

silêncio.

 

aqui a luz faz o contrário de

iluminar. – você já disse isso,

ele murmura e me encara.

mais uma vez aparecem o 2 e o 4 :

primeiro para somar 48.

depois as placas riscam o ar e se repetem

a cada esquina. 2. 4. 2. 4.

não sabe dizer que lugar é esse,

mas segue colecionando os objetos.

 

se o portão se deformasse,

talvez pudesse ser direta, pensa.

se procurar as palavras -

- chave encontrará

números, mas também

seres marinhos, cílios, quilômetro, retina e

eletricidade. 2. 4. 2. 4.

 

o que eu penso ao lembrar

de você é um buraco.

                                só um buraco.

um buraco cegando tudo.

diante do buraco, as hélices desenham a

cena em pleno ar :

                                imagina

que desce durante o giro, o corpo em

câmera lenta caindo.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :    https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-e-o-novo-eu-lirico