PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 23 de julho de 2016

FRANÇOIS VILLON, O PRIMEIRO DOS POETAS MALDITOS – PARTE II

“em 1463 para diante, não há mais qualquer registro a seu respeito, Villon desaparece”

François Villon, de volta a Paris, envolve-se ainda em 1463 numa rixa de companheiros com os escreventes de mestre Ferrebouc: acaba por receber a condenação, desta vez,  à morte pelo preboste, a ser pendurado e estrangulado, isto é, uma condenação por enforcamento, tendo então, diante deste contexto, escrito o seu famoso poema “Balada dos Enforcados”, e uma quadra menos edificante (“Je suis Françoys, dont il me poise”, etc.).
A Corte do Parlamento, no entanto, muda a sentença em desterro de Paris, por um período de dez anos. E o fato mais curioso e espantoso é que a partir deste desterro, ainda em 1463 para diante, não há mais qualquer registro a seu respeito, Villon desaparece. Sua figura personificada em poeta maldito e marginal, por sua vez, era uma ideia que foi calcada pelos estudantes da Sorbonne e também da associação de clérigos do Palácio, conhecida como Basoche, e também por delinquentes, como os Coquillards, notórios falsificadores de relíquias de Santiago de Compostela, que fizeram com que Villon fosse reconhecido por alguns autores românticos como o precursor dos poetas malditos. A lenda de Villon, portanto, era a fronteira nada lisonjeira em que a arte se encontra com a simples delinquência, uma romantização de arte rebelde muito atraente para jovens perdidos e gerações na beira da explosão.
O fato incrível de Villon desaparecendo de Paris é um fato histórico, e então não se sabe nem onde e nem quando ele morreu; mas virou uma espécie bem curiosa de lenda da história da poesia, como faz crer o testemunho que vieram a se tornar anedotas que correram sobre sua vida, e o fato de ter tido numerosas edições depois da primeira, de 1489, e também num pequeno espaço de tempo ter se tornado personagem de Rabelais. Como documento organizado, por sua vez, a obra de Villon só ganhou corpo quando Marot estabeleceu seu texto em 1533, pois achava as edições anteriores deturpadas de tanto correrem; e a partir do século XIX os editores começaram a valer-se de manuscritos apógrafos de suas obras, que em número de cinco, três dos quais estão em Paris, o quarto na Biblioteca de Estocolmo e o quinto na Galeria das Estampas de Berlim.
Da vida amorosa de Villon não se conhece exatamente o que é real ou simbólico, sendo referendada, no entanto, uma possível junção de personas que dizem de uma única mulher: adepto da posição de mártir do amor, cita nominalmente em sua poesia Catherine de Vaucelles, Rose e Marthe (esta em acróstico), além de outras figuras como a Grosse Margot, da vida airada. Os biógrafos ignoram, por sua vez, se as três primeiras eram três pessoas ou uma só, variamente denominada. A nomenclatura pode ter sido diversa em uma só referência, que virou uma espécie de mandala policromática, sendo então, de qualquer forma, corroborada uma tendência, em certos estudiosos, de considerar real Catherine de Vaucelles, com esse nome ou pseudônimo, tanto quanto se pode restaurar a vida de Villon em referência com o que o mesmo deixou como registro, que é, sobretudo, pelo que escreveu em sua poesia.
O TESTAMENTO XLII-XLVI – Os versos mais significativos deste poema são a sua abertura, que já diz a que veio: “Pois que papas e reis, filhos de reis/E os que em ventres reais foram gerados/Mortos enterram-se, bem o sabeis,/E a mãos alheias passam seus reinados:/Eu, pobre diabo em Rennes e outros lados,/Não morrerei? Certo, se Deus quiser;/Mas tenha eu feliz quinhão gozado,/A morte honrada venha quando vier.” A finitude para papas e reis são de mesma monta para o reles poeta, o qual duvida de boa senda, ele, pobre diabo de Rennes, Villon tem um humor, por todo o trecho de sua letra tem, no entanto, o desejo de honra, pois quando e como vier, a morte não pode ser gratuita, mas depois de Villon ter gozado a existência, e a finitude, clamor de poetas e filósofos, grito primal dos desafortunados, pega também os citados papas e reis, e “a mãos alheias passam seus reinados”, e na arte se dá o mesmo, as gerações passam, o tempo em sucessão é que dá vida e morte para todos, a existência do artista, do poeta e dos reis e papas defendem a honra, mas não evitam que todos estes mortos enterrem-se, e como diz o poeta, bem o sabeis.

DUPLA BALADA – O poema tem versos como: “Por isso amai a bel-prazer,/Ide a festas, ide a reuniões./Afinal, isto ireis obter:/Uma série de amolações./O amor louco embesta os varões:/Foi Salomão à idolatria,/Sansão perdeu seus lunetões./Feliz quem dessa se desvia.” E nas citações de Villon, ele também não poupa a si mesmo, também enfeitiçado, como é de poeta fazer: “De mim, pobre, quero dizer:/Bateram-me qual tela em rio,/Todo nu, não quero esconder./Da Vausselles pelo amorio,/Ramo de groselha eu sofri-o.” O amor besta, este é por natureza, não há mal grave, nem bem transcendente, se sofre e se embesta, prazer em regime de dor, por isso ao bel-prazer se ama, em belo doer, como se rima clássica fosse, mas que em carne de poetas ou de reis, é a mesma loucura que faz vazar olhos, que faz lacrimejar olhos, que também faz sorrir, por ser sempre besta, e feliz de quem se desvia?  Nem tanto, a não ser como estribilho poético a funcionar em balada, mas certo em doer está a felicidade, que é besta como o mundo. 
Notas sobre o poema: Salomão – Por amor das mulheres, Salomão seguiu Astarote, deusa dos sidônios e Milcom, a abominação dos amonitas; e edificou um alto a Quemós, a abominação dos moabitas, e a Moloque (1 Reis, XII, 5 e 7). Isso ao tempo de sua velhice./ lunetões: óculos. Com esse anacronismo gaiato, Villon diz que Sansão teve olhos vazados pelos filisteus, depois de traído por Dalila: Juízes, XVI, 21. / Orfeu: figura Villon que Orfeu haja arrostado no inferno o cão Cérbero de três cabeças. Orfeu efetivamente desceu ao Hades em busca de Eurídice, como conta Virgílio nas Geórgicas, IV. As quatro cabeças de Cérbero são outra facécia de Villon (e também o “menestrier” para Orfeu, e as “musettes”), entre várias que vão surgir./ Narciso: apaixonado por sua imagem refletida na água, veio a morrer disso, desses “amorios” ou “afeições” (“amouretes” diz Villon)./ Sardana, o bravo: Sardanapalo, misturado com Saturno, rei de Creta. Sua feminilização acha-se em Orósio/ Davi: É a história de Davi e Betsabé (II Samuel, XI 2-3)/ Amnon ... pastelões, : pastelões, lit, pasteizinhos, como consta da Bíblia. A história de como Amnon violou sua irmã Tamar figura em II Samuel, XIII/ Herodes ... canções: O relato de como Herodes fez degolar São João Batista por causa das danças de Salomé consta de Mateus, XIV, 3-12 e de Marcos VI 21-29./ De ... desvia: Catherine de Vaucelles era o amor do poeta; Noel seria o terceiro, de vigia, mas se teria descuidado, donde as desventuras do poeta. Ou seria uma simples testemunha da sova. Outros tomam essas desventuras como figuradas, não tendo havido efetivamente nenhuma surra com ramos de groselha./ Luvas: refere Michel o costume de nas bodas, depois da refeição, os convivas trocarem murros, atenuados por mitenes./ loções: lit, perfumes extraídos do gato-de-algália.

CONTRA O DITO DE FRANC GONTIER : O poema tem versos como: “Um gordo cônego, sentado em edredão,/Junto a um braseiro, entre paredes bem forradas;/Dama Sidônia, reclinada ali à mão,/Lânguida, branca e doce, a flor das enfeitadas:/Vi-os aos dois, por fechaduras bem espiadas,/Ou dia ou noite, do hipocraz bebericar,/Brincar a acariciar-se, a rir e a se beijar,/E nus, para melhor do corpo se valer;/Então soube eu que para a dor exterminar/Não há coisa melhor que a vida a bel-prazer.” E também:  “Que Franc Gontier, por Deus, frua do seu brincar,/Helena ou ele, sob roseira de admirar:/Se lhes agrada tal, não posso me doer;”. O poema tem o estribilho claro da vida ao bel-prazer, e Villon como bom marginal sabia do que dizia, com todo o mundo de beleza, o enfeite do prazer não tem o fito senão de a dor exterminar, e se fuga esta é, ela tem muito de poesia, outra fuga, qual placebo, de que o prazer se serve, pois a vida mais ao bel-prazer é melhor do que sofrer sem razão, e aos que fazem sofrer, o prazer lhes dita a verdadeira vida, livre, criadora, e estupefata. Quando diante de tal felicidade, o poeta Villon não se dói, e sabe que a vida é viço, ao bel-prazer, ao contrário dos que corroem o coração alheio.
Notas sobre o poema: (título) O Testamento, v, 1473-1506. É de Marot, o título. O dit (composição em verso sobre assunto familiar, na Idade Média) de Franc Gontier era da autoria de Philippe de Vitry, bispo de Meaux (falecido em 1362), e celebrava a vida feliz, no campo, de Franc Gontier e de sua mulher Helaine Villon, em sua balada, contradiz isso, preferindo os confortáveis amores do gordo cônego com a dama Sidônia./ hipocraz: mistura afrodisíaca de vinho, açúcar, canela, cravo e gengibre. 11-16./ Se ... burlar: Ferdinando Neri aproxima esses versos dos do dito que lhes deram origem.
BALADA DE MARGOT, A ENCORPADA : O poema tem versos como: “Se eu amo a bela e a sirvo do maior bom grado,/Deveis tomar-me por pateta ou por vilão?/Tem ela bens, em si, do mais perfeito agrado.” E segue seu ritual: ““Voltai aqui, ao vos tomar do cio o ardor,/Neste bordel que em boa vida nos mantém.”” Tal estribilho, mais um de Villon em vida boa, quando já nos dizia do bel-prazer, em outra ocasião, nos brinda agora com esta peça de sexo e harmonia: “Segue-me a dissoluta, eu sendo garanhão./Quem vale mais? Um e outra têm afinação./Valem-se os dois: mau gato a rato mau convém.” Como se faz do encontro um poema, Villon ama e se serve de bom grado, indiferente em ser pateta ou vilão, um ser à margem, como convém, está na vida de bordel, vive bem e vive mais, pois do estribilho que lhe dá luz, ele tem a sua dissoluta, e ele se entende bem com ela, em vida boa, como a maus que nem ele apraz.
(título) “O Testamento”, v.1591-1627. O título é de Marot. Quanto à “Grosse Margot” há os que a tomam como personagem real; outros, como o nome de uma hospedaria, à sombra de Notre-Dame; P.Champion vê a influência das “sottes ballades”, nas quais se narravam amores populares e ridículos com mulheres sujas, fétidas e corcundas, mas não julga que a balada de Villon seja mero exercício literário. Na primeira estrofe, “há um Villon que abre a porta, que segura a vela, que procura a comida e a bebida do cliente” (Favier). / Eu ... rumor: “É o que se diz do marido complacente que deixa o quarto à companheira, quer vá ou não buscar o vinho na adega enquanto a mulher lucra ou se diverte no leito conjugal” (Favier)/ Anticristo : ou o poeta ou Margot, conforme o editor./ No orig. há um acróstico, “Villon”, que desta vez não pode manter.

O TESTAMENTO XLII-XLVI

Pois que papas e reis, filhos de reis
E os que em ventres reais foram gerados
Mortos enterram-se, bem o sabeis,
E a mãos alheias passam seus reinados:
Eu, pobre diabo em Rennes e outros lados,
Não morrerei? Certo, se Deus quiser;
Mas tenha eu feliz quinhão gozado,
A morte honrada venha quando vier.
Para todos o mundo tem final,
Pense o que bem pensar rico ladrão:
A espada pende sobre nós, mortal.
O velho aceita essa consolação,
Ele que teve a fama de burlão
Jovial, no tempo em que era rapazola,
E ter-se-ia por mau e paspalhão
Se velho usasse de fazer graçola.
Agora força é que entre a mendigar,
Pois a tanto o constrange a precisão.
Como ontem, põe-se a morte hoje a chamar:
A Tristeza lhe oprime o coração.
Não fosse Deus a sua punição,
Horrível ato ele praticaria:
Quebrando a lei de Deus com essa infração,
Ele a si mesmo se destruiria.

Se ele foi, quando jovem, agradável,
Agora não diz nada mais que agrade;
Macaco velho é bem desagradável,
Não faz momice que não desagrade;
Se se cala, e com isso não enfade,
Levam-no à conta de perfeito idiota;
Fala? Mandam que cale, de verdade,
Que em sua ameixeira fruto não se nota.
Assim é que essas pobres mulherzinhas
Que já não têm com que, pois velhas são;
Se vêm rogar-lhes, umas jovenzinhas,
Que as alcovitem, pedem a razão
Baixinho a Deus: por que motivo, oh não!
Vieram há tantos anos para o dia?
Nosso Senhor se cala, quietarrão,
Pois, caso discutisse, perderia.

DUPLA BALADA

Por isso amai a bel-prazer,
Ide a festas, ide a reuniões.
Afinal, isto ireis obter:
Uma série de amolações.
O amor louco embesta os varões:
Foi Salomão à idolatria,
Sansão perdeu seus lunetões.
Feliz quem dessa se desvia.
Flautas e gaitas a tanger,
Orfeu, o de doces canções,
Cérbero o teve em seu poder,
O cão de quatro boqueirões.
Narciso, o de belas feições,
Afogou-se em funda água fria,
E isso por simples afeições.
Feliz quem dessa se desvia.

Sardana, o bravo a mais não ser,
Conquistou Creta e seus rincões;
Porém quis se tornar mulher,
Ficar com as moças sem senões.
Davi, rei de sábias lições,
Vendo banhar-se coxa esguia,
Esqueceu-se de a Deus temer.
Feliz quem dessa se desvia.
Amnon quis bem pôr a perder,
Fingindo comer pastelões,
Quis a irmã Tamar conhecer,
Num incesto dos mais vilões;
Herodes – não são digressões –
A degolar São João envia,
Por saltos, danças e canções.
Feliz quem dessa se desvia.

De mim, pobre, quero dizer:
Bateram-me qual tela em rio,
Todo nu, não quero esconder.
Da Vausselles pelo amorio,
Ramo de groselha eu sofri-o.
Tenha Noel, que a isso assistia,
Luvas nas bodas que enuncio.
Feliz quem dessa se desvia.
Mas um jovem solteiro ter
De largar solteiros botões?
Não! Mesmo em fogo vindo a arder,
Qual feiticeiro nos tições.
Mais doces são-lhe que as loções.
Nisso, porém, tolo se fia:
De claras ou de morenões,
Feliz quem dessa se desvia.

CONTRA O DITO DE FRANC GONTIER

Um gordo cônego, sentado em edredão,
Junto a um braseiro, entre paredes bem forradas;
Dama Sidônia, reclinada ali à mão,
Lânguida, branca e doce, a flor das enfeitadas:
Vi-os aos dois, por fechaduras bem espiadas,
Ou dia ou noite, do hipocraz bebericar,
Brincar a acariciar-se, a rir e a se beijar,
E nus, para melhor do corpo se valer;
Então soube eu que para a dor exterminar
Não há coisa melhor que a vida a bel-prazer.
Se Franc Gontier e a companheira Helena, então,
Horas assim passassem, tão adocicadas,
Não gostariam de esfregar tostado pão
Com cebolas de forte bafo acompanhadas;
Os seus cozidos e também suas coalhadas
Não valem mais que um alho, digo sem burlar:
Não é melhor um leito com cadeira ter?
Que dizeis? Convém nisso o tempo dissipar?
Não há coisa melhor que a vida a bel-prazer.

Vivem de aveia, de cevada e rude pão,
E ao longo do ano de água servem-se, às canadas.
A preço tal não poderiam ter-me, não,
Por um só dia ou uma só das madrugadas,
Daqui a Babilônia, as aves encontradas.
Que Franc Gontier, por Deus, frua do seu brincar,
Helena ou ele, sob roseira de admirar:
Se lhes agrada tal, não posso me doer;
Mas seja isso embora claro trabalhar,
Não há coisa melhor que a vida a bel-prazer.
Príncipe, conciliai a todos ao julgar;
Por mim, e que a ninguém consiga desprazer,
Ainda pequenino sempre ouvi lembrar:
Não há coisa melhor que a vida a bel-prazer.

BALADA DE MARGOT, A ENCORPADA

Se eu amo a bela e a sirvo do maior bom grado,
Deveis tomar-me por pateta ou por vilão?
Tem ela bens, em si, do mais perfeito agrado.
Por seu amor, daga e broquel medo me dão;
Quando vem gente, corro e a um pote levo a mão,
Eu fujo para o vinho sem fazer rumor;
Queijo, água, pão e vinho ponho ao seu dispor.
“Ótimo!” eu digo-lhes se acaso pagam bem;
“Voltai aqui, ao vos tomar do cio o ardor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.”
Revelo-me, contudo, em grande desagrado
Quando Margot se vem deitar sem um tostão;
De morte a odeio, não a posso ver ao lado.
Tomo-lhe a roupa, o cinto e a sobreveste, então,
E juro que isso valerá o meu quinhão.
Segura os lados. “É o Anticristo!” – ergue o clamor;
Jura pela paixão de nosso Salvador
Que não há de deixar. Eu pego um pau, porém,
E embaixo do nariz lhe escrevo, com rancor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Mais do que venenoso escaravelho inflado,
Depois que a paz é feita, ocorre-me um punzão.
Ela ri e o cocoruto meu vejo esmurrado,
Diz-me “Go, go”, na coxa dá-me um safanão.
Ébrios os dois, dormimos com disposição,
E ao despertar, se tem no ventre esto, calor,
Monta em mim, para que não perca o seu favor.
Sob ela gemo, tábua chata no vaivém.
Ela destrói-me todo com o lascivo humor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.
Vento, granizo, gelo, está cozido o pão.
Segue-me a dissoluta, eu sendo garanhão.
Quem vale mais? Um e outra têm afinação.
Valem-se os dois: mau gato a rato mau convém.
Sujeira vem atrás, se amamos sujidão;
À honra fugimos, foge-nos a retidão,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29782/17/francois-villon-o-primeiro-dos-poetas-malditos-parte-ii

      

domingo, 17 de julho de 2016

FRANÇOIS VILLON, O PRIMEIRO DOS POETAS MALDITOS – PARTE I

“Villon tem uma biografia extremamente acidentada, na qual avultam crimes e prisões”
François Villon (Paris, 1431-1463) é o poeta francês mais importante da Baixa Idade Média, poeta que em seus escritos antecipou muito o que viria a surgir na poesia moderna, sendo considerado por muitos, portanto, como o primeiro poeta moderno da França, mesmo, como dito, ser Villon um poeta que viveu aos fins da Idade Média, e se vincule, por conseguinte, à tradição realística do século XIII, de Colin Muset e Rutebeuf. E Villon tem uma biografia extremamente acidentada, na qual avultam crimes e prisões. Villon tem uma vida controversa, cheia de polêmicas, ele era um misto de poeta e criminoso, e embora haja pouca informação proveniente dos processos jurídicos que sofreu, tais acontecimentos se confundem facilmente com a sua persona de poeta, e muito pode ser inferido disto em seus versos.
De nome François de Montcorbier ou des Loges, mais tarde adotou o Villon, de mestre Guillaume de Villon, cônego de Saint-Benôit-le-Bétourné e professor de direito canônico, que foi para ele mais que pai, uma vez que ficara órfão muito cedo. Em 1443 ingressa na Faculdade de Artes da Universidade de Paris, pela qual se torna bacharel em 1449 e, sucessivamente, licenciado, em maio de 1452, e mestre em artes, em agosto. Ainda como estudante, participa em 1451-1452, provavelmente, das várias peripécias da questão do Pet-au-Diable, na qual esse marco foi roubado. E tudo indica que Villon permaneceu ligado à universidade, pois continuou a dizer-se escolar em sua poesia (“Le Lais”), não tendo, contudo, feito carreira eclesiástica nem secular, como poderia, dada a sua habilitação. Em 1455 acontece um dos fatos polêmicos de sua curiosa biografia, pois provocado por um sacerdote, Philippe Chermoye ou Sermoise, Villon o feriu, e deste ferimento o padre veio a morrer. Villon, também ferido, deixou Paris, mas no ano seguinte obteve duas cartas de remissão por esse homicídio, em janeiro. Aqui se junta a poesia ao banditismo, que quero frisar neste texto que não tem nada de glamouroso ou romantizado, é apenas um fato biográfico, nada mais que isto.
E, continuando a sua peripécia, Villon, por volta do natal de 1456, participa do roubo do tesouro do Colégio de Navarra, em companhia de Colin de Cayeux, D. Nicolas, Petit Jean e Guy Tabarie. Este último dá com a língua nos dentes e Villon novamente se ausenta de Paris, levando vida errante na província. Esteve provavelmente em Bourg-la-Reine, Angers, Bourges, Blois, na corte de Charles d`Orléans, o príncipe-poeta, que compila diversos poemas seus, dentre eles a célebre “Dupla Balada”, e onde participa de um concurso de poesia e escreve a balada “Je meurs de soif auprès de la Fontaine”, segundo parece, sendo este mote fornecido pelo duque, ele próprio poeta de primeira linha.
Talvez aprisionado em Orléans, foi-o com certeza em Meung-sur-Loire, por ordem do bispo Thibaut d`Aussigny, em 1461, passando o verão num calabouço, onde provavelmente compõe “O debate do coração e do corpo de Villon”. Nessa oportunidade, o bispo o teria degradado de sua condição de clérigo, por fim. Foi libertado quando Luís XI passou pelo lugar, indultando os presos. No ano seguinte volta a Paris e é encarcerado no Châtelet, sob acusação de roubo. Quando estava para ser libertado, voltou à baila o roubo do Colégio de Navarra; foi solto em novembro, sob a promessa de devolver 120 escudos ao mesmo Colégio, no prazo de três anos. Villon é de fato um poeta de biografia complicada, e não lhe dou a pecha de herói romântico, algo que a cepa de poetas malditos glorificará, creio muitíssimo equivocadamente, pois tal epíteto é uma das afetações da história da poesia.
Balada dos enforcados: O título do manuscrito Fauchet e da editio princeps é “L`épitaphe Villon”, mas a “Ballade des pendus” é corrente. Villon tem presente o espetáculo horroroso do cadafalso de Montfaucon, neste que é um de seus mais celebrados poemas, escrito quando recebeu a condenação à forca.
E tem versos como: “Irmãos humanos que depois de nós viveis,/Não tenhais duro contra nós o coração,/Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis,/Deus vos concederá mais cedo o seu perdão./Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:”, Villon aqui expõe a sua condição de condenado, e luta contra a dureza de coração, a mesma que ele deveria ter pensando antes de seus crimes, está pendurado, e apela a Deus, num ardil ou desespero. E segue sua ladainha: “Ninguém nos atormente, a vida já acabada./Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!”, pois então já se vê Villon diante da morte, e usa do estribilho do último verso mais uma vez apelando a Deus, no que consuma sua visão em tais versos: “Príncipe bom Jesus, de universal mandar,/Guardai-nos, ou o inferno então nos arrecada:/Lá nada temos a fazer, nada a pagar.” E Villon tem carga pesada, certo pagará, no inferno ou no próprio mundo.
Balada das damas dos tempos idos : Flora é a cortesã romana à qual se referiam Latâncio e os apologistas cristãos. Arquipíades : Alcibíades (dado como exemplo de beleza por Boécio), na Idade Média, até o séc. XV, era amiúde tomado como mulher. Taís citam-se várias cortesãs antigas, mas Michel opta pela Alexandria, citando assim Villon uma romana, uma grega e uma alexandrina. Eco é a ninfa que se apaixonou por Narciso e definhou até morrer por não ter sido correspondida, reduzindo-se então a uma simples voz. E a tirana é Heloísa, que foi discípula de Abelardo, com o qual se casou secretamente; o cônego Fulbert, tio da moça, não sabendo disso, mandou sicários castrarem-no. Abelardo se fez de monge, ela freira, encetando uma correspondência famosa. Foram sepultados juntos na Abadia do Paracleto, na Champanha. Buridan, por sua vez, é um escolástico, reitor da Universidade de Paris em 1328. Uma tradição o ligava à Torre de Nesle, onde uma rainha saciava sua luxúria e depois mandava apunhalar o amante eventual e lançá-lo ao Sena. Diz-se que Buridan soube escapar da morte. A rainha deve ter sido Margarida de Borgonha, mulher de Luís o Teimoso, condenada à morte por mau comportamento (1315). Seria ela, decerto, a rainha Branca dos versos. Outros supõem Branca de Castela, mãe de São Luís. Berta ou Beatriz, por sua vez, é mãe de Carlos Magno. Os nomes de Berta, Beatriz e Aelis figuram na canção de gesta Hervé de Metz. E Alis seria Aélis, uma das filhas de Alienor d`Aquitânia. A suserana, por fim, é Haremburgis, Arembour, condessa do Maine, morta em 1226. “E a boa lorena, Joana,/Que os ingleses queimaram em Ruão?”: Nada mais que Joana D`Arc.
Nos versos: “Onde a rainha que, leviana,/Mandou Buridan, num surrão,/Lançar ao Sena, doidivana?” aqui é o Villon como poeta histórico, lembrando que sua poesia é um mundo de referências às quais devemos estar atentos para entender a sua poesia, que fecha, ao som da balada, com estribilho, que é também a coda: “Mas as neves do outro ano onde estão?”.
Ao tempo em que alexandre ...: Alexandre, o Grande, que conquistou quase todo o mundo conhecido em sua época (356-323 a.C.). E ao chamado responde a anedota de Diomedes ou Dionides, que figura em Cícero e no retor Caecilius Balbus. Reproduzida no século XIII no Policratus, de João de Salisbury, e no séc. XIV, no Liber Scacchorum, de Jacques de Cessoles, com a obra traduzida em francês por Jean du Vignal. E Valério sendo Valério Máximo, que todavia não é a fonte da anedota.
Nos versos sobre Diomedes, temos: “Ante ele: era infamado/Como pirata corre-mar;”. E segue Villon, fazendo o diálogo louco entre Diomedes e Alexandre, entre o pirata que não tinha nada e o imperador que tinha tudo: “O imperador o interpelou:/“Por que tu és ladrão no mar?”/A isto o outro replicou:/“Por que ladrão me hás de chamar?”. E Villon faz Diomedes responder: “Pudesse eu, como tu, me armar,/Como tu imperador seria.”. E Villon explica a razão do banditismo, o qual também praticava, na voz de Diomedes:  “Miséria faz o delinquente,/E a fome o lobo faz sair.” E Diomedes (Villon) conclui, com muita simplicidade: “Não tenho renda, uma qualquer;”.
Balada dos senhores dos tempos idos: Calisto : Calisto III (Afonso Borgia) foi papa de 1455 a 1458. Alfonso : Afonso V, rei de Aragão, falecido em 1458. O duque de Bourbon : Carlos I de Bourbon, falecido em 1456, pai de Jean II, a quem Villon endereçou a “Requeste”. Artur : Artur III da Bretanha, condestável de Richemont, falecido em 1458, companheiro de Joana D`Arc. Carlos sétimo : Rei de França, falecido em 1461. Rei da Escócia : Jaime II da Escócia, que tinha uma mancha cor de vinho no rosto (atribuía-se à ametista, gema contrária à embriaguez, a cor do vinho) faleceu em 1460. Rei de Chipre : Jean III de Lusignan, falecido em 1458. Rei da Espanha : Juan II, rei de Castela e de Leão, falecido em 1454. Ladislau da Boêmia : Ladislau (Laszlo) d`Áustria, rei da Boêmia, falecido em 1457. Guesclin : O Condestável du Guesclin, que sob Carlos V combateu vitoriosamente os ingleses. Morreu no cerco de Randon em 1380. Delfim de Alvérnia : Beroldo III, conde-delfim de Alvérnia, falecido em 1426. Duque de Alençon : Ou Jean I, morto em Azincourt (1415), ou Jean II, considerado morto, com os bens confiscados e reunidos ao domínio real em 1458.
E aqui alguns dos versos de Villon neste poema, que posso citar: “Também o rei da Escócia, celebrado/Porque teve da face todo um lado/Como a pedra ametista apurpurado/Desde a fronte até o queixo, e isso é famoso?”. E aqui o estribilho que é coda, própria da balada: “Mas onde Carlos Magno, o denodado?”. E as tonalidades filosóficas do poema, em versos como: “O mundo, tenho-o uma ilusão julgado./Ninguém existe que resista ao fado,/Ou tenha proteção contra o imperioso.” O fado e o império dos acontecimentos, que nos fazem crer e descrer de toda a ilusão mágica e terrível de existir.

BALADA DOS ENFORCADOS

Irmãos humanos que depois de nós viveis,
Não tenhais duro contra nós o coração,
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis,
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada,
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
Chamamo-vos irmãos: disso não desdenheis,
Apesar de a justiça a nossa execução
Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis
Que nem todos possuem juízo firme e são.
Exculpai-nos – que mortos, mortos nos sabeis –
Com o filho de Maria, a nunca profanada;
A sua graça, para nós, não finde em nada,
No inferno não nos venha o raio despenhar.
Ninguém nos atormente, a vida já acabada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;
O sol nos ressequiu até a negridão;
Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! -,
Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.
Em tempo algum tranquilos nos contemplareis:
Para cá, para lá, o vento da virada
A seu talante leva-nos, sem dar pousada;
Mais que a dedal, picam-nos pássaros no ar.
Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
Príncipe bom Jesus, de universal mandar,
Guardai-nos, ou o inferno então nos arrecada:
Lá nada temos a fazer, nada a pagar.
Homens, aqui a zombaria é inadequada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

BALADA DAS DAMAS DOS TEMPOS IDOS

Dizei-me onde, em que país,
Está Flora, a bela romana,
Arquipíades ou Taís,
Que foi sua prima germana;
Eco, beleza mais que humana,
Que na água estanque ou ribeirão,
Quando há barulho, fala e flana.
Mas as neves do outro ano onde estão?
Onde Heloísa, por quem se diz
Que, castrado, vestiu sotana
Pedro Abelardo, em São Denis?
Do amor lhe veio a dor tirana.
Onde a rainha que, leviana,
Mandou Buridan, num surrão,
Lançar ao Sena, doidivana?
Mas as neves do outro ano onde estão?

A rainha Branca de lis,
De sua voz sereia ufana,
Berta pé-grande, Aelis, Beatriz,
Do Maine e Arembour suserana,
E a boa lorena, Joana,
Que os ingleses queimaram em Ruão?
Que é delas, Virgem soberana?
Mas as neves do outro ano onde estão?
Príncipe, não gasteis semana
E ano a indagar onde serão,
Que do refrão sempre dimana:
Mas as neves do outro ano onde estão?

AO TEMPO EM QUE ALEXANDRE ...

Alexandre reinava; então
Um homem, Diomedes chamado,
Tendo correntes, qual ladrão,
Nos dedos todos, foi levado
Ante ele: era infamado
Como pirata corre-mar;
E posto ante o grande soldado,
Este de morte o ia julgar.
O imperador o interpelou:
“Por que tu és ladrão no mar?”
A isto o outro replicou:
“Por que ladrão me hás de chamar?
Porque me veem piratear
Numa pequena fusta esguia?
Pudesse eu, como tu, me armar,
Como tu imperador seria.
Mas que queres? De minha sorte,
Contra a qual não tenho poder,
Pois me trata com injusto porte,
Surge todo esse quefazer.
Vem-me teu perdão conceder,
E sabe que em grande pobreza
- Isto é comum ouvir dizer –
Não reside grande inteireza.”

O imperador teve por forte
Essa resposta do arguente.
“Eu mudarei a tua sorte
De má em boa” – fê-lo ciente.
E o cumpriu. Não mais malfazente
Mostrou-se o homem, mas honrado:
Que é verdade Valério o assente,
E o Grande em Roma foi chamado.
Se Deus me desse de encontrar
Outro Alexandre que, clemente,
Ao bem me viesse encaminhar,
No mal tombasse eu, reincidente,
Sentenciar-me-ia, imparcialmente,
A ser queimado e em cinza advir.
Miséria faz o delinquente,
E a fome o lobo faz sair.
Choro o tempo de juventude
(No qual mais que em outros gozei,
Até anunciar-se a senectude):
Sua partida não notei.
Não se foi ele a pé – julguei –
Nem a cavalo, mas voou
De súbito, ai! assim direi,
E dom algum não me deixou.
Foi-se e eu me encontro, então e agora,
Pobre de senso e de saber,
Triste, mais negro do que amora;
Não tenho renda, uma qualquer;
Chega até a me desconhecer
O menor dos meus, é verdade,
Deixando o natural dever
Porque vivo em necessidade.

(obs: esta é a primeira parte do poema, que é longo)

BALADA DOS SENHORES DOS TEMPOS IDOS

Onde será Calisto procurado,
Terceiro em nome e último finado,
Que esteve quatro anos no papado?
Alfonso de Aragão, rei afamado,
O duque de Bourbon, tão gracioso,
E Artur, que da Bretanha houve o Ducado,
E Carlos sétimo, de bom chamado?
Mas onde Carlos Magno, o denodado?
Também o rei da Escócia, celebrado
Porque teve da face todo um lado
Como a pedra ametista apurpurado
Desde a fronte até o queixo, e isso é famoso?
O rei de Chipre, que era renomado,
E o nobre rei da Espanha, ai! tão falado,
De quem eu esqueci o nome honroso?
Mas onde Carlos Magno, o denodado?

De falar neste assunto já me enfado;
O mundo, tenho-o uma ilusão julgado.
Ninguém existe que resista ao fado,
Ou tenha proteção contra o imperioso.
Mas perguntar inda é de meu agrado:
Ladislau da Boêmia, o potentado,
Onde está? E onde o seu avô faustoso?
Mas onde Carlos Magno, o denodado?
Onde está du Guesclin, bretão brioso?
Onde o delfim da Alvérnia será achado?
E o duque de Alençon, ido e animoso?
Mas onde Carlos Magno, o denodado?

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29667/17/francois-villon-o-primeiro-dos-poetas-malditos-parte-i