“O Barroco, quando surgiu, era uma reação ao domínio da
linguagem clássica que caracterizava o Renascimento”
Temos o movimento Barroco como um estilo que se propagou
intensamente no Brasil, sendo hoje até uma forma pejorativa de discernir certas
heranças e características que permanecem até hoje na nossa cultura e na
própria expressão geral de nosso país. Por outro lado, originalmente, temos tal
movimento como evento próprio que se deu entre o fim do século XVI e início do
século XVII.
O Barroco, quando surgiu, era uma reação ao domínio da
linguagem clássica que caracterizava o Renascimento, este que, por sua vez,
vinha ideologicamente sob o influxo de um antropocentrismo que revivia em base
própria as venturas da cultura clássica greco-romana da Antiguidade.
Com a palavra “barrueco” sendo traduzido por “pérola
irregular”, temos mais uma vez patente que se trata de um movimento artístico e
literário que coloca a arte barroca como oposta à proporção, regularidade e
equilíbrio renascentistas. E temos aqui o contexto da expansão do Absolutismo
na Europa, a reação da contrarreforma católica em face da Reforma Protestante
(aqui com a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, em 1517).
Ou seja, foi na convocação da Igreja Católica para o Concílio
de Trento, que se iniciou em 1545, que teríamos o movimento dos jesuítas e o
Tribunal do Santo Ofício, além do fim das indulgências e o apoio total às artes
sacras, cujo influxo se deu no Barroco, estilo este que era detalhista e
rebuscado, sem a ordem pretensamente racional do Renascimento.
No final do século XVI, em Portugal, temos a morte ou
desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir, norte da África, em 1578,
numa batalha. Resultado : Portugal teve uma crise pela sucessão do trono, e
então o país perdeu a sua independência, pois Filipe II instituiu a União
Ibérica, marco histórico para o surgimento, por conseguinte, do Barroco de
Portugal, cuja presença dos jesuítas foi marcante.
Por fim, o Barroco brasileiro terá a influência dos
portugueses e os recursos estilísticos do Barroco espanhol, cujo estro
gongórico e quevedista serão tratados novamente no último texto desta série
sobre Gregório de Matos Guerra, que será o próximo. Aqui temos a penúltima
parte da série.
POEMAS :
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COM MIUDEZA, E ENTENDIMENTO CLARO, E SE RESOLVE A SEGUIR SEU ANTIGO DICTAME. : O poema segue esta velha arte de se
fazer de tolo, no que o poeta Gregório granjeia bem o que quer, no que vem :“Que
néscio, que era eu então,/quando o cuidava, o não era,/mas o tempo, a idade, a
era/puderam mais que a razão :”. E o tempo, aqui no poema, e na vida, sempre
tem mais poder e luz para o entendimento do que a própria razão tomada em si
mesma, no que temos : “vim no cabo a entender,/que o tempo veio a fazer,/o que
a razão nunca fez./O tempo me tem mostrado,/que por me não conformar/com o
tempo, e co lugar/estou de todo arruinado :”. O poema segue, e o paradoxo é que
a hipocrisia tem uma sorte maior do que humildes honestos e na verdade
arruinados, a doce fortuna sendo uma luz que se dá no disparate, e o poeta Gregório
aqui sendo comparado a um trapo, no que vem : “Muitos por vias erradas/têm acertos
mui perfeitos,/muitos por meios direitos,/não dão sem erro as passadas :/cousas
tão disparatadas/obra-as a sorte importuna,” (...) “tá, que sou pessoa honrada,/e
um homem de entendimento;/qual honrado, ou qual talento?/foram-me pondo num
trapo,/vi-me tornado um farrapo,/porque um tolo fará cento.”. E aqui a Bahia
aparece em seu esplendor e corrupção, no que temos : “Eia, estamos na Bahia,/onde
agrada a adulação,/onde a verdade é baldão,/e a virtude hipocrisia :”. E o
poeta, adrede, faz o papel de besta para se dar bem, no que temos : “não sou eu
de todo besta,/pois tratei de o parecer :/assim vim a merecer/favores, e
aplausos tantos/pelos meus néscios encantos,/que enfim, e por derradeiro/fui
galo de seu poleiro,/e lhes dava os dias santos./Já sou na terra bem visto,/louvado,
e engrandecido,/já passei de aborrecido/ao auge de ser benquisto :/já entre os
grandes me alisto,/e amigos são, quando topo,/estou fábula de Esopo/vendo falar
animais,/e falando eu que eles mais,/bebemos todos num copo./Seja pois a
conclusão,/que eu me pus aqui a escrever,/o que devia fazer,/mas que tal faça,
isso não :/decrete a divina mão,/influam malignos fados,/seja eu entre os
desgraçados/exemplo de desventura :/não culpem minha cordura,/que eu sei, que
são meus pecados.”. Mas aqui a ideia hipócrita do poeta é, por fim, debelada, e
o poeta se coloca em suas desventuras que são seus pecados, mas é a vida de
verdade, e não a simulação que lhe daria galardão imerecido, próprio de uma
conduta degenerada, o que o poeta, para sua crítica, se mantém na sua
integridade de observador dos costumes, portanto, sem se corromper pelos
mesmos.
DEFENDE O POETA POR
SEGURO, NECESSARIO, E RECTO SEU PRIMEYRO INTENTO SOBRE SATYRIZAR OS VICIOS. : O poeta diz a que veio, e o que já
fez, no que vem : “Eu sou aquele, que os passados anos/cantei na minha lira
maldizente/torpezas do Brasil, vícios, e enganos.”. E segue o poeta : “Arda
Baiona, e todo o mundo arda,/Que, a quem de profissão falta à verdade,/Nunca a
Dominga das verdades tarda./Nenhum tempo excetua a Cristandade/Ao pobre
pegureiro do Parnaso/Para falar em sua liberdade.”. E o poeta defende mais uma
vez a verdade, e tudo que se diz é sentido, mas nem sempre se diz tudo o que se
sente, no que vem : “De que pode servir calar, quem cala,/Nunca se há de falar,
o que se sente?/Sempre se há de sentir, o que se fala!/Qual homem pode haver
tão paciente,/Que vendo o triste estado da Bahia,/Não chore, não suspire, e não
lamente?”. Mais uma vez o retrato crítico da Bahia, e a descrição do néscio,
que não percebe o valor das coisas, no que vem : “O néscio, o ignorante, o
inexperto,/Que não elege o bom, nem mau reprova,/Por tudo passa deslumbrado, e
incerto./E quando vê talvez na doce trova/Louvado o bem, e o mal vituperando,/A
tudo faz focinho, e nada aprova./Diz logo prudentaço, e repousado,/Fulano é um
satírico, é um louco,/De língua má, de coração danado./Néscio : se disso
entendes nada, ou pouco,/Como mofas com riso, e algazarras/Musas, que estimo
ter, quando as invoco?/Se souberas falar, também falaras,/Também satirizaras,
se souberas,/E se foras Poeta, poetizaras.”. Portanto, o néscio só entenderia
poesia e sátira se as fizesse, e o poeta segue : “Quantos há, que os telhados
têm vidrosos,/E deixam de atirar sua pedrada/De sua mesma telha receosos.” (...)
“Todos somos ruins, todos preversos,/Só nos distingue o vício, e a virtude,/De
que uns são comensais, outros adversos./Quem maior a tiver, do que eu ter pude,/Esse
só me censure, esse me note,/Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.”. E a
crítica do poeta aqui se consolida com uma coda de humor áspero e ao mesmo
tempo otimista, ao fim, desejando saúde.
CONTEMPLANDO NAS COUSAS
DO MUNDO DESDE O SEU RETIRO, LHE ATIRA COM O SEU APAGE, COMO QUEM A NADO
ESCAPOU DA TROMENTA. : Aqui temos um poema de vileza, no bom sentido, com mordacidade e
pornografia de um Gregório humorístico, no que vem : “Neste mundo é mais rico,
o que mais rapa :/Quem mais limpo se faz, tem mais carepa :/Com sua língua ao
nobre o vil decepa :/O Velhaco maior sempre tem capa./Mostra o patife da
nobreza o mapa :/Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;/Quem menos falar pode,
mais increpa :/Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.”. E pela lei do ladino,
termina-se em onomatopeia num jogo de linguagem poética inteligente, e ao mesmo
tempo simples, no que vem : “Para a tropa do trapo vazo a tripa,/E mais não
digo, porque a Musa topa/Em apa, epa, ipa, opa, upa.”.
ENCONTRO QUE TEVE COM
HUMA DAMA, MUY ALTA, CORPOLENTA, E DESENGRAÇADA. : O poeta aqui faz homenagem à musa,
rainha soberana, mui alta e mui poderosa, no que vem : “Mui alta, e mui
poderosa/Rainha, e Senhora minha,/por poderosa Rainha,/Senhora por alterosa :/permiti,
minha formosa,/que esta prosa envolta em verso/de um Poeta tão perverso/se
consagre a vosso pé,/pois rendido à vossa fé/sou já Poeta converso.”. O poema
segue e o poeta busca sinal amoroso neste ar de coração lastimado, no que temos
: “permiti, belo luzeiro/a um coração lastimado,/que por destino, ou por fado/alcance
um sinal de amor,” (...) “Fodamo-nos, minha vida,/que estes são os meus
intentos,”. E o amor, que enfim encontra paz nos instintos do sexo, bem justo
para um poeta sem papas na língua, no que temos : “eu sou da vossa medida,/e
com proporção tão pouca/se este membro vos emboca,/creio, que a ambos nos fica/por
baixo crica com crica,/por cima boca com boca.”.
POEMAS :
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COM MIUDEZA, E ENTENDIMENTO CLARO, E SE RESOLVE A SEGUIR SEU ANTIGO DICTAME.
Que néscio, que era eu então,
quando o cuidava, o não era,
mas o tempo, a idade, a era
puderam mais que a razão :
fiei-me na discrição,
e perdi-me, em que me pes,
e agora dando ao través,
vim no cabo a entender,
que o tempo veio a fazer,
o que a razão nunca fez.
O tempo me tem mostrado,
que por me não conformar
com o tempo, e co lugar
estou de todo arruinado :
na política de estado
nunca houve princípios certos,
e posto que homens espertos
alguns documentos deram,
tudo, o que nisto escreveram,
são contingentes acertos.
Muitos por vias erradas
têm acertos mui perfeitos,
muitos por meios direitos,
não dão sem erro as passadas :
cousas tão disparatadas
obra-as a sorte importuna,
que de indignos é coluna,
e se me há de ser preciso
lograr fortuna sem siso,
eu renuncio à fortuna.
Para ter por mim bons fados
escuso discretos meios,
que há muitos burros sem freios,
e mui bem afortunados :
logo os que andam bem livrados,
não é própria diligência,
é o céu, e sua influência,
são forças do fado puras,
que põem mantidas figuras
do teatro da prudência.
De diques de água cercaram
esta nossa cidadela,
todos se molharam nela,
e todos tontos ficaram :
eu, a quem os céus livraram
desta água fonte de asnia,
fiquei são de fantesia
por meu mal, pois nestes tratos
entre tantos insensatos
por sisudo eu só perdia.
Vinham todos em manada
um simples, outro doudete,
este me dava um moquete,
aqueloutro uma punhada :
tá, que sou pessoa honrada,
e um homem de entendimento;
qual honrado, ou qual talento?
foram-me pondo num trapo,
vi-me tornado um farrapo,
porque um tolo fará cento.
Considerei logo então
os baldões, que padecia,
vagarosamente um dia
com toda a circunspeção :
assentei por conclusão
ser duro de os corrigir,
e livrar do seu poder,
dizendo com grande mágoa :
se me não molho nesta água,
mal posso entre estes viver.
Eia, estamos na Bahia,
onde agrada a adulação,
onde a verdade é baldão,
e a virtude hipocrisia :
sigamos esta harmonia
de tão fátua consonância,
e inda que seja ingnorância
seguir erros conhecidos,
sejam-me, a mim permitidos,
se em ser besta está a ganância.
Alto pois com planta presta
me vou ao Dique botar,
e ou me hei de nele afogar,
ou também hei de ser besta :
do bico do pé à testa
lavei as carnes, e os ossos :
ei-los vêm com alvoroços
todos para mim correndo,
ei-los me abraçam, dizendo,
agora sim, que é dos nossos.
Dei por besta em mais valer,
um me serve, outro me presta;
não sou eu de todo besta,
pois tratei de o parecer :
assim vim a merecer
favores, e aplausos tantos
pelos meus néscios encantos,
que enfim, e por derradeiro
fui galo de seu poleiro,
e lhes dava os dias santos.
Já sou na terra bem visto,
louvado, e engrandecido,
já passei de aborrecido
ao auge de ser benquisto :
já entre os grandes me alisto,
e amigos são, quando topo,
estou fábula de Esopo
vendo falar animais,
e falando eu que eles mais,
bebemos todos num copo.
Seja pois a conclusão,
que eu me pus aqui a escrever,
o que devia fazer,
mas que tal faça, isso não :
decrete a divina mão,
influam malignos fados,
seja eu entre os desgraçados
exemplo de desventura :
não culpem minha cordura,
que eu sei, que são meus pecados.
DEFENDE O POETA POR
SEGURO, NECESSARIO, E RECTO SEU PRIMEYRO INTENTO SOBRE SATYRIZAR OS VICIOS.
Eu sou aquele, que os passados anos
cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios, e enganos.
E bem que os decantei bastantemente,
canto segunda vez na mesma lira
o mesmo assunto em plectro diferente.
Já sinto, que me inflama, ou que me inspira
Talia, que Anjo é da minha guarda,
Dês que Apolo mandou, que me assistira.
Arda Baiona, e todo o mundo arda,
Que, a quem de profissão falta à verdade,
Nunca a Dominga das verdades tarda.
Nenhum tempo excetua a Cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade.
A narração há de igualar ao caso,
E se talvez ao caso não iguala,
Não tenho por Poeta, o que é Pegaso.
De que pode servir calar, quem cala,
Nunca se há de falar, o que se sente?
Sempre se há de sentir, o que se fala!
Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?
Isto faz a discreta fantesia :
Discorre em um, e outro desconcerto,
Condena o roubo, e increpa a hipocrisia.
O néscio, o ignorante, o inexperto,
Que não elege o bom, nem mau reprova,
Por tudo passa deslumbrado, e incerto.
E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem, e o mal vituperando,
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Diz logo prudentaço, e repousado,
Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.
Néscio : se disso entendes nada, ou pouco,
Como mofas com riso, e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?
Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras Poeta, poetizaras.
A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não, por não ter dentes.
Quantos há, que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada
De sua mesma telha receosos.
Uma só natureza nos foi dada :
Não criou Deus os naturais diversos,
Um só Adão formou, e esse de nada.
Todos somos ruins, todos preversos,
Só nos distingue o vício, e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.
CONTEMPLANDO NAS COUSAS
DO MUNDO DESDE O SEU RETIRO, LHE ATIRA COM O SEU APAGE, COMO QUEM A NADO
ESCAPOU DA TROMENTA.
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa :
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa :
Com sua língua ao nobre o vil decepa :
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa :
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa :
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa :
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
ENCONTRO QUE TEVE COM
HUMA DAMA, MUY ALTA, CORPOLENTA, E DESENGRAÇADA.
Mui alta, e mui poderosa
Rainha, e Senhora minha,
por poderosa Rainha,
Senhora por alterosa :
permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou já Poeta converso.
Fui ver-vos, vim de admirar-vos,
e tanto essa luz me embaça,
que aos raios da vossa graça
me converti a adorar-vos :
servi-vos de apiedar-vos,
ídolo d ´alma adorado,
de um mísero, de um coitado,
a quem só consente Amor
por galardão um rigor,
por alimento um cuidado.
Dai-me por favor primeiro
ver-vos uma hora na vida,
que pela vossa medida
virá a ser um ano inteiro :
permiti, belo luzeiro
a um coração lastimado,
que por destino, ou por fado
alcance um sinal de amor,
que sendo vosso o favor
será por força estirado.
Fodamo-nos, minha vida,
que estes são os meus intentos,
e deixemos cumprimentos,
que arto tendes de comprida :
eu sou da vossa medida,
e com proporção tão pouca
se este membro vos emboca,
creio, que a ambos nos fica
por baixo crica com crica,
por cima boca com boca.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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