“Schiller mantém uma coerência de conduta, pois em toda a sua
obra é um idealista”
“Schiller é, sem dúvida
nenhuma, o mais destacado entre os dramaturgos clássicos alemães, não por submeter-se
estritamente às regras desse movimento, mas por transformar realmente o teatro
alemão, emprestando às suas obras a ambicionada síntese do bom, do belo e do
verdadeiro.” (Erwin Theodor)
DOIS RETRATOS
Num retrato pintado em 1780, o jovem Schiller aparece numa
imagem em que reflete um ar sonhador e inquieto, uma alma jovem, com o cheiro
da rebeldia e da descoberta. O nariz destaca-se nesse rosto que não chega a ser
belo, mas tem um certo fascínio. Os cabelos estão presos atrás por um laço de
veludo, que são claros e fartos. A camisa branca está aberta ao peito, no
melhor estilo do romantismo, era o período de eclosão do Sturm und Drang.
Schiller tem nessa época vinte e um anos, e veste-se à moda de Werther, o herói
sentimental do romance de J.W. Goethe, que comovera toda a Alemanha. Schiller é
um Werther de carne e osso, moda alemã daquele contexto de ruptura com a razão
iluminista e de jovens poetas em busca de emoção e afirmação.
Aos vinte e um anos Schiller já é considerado um “gênio”, no
sentido pré-romântico do termo. E um “gênio” como sendo a ideia que envolve
todo aquele, ainda mais quando artista, que tem coragem de se libertar das
regras sociais e literárias, e de colocar o sentimento acima da razão, de
recusar aquilo que é ordenado e racional, em suma, era a rebeldia, a ruptura, e
um mundo novo e admirável. Aos vinte e um anos o jovem Schiller prepara sua
primeira peça de teatro, Os Bandoleiros, expressão de sua rebeldia e da
rebeldia de uma geração, era o primeiro ato de uma obra grandiosa. Todos os
jovens irão se espelhar em Karl Moor, o herói da peça: um estudante que,
incompreendido pela família, transforma-se num bandido para corrigir com as
próprias mãos as injustiças do mundo. Contraste entre revolução e banditismo.
Dezenove anos depois, outro retrato. Agora está Schiller em
Weimar, sentado numa cadeira dourada, o rosto de perfil. O casaco é escuro, a
camisa branca impecavelmente abotoada. Está com uma expressão calma, a
tempestade e o ímpeto já tinham passado, e muito bem, pois Schiller é agora um
poeta do teatro em plena forma. Ao fundo, o perfil clássico de uma cabeça
grega. Schiller tem quarenta anos e o movimento pré-romântico alemão, conhecido
como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), é apenas uma grata lembrança de
juventude.
Neste contexto, já estava escrevendo Maria Stuart, a tragédia
da rainha da Escócia, em versos iâmbicos, severamente ordenados, e dali para a
frente consolidaria seu nome e obra teatral. Os impulsos românticos do jovem
Schiller foram disciplinados e ele não se lança mais anarquicamente contra a
sociedade e suas normas, não se utiliza mais da ferocidade revolucionária, mas
dos meandros da retórica eficiente. E com o avanço de seu estudo na História e
na Filosofia, sobretudo a kantiana, ele agora alcança o humanismo, e a busca da
conciliação se impôs: Schiller deseja realizar a síntese do bom, do belo e do
verdadeiro, na sua própria teoria estética.
REBELDIA E
SENTIMENTALISMO
Em 1773, Schiller dá adeus aos seus planos eclesiásticos, e
cai numa cilada, pois é recrutado pela Carlsschule, destinada a formar
funcionários e oficiais para o ducado de Württemberg. Lá, Schiller viveu o
período mais triste de sua vida. Privado da família e do mundo exterior,
durante oito anos sentiu-se numa prisão. A natureza apaixonada de Schiller
adaptava-se mal a esse regime de caserna e tinha crises de rebeldia,
severamente punidas. Em 1775, começa enfim a fazer o curso de medicina em
Stuttgart. Nessa época, apesar de proibidos, autores como Gotthold Ephraim
Lessing (1729-1781), Maximilian Klinger (1752-1831) e J.W.Goethe (1749-1832)
eram lidos por Schiller e alguns companheiros, clandestinamente. Era inevitável
que Schiller se apaixonasse por esses autores e pelos princípios que eles
defendiam. E Goethe, sobretudo, terá não só uma presença literária, como
pessoal, em sua vida.
O movimento pré-romântico alemão, denominado pelos
representantes do movimento Sturm und Drang, título de uma peça de Klinger, não
estava apenas empenhado na renovação literária da Alemanha. Na realidade, seus
objetivos eram mais amplos. A luta era também contra o absolutismo, contra a
arbitrariedade, o luxo, a prepotência dos nobres, o moralismo e a severa
disciplina militar. Não foi por mero acaso que Os Bandoleiros (Die Rauber), uma
das maiores expressões do pré-romantismo alemão, começou a ser escrita por
Schiller na Carlsschule. O ambiente de opressão culminou numa obra exaltada de
revolução jovem, era a peça de alguém sob forte vigília, que ali explodia.
Schiller começa, então, a procurar editores para Os
Bandoleiros, sem qualquer sucesso. Afinal, resolve contrair uma dívida de 150
florins para editar a obra por conta própria. A peça, montada pelo teatro de
Mannheim, obteve um sucesso triunfal, e na noite da estreia, Schiller abandona
o quartel e parte escondido para Stuttgart, no que é descoberto, tendo como
pena quinze dias de prisão, mais a interdição de viajar e a proibição de
escrever. Em setembro de 1782, Schiller foge para Mannheim, na esperança de ser
recebido pelo barão Von Dalberg, diretor de teatro, que ficara entusiasmado com
Os Bandoleiros.
Schiller leva consigo o manuscrito de um novo drama, Fiesko,
tragédia em cinco atos, mas o barão recusa encenar a peça, pois sabe que o
jovem escritor desertou e não deseja comprometer-se. Então, Schiller segue
viagem e vende a peça por uns poucos florins, o que o mantém durante dois
meses, em albergues baratos, e depois de três meses de andanças, para em
Bauerbach, um vilarejo perdido na Turíngia. Em 1783, Dalberg escreve-lhe uma
carta muito amável. O diretor lera Intriga e Amor, peça que Schiller escrevera
em seu retiro em Bauerbach; gostara muito da obra e o convida a ser o poeta do
teatro. A 11 de janeiro de 1784, Fiesko estreava em Mannheim. Fiesko foi
escrita no melhor estilo do pré-romantismo alemão: movimento, cenas rápidas,
com livre tratamento do espaço. Mas não conseguiu obter o mesmo sucesso de Os
Bandoleiros.
Mas, logo em seguida, com Intriga e Amor, ele se reconcilia
com o público de Mannheim. Considerada a última obra da fase pré-romântica de
Schiller, esse drama é também uma das primeiras peças alemãs a levar à cena o
mundo pequeno-burguês. Então Schiller encerra aqui o primeiro momento de sua
obra, e que tirando Fiesko, mantém-se em evidência na sua partida com Os
Bandoleiros, e na sua primeira chegada com Intriga e Amor. Schiller não poderia
mais deixar o teatro, e nem passava pela sua cabeça a volta à medicina,
começara como um fugitivo da opressão militar, e se libertava finalmente dos
grilhões, afirmando uma arte até ali de rebeldia, própria do movimento Sturm
und Drang.
FILOSOFIA E HISTÓRIA
Depois de um período em Leipzig, Schiller se vê atraído por
dois campos do conhecimento: a Filosofia e a História. Schiller escreveu duas
obras históricas importantes: História da Insurreição dos Países Baixos,
publicada em 1788, e História da Guerra dos Trinta Anos, aparecida em 1791 e
1793, num almanaque histórico. E junto com as preocupações históricas,
despontaram também as suas inquietações filosóficas, em que descobre a obra do
filósofo Immanuel Kant (1724-1804), que é decisiva para o seu afastamento dos
pressupostos do Sturm und Drang para a elaboração de sua própria estética. É
neste momento que Schiller tenta fazer a sua filosofia e parte para a fronteira
além do teatro, na qual retornaria com vigor mais adiante, e que levaria como
homem autor de teatro até o fim de sua jornada.
A partir de 1786, quando manifestou pela primeira vez seu
pensamento em Cartas Filosóficas, ficou claro que os conceitos de Bom,
Verdadeiro e Belo eram os valores máximos do poeta, e que estes eram
indissociáveis da ética e da cultura. Para Schiller era fundamental, portanto, criar
uma concepção filosófica que juntasse ética e estética, sendo a ética uma
condutora dos ideais maiores da estética, pois com a prudência da ética se
poderia ampliar o escopo da estética e torná-la enfim rica e filosófica, e não
apenas um tema da arte, pois a estética era também uma grande pedagogia, e para
tal, se usava da ética para consumar-se em verdadeira filosofia.
Para Schiller, o homem devia tender, em sua evolução, para a
totalidade de sua natureza. Mas esta só podia se realizar por intermédio da
educação estética do indivíduo: a cultura era a única força capaz de elevá-lo e
de harmonizar suas forças intelectuais e emocionais. E, uma vez esse elemento
tão importante – a cultura – era fruto do homem e das civilizações, apenas a
sociedade constituída, detentora de todo o conhecimento acumulado pelas
gerações durante séculos, teria condições de fazer com que o ser humano
desenvolvesse suas virtualidades. Portanto, tal educação estética era parte de
um grande e amplo processo histórico e de genealogia cultural, vários passos
dados por gerações sucessivas.
A partir dessa conclusão pela cultura, como o bastião ético
da estética, Schiller não mais podia aceitar o apelo pré-romântico de volta à
natureza, nem colocar o homem em conflito com a sociedade – como fizera nas
obras de juventude. As dicotomias se apagavam: razão-sentimento,
convenção-natureza, indivíduo-sociedade. A síntese e a harmonia eram possíveis
e por meio delas poder-se-ia chegar ao ideal humanista. O humanismo era,
portanto, despertado, e era fenômeno de cultura e não de nostalgia pela
natureza, como o temperamento Sturm und Drang um dia havia pensado. Portanto, aqui
Schiller passa das peças de juventude e se torna filósofo e historiador, era
agora, além de homem de teatro, um pensador da cultura como ética aplicada na
edificação de sua estética.
WEIMAR
O ambiente intelectual que Schiller encontrou em Weimar, por
sua vez, ajudou-o a consolidar e ampliar cada vez mais seu pensamento. Weimar
se destacava dos outros ducados alemães como centro de difusão artística e
literária. Lá viviam Goethe – que na época da chegada de Schiller encontrava-se
na Itália vivendo uma fase das mais determinantes da sua vida – Christoph
Martin Wieland (1733-1813), autor do poema épico Oberon – que exerceu enorme
influência numa geração de poetas -, e Johann Gottfried Herder (1744-1803),
historiador, poeta e pensador, que exercera papel importante na obra do jovem
Goethe.
Schiller chegou a Weimar no ano de 1787. Foi logo recebido
por Wieland e Herder, que o introduziram nos círculos literários e artísticos
de Weimar e Iena. Em dezembro desse mesmo ano, conheceu Charlotte von
Lengefeld, uma jovem de família aristocrática por quem se apaixonou. Casou-se
com ela em fevereiro de 1790, depois de conseguir, graças a Goethe, a cadeira
de Filosofia e História na Universidade de Iena. Além disso, o grande mecenas,
o duque Carlos Augusto, concedeu-lhe uma pensão de 200 táleres.
O ENCONTRO COM GOETHE
Estabelecido em Weimar, Schiller encontrou o ambiente ideal
para criar. Goethe chegara da Itália em 1788, mas não se aproximara
imediatamente de Schiller. Houve, aliás, uma certa reserva de início, que só se
apagou em 1794, quando os dois poetas se encontraram por acaso numa reunião
científica em Iena. Goethe escreverá, a propósito desse encontro: “Nós
estávamos certos de nos aproximar mais cedo ou mais tarde, mas o que foi
particularmente significativo e muito importante para cada um de nós, é que
esse encontro se deu depois de minha viagem à Itália e quando Schiller começava
a se lançar em suas especulações filosóficas”.
E estes são os dois pontos fundamentais para as histórias de
Goethe e Schiller: a viagem à Itália do primeiro, e o mergulho na filosofia
kantiana do segundo. Com isso, ambos, cada um à sua maneira, chegam à superação
do pré-romantismo. Ao se encontrarem em 1794, ambos proclamavam o ideal de um
humanismo puro e a necessidade do desenvolvimento integral da personalidade
humana. Ambos já eram humanistas consolidados, e não mais jovens do Sturm und
Drang. E o que fascinava Goethe era o idealismo de Schiller. E o que fascinava
Schiller era a vitalidade e o realismo de Goethe. Segundo Erwin Theodor, “assim
como Goethe deveu a Schiller um valioso estímulo e uma nova primavera, a
espiritualidade ativa e o idealismo abstrato de Schiller foram frutificados
pela plenitude das visões reais de Goethe, pelo impacto exercido graças às
manifestações da riqueza e pureza naturais, onipresentes na obra goethiana”.
O entusiasmo e a admiração de um pelo outro levou-os a se
entregarem a trabalhos que estavam por algum tempo abandonados. Em 1796, Goethe
retomou Fausto e Schiller – que depois de Don Carlos nada escrevera para o
teatro – começou a escrever Wallenstein. Mas o ano de 1796 é também o das
Xénias, centenas de epigramas, nos quais os dois faziam críticas e elogios a
diversos autores, artistas e cientistas da época. No ano seguinte, ambos irão
partir para um gênero épico particular – o da balada. Schiller escreve O Anel
de Polícrates, Os Grous de Íbico, O Mergulhador, A Luva, A Canção dos Sinos,
até hoje leitura obrigatória nas escolas alemãs. E em agosto de 1797, dez anos
após ter sido escrita, Don Carlos é montada em Hamburgo. Nesta peça Schiller
está mais próximo dos trágicos franceses, Corneille (1606-1684) e Racine
(1639-1699), no equilíbrio e no tom contido. Embora a verdade e a liberdade
continuem sendo os ideais de seus heróis, estes não os conquistam nem por meio
da violência nem da revolta, mas da retórica. Aqui o ímpeto jovem dá lugar à
astúcia da linguagem.
O IDEALISMO DE SCHILLER
Na época em que Schiller escreveu Don Carlos, já estava
bastante envolvido com a História e a Filosofia, mas foi em Wallenstein,
escrita de 1794 a 1799, que ele utilizou seus conhecimentos históricos para
compor uma personagem. Em 1799, por sua vez, Schiller escrevia a Goethe dizendo
que depois de Don Carlos e Wallenstein, estava saturado de heróis, guerreiros e
déspotas. Mas em 1800 escreveria Maria Stuart, em 1801, A Donzela de Orleans,
em 1803, A Noiva de Messina, e em 1804 cantaria o heroísmo suíço na obra
Guilherme Tell. E sua morte interrompeu a realização de Demetrius, tragédia
política que se ambientava na Rússia de Boris Godunov. Na verdade, Schiller
dedicou os últimos anos de sua vida àquilo que é o melhor de sua obra: as peças
de teatro. E, se o poeta buscava sua matéria na História, isso não acontecia
unicamente pelo fato de ser ele um historiador, mas sobretudo porque certos
temas ilustravam admiravelmente seu idealismo. Portanto, o elo entre o jovem
Schiller e o mesmo maduro não foi desfeito, pois era sempre o idealismo que
guiava sua obra, com a diferença de que o jovem era impetuoso e o maduro era
fundado já numa teoria estética, na astúcia retórica, e na fundação de
documento histórico em função do ato teatral. Portanto, Schiller mantém uma
coerência de conduta, pois em toda a sua obra é um idealista.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29552/17/friedrich-schiller-o-poeta-do-teatro-e-sua-evolucao-artistica