“Jóquei é este tipo de tradução do mundo vivido em poesia”
Matilde Campilho é uma poeta que tem na vivência a sua fonte
maior de poesia, ao contrário dos poetas pretensamente eruditos, que fazem de
seu ofício mais uma exibição de seu conhecimento do que o registro fiel do que
se é, o poeta sendo, como a fonte primordial para a poesia, aqui em Matilde
temos aos montes. E esta vivência vem de seu hábito saudável de flâneur, com um
olhar contemporâneo que funciona como uma antena de seu tempo e da poesia de
seu tempo, Matilde vive intensamente o que escreve, e sua passagem pelo Rio de
Janeiro prova isto, Matilde vive o que escreve.
A riqueza de suas imagens tem, além de um ar cool sem
afetação, um conjunto de registros que passam pela coloquialidade entre temas
dos mais diversos, uma miríade de curiosidades se forma nesta escrita criativa
no verso, e caudalosa no poema em prosa. Jóquei, seu livro de 2014, tem este
espírito fresco, que dá a sensação de poema ao ar livre, longe das afetações de
gabinete e de toda a sua gabolice. “Jóquei” é o nome que se dá ao profissional
que monta o cavalo de corrida.
Em Jóquei temos imagens em sua diversidade temática, desde
publicitários com cotovelos gastos, vendedores de picolé, dólares amassados no
bolso na forma da Beretta 92fs, o porteiro da loja de discos e até desemboca
num poema em prosa que toma de tema o ácido desoxirribonucleico. Matilde nos
indica, com seus poemas, uma leitura fluida entre temas do cotidiano e temas
também de conhecimento, como o DNA, mas com uma cadência suave e interessante,
a sua condução em seus poemas nos leva a um mundo aberto, como se víssemos tudo
de uma janela aberta para o mundo, e lhe dando um forte abraço, ler Jóquei me
dá a sensação de uma boa caminhada ao ar livre.
Tem muita poesia no mundo, e não somente nas mitologias, a
sua origem, e Matilde nos dá a prova fiel de que ela está aí, e é possível
decodificá-la, e Jóquei é este tipo de tradução do mundo vivido em poesia, com
uma força original, um registro que renova o mundo, refazendo o que está dado,
acabado, num acabamento novo, a poesia que fala e vive o mundo. E o espaço da
fé, neste livro, não lhe dá forma de doutrina ou de um livro baseado em
crenças, mas no sagrado envolvido no mundo da vida, na profana vida cotidiana,
em seus objetos e demandas várias, o mundo da vida é soberano na poesia de
Matilde Campilho.
A proximidade com o leitor, seu chamamento, acolhe este
leitor, o coloca em plano familiar, numa intimidade, e esta linguagem do mundo
da vida, coloca este chamamento e a ideia de proximidade e familiaridade como o
modo de operar da poesia de Matilde, a sua dicção cool se junta a temas que nos
aproximam cada vez mais de sua vivência, e tal viver nos é familiar, não há
estranhamento desnecessário, não há uma complexidade gratuita, o simples aqui
se dá como a verdade da vida, a sua vivência num primeiro take, os poemas aqui
nos aparecem como instantâneos, registros que capturam uma impressão forte e
sensorial, portanto, cheia de vida.
A parte filosófica da poesia de Matilde, por sua vez, vem
neste influxo que não se liga à lógica ou ao campo propositivo, de argumentação
para fazer inflexão conceitual, bem longe disso, mas colocando a própria
filosofia neste jogo da poesia como algo possível para todos, no poema Veleiro,
por exemplo, podemos ver isto, aonde se pode ler : “A filosofia é uma
matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo”. Em
Jóquei se pode dizer que a filosofia aparece nas ruas, no ato do flâneur, este
ser que vem povoar a poesia desde a fundação baudelairiana. Temos esta certa
filosofia em “Rapariga que oferece à visão o hábito da escuridão e depois logo
se vê” (“Descrição da cidade de Lisboa”), e também na frase : “subitamente tudo
arde e então a única possibilidade é o desvio” (“A volta no cadillac de Billy
J.”).
O pensamento cósmico, por sua vez, ganha um tratamento
iconoclasta na poesia de Matilde, numa irreverência que lhe confere leveza. O
conteúdo metafísico, portanto, tem um ar leve, que lhe tira de sua sisudez
filosófica, de sua obscuridade originária, e entra no jogo poético para um
divertimento que, novamente, coloca a proximidade como um dos meios em que
opera a poesia de Matilde, um convite e chamamento para um encontro de vida e
que coloca a palavra no serviço desta vida vivida, a parte filosófica, cósmica,
metafísica, ou qualquer operação linguística que poderia se tornar complexa,
ganha no jogo poético estabelecido por Matilde, cores leves de um mundo da vida
que está próximo de todos nós.
As experiências de dor e de amor, por sua vez, trabalham na
poesia de Matilde, como dois polos na tensão do encontro amoroso, experiências
necessárias para seu fortalecimento. Nos vídeo-poemas de Matilde, o chamamento
é para seus amigos de Portugal, era um envio como a possibilidade de um
encontro. Uma poesia do encontro, que chama “vem dançar comigo, vem”
(“Fevereiro”), como Drummond nos convoca com os versos “Não nos afastemos
muito, vamos de mãos dadas”. Esta proximidade que se levanta o tempo todo na
poesia de Matilde Campilho, que coloca no plano do mundo da vida o cosmos, a
experiência do sagrado, a filosofia, trazendo para perto da vivência qualquer
tema é o que coloca o sentido do livro Jóquei como um livro sobre a vida, além
de ser um livro de poesia.
POEMAS :
ASCENDENTE ESCORPIÃO : O poema começa com o cenário do
nascimento de Billy Ray, e aqui temos tal evento em um contexto poético próprio,
que vem : “Na noite em que Billy Ray nasceu/(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova
Iorque)/não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios/Havia, isso sim,
o som do mundo que caía/como estalactites múltiplas/sobre as cercanias do hospital”.
O contexto urbano, o que cercava este evento, a poeta aqui nos diz, no que
segue : “Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua/Havia o
ruído das fichas de pôquer sendo lançadas/sobre a mesa verde-gasto, entre dedos
e fumaça/Alguém gritando, na explosão da minúscula morte/Alguém cantando a
canção sul-americana”. Esta noite especial, de tão especial, faz com que
Matilde enumere tudo que está em volta disto, e temos : “Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda
média/Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela/do apartamento
de paredes queimadas/Na noite do nascimento de Billy Ray/ao mesmo tempo que ele
escutava o som gelatinoso/da placenta de onde era arrancado/e depois o som da
passagem pelo canal uterino de sua mãe/e depois o som do primeiro toque em sua
cabeça/e depois o som de seu próprio grito/o grito que inaugura a festa”. Esta
descrição do parto em forma poética é de uma inteligência ímpar, a poesia num
espaço inóspito e hospitalar, num evento extremo da vida, no que segue : “centenas
de homens vergados/fazendo vênia à metafísica suficiente/que existe nos
corredores do mundo/e se extrapola até o infinito luar.”. A coda evocando a
metafísica, por fim, se esvai no infinito luar.
O APARECIMENTO DAS
CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA : O poema coloca a poeta em sua decadência, seu
envelhecimento, e aponta para o evento bíblico de Jonas e a baleia, no que
temos : “Minha cara está envelhecendo/antes de mim/Reconheço meus deuses/e se
supõe que Jonas/também tenha reconhecido a baleia/antes da grande meditação/antes
do grande silêncio”. A poeta é uma aventureira, e dá seu mergulho, a descrição
do cenário natural é rico, e nos dá então seu seguimento : “Pratico
mergulho-prego/desde a rocha mais alta/como é próprio da estação/E antes do
salto/sempre peço a Deus/que a guerra não me seja/de todo indiferente/Porque
foi assim/que me ensinou a santa/Foi assim que me segredou/a estrada de fogo/da
oitava região/Há uma seleção de catástrofes/se apresentando firmes”. E do
segredo aprendido, o mais importante, é conhecer bem as catástrofes, e a poeta
segue : “Minha cara está marcada/por revoluções e iodo/por estilhaços de cobre/e
pelo silêncio profundo” (...) “Carrego nas costas/a espada de plástico/que
corta o friso nublado/entre signo e ascendente/Sim eu me aproximo/cada vez mais
de meu ascendente/enquanto faço pazes com meu sol/Reconheço meus heróis/mas
pelo sim pelo não/ainda guardo em meu bolso/a nota de cinco dólares/que me
ofereceu o nômade/que cantava no deserto.”. A poeta está em metamorfose, a sua
transição para seu ascendente astrológico marca esta transformação, sua nova
imagem, ela está envelhecendo, sua cara está marcada.
VELEIRO : O poema se abre num circuito
filosófico, no que vem : “Bem : as palmeiras brilham mais que o ouro. Walter
Benjamin tinha razão sobre os círculos – quanto mais se roda em volta do amor,
mais o amor se expande. A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e
qualquer dia ainda vai salvar o mundo.”. A filosofia aparece aqui como
instrumento de salvação e não mais do pensamento, e então vem a liberdade, dar
ao toque do poema, seu jogo com a palavra, no que temos : “A liberdade se faz
inteira debaixo da palavra, entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca. Os
continentes se aproximam docemente e, como você me explicou, o selvagem europeu
ainda vai soltar seu esplendor.”. Aqui o encontro do tom, como numa banda de
música, para que o conjunto dos instrumentos funcione, tem também no exemplo
das baleias e a frequência de seu canto, a importância da harmonia na vida para
que ela aja em uníssono, no que temos : “Todo canto tem um tom, e a maioria dos
mamíferos se agrupam pelo reconhecimento de uma musicalidade comum. Sim, o
fadista vai escolher o fadista, e as manadas de baleias costumam espalhar seu
sopro de cerca de 20 hertz por oceanos infinitos. Em comunhão. Mas imagine você
que em 1989 alguém descobriu uma baleia que canta solitária a 52 hertz”. A
história da baleia solitária é comovente, incompreendida, ela canta fora do
tom, no que temos : “Depois do surgimento da baleia solitária, depois dos
círculos de Benjamin,”. E o poema evoca o brilho natural da terra, como vê-lo,
e inverte a profecia de Eliot, curando a sua Madame Sosostris, e para além da
paixão e do desejo, o amor salva do afogamento a alma humana, no que temos : “me
diga, como não acreditar no brilho natural que diariamente resplandece no peito
da terra? Bem, seu rosto de espanto frente ao sorvete de morango numa tarde de
domingo é a manobra que puxa o lustro à pele do planeta. Benzinho, estamos invertendo
a profecia de Eliot. Estamos curando o resfriado de Madame Sosostris, e esta
coisa da alegria ainda vai dar muito certo. Seja como for, dê por onde der,
seguimos usando o colar de pérolas que é feito dos olhos do marinheiro fenício.
No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo : ninguém
mais se afogará.”.
PELE DE COURO : A descrição raiz deste poema evoca o
mundo primitivo na ilha de Saint Naumpke, no que temos : “Foi no tempo em que/(como
apontou Herbert)/adormecíamos/com uma mão debaixo da cabeça/e com a outra/num
aterro de planetas/Morávamos na ilha/De Saint Naumpke/no palácio de estacas e
cal/construído por nós mesmos”. O cotidiano da vida aqui é descrito, e seus
dons revelados, no que temos : “O pão era feito de alecrim/Os pescadores vinham/ensinar-nos
os dons/E isso era tudo/o que precisávamos”. A experiência direta com a terra
também é evocada : “Por vezes eu pintava/minha cara de amarelo/só para perceber/a
consciência telúrica/que trazem consigo alguns/jaguares e cobras corais”. O
poema encerra com o enigma deste tempo inóspito, o poema aqui quase
arqueológico, se conclui na descoberta de que são feitas as omoplatas dos
amantes : “Existiam heróis daquela pátria/mas eu nunca soube quais/Havia um
beato sem rosto/a quem tinham feito um altar/junto à primeira rocha de Naumpke/Sua
estátua era de aço/e a todas as manhãs/alguém deixava a seus pés/uma esteira de
rosmaninho./Aquele foi o nosso tempo,/o tempo da descoberta dos aterros/e das
cavernas de que são feitas/as omoplatas dos amantes.”.
TIGER BALM : O poema fala do amor e de como se dá
a sua importância, e segue se expandindo para várias frentes, no que temos : “O
brasileiro acha que o amor é importante porra, eu cá não acho nada, só fui
arranhando poemas, alinhando conchas, tirei o relógio nos últimos anos para
escrever, para ler os textos norte-americanos, guaranis e siríacos. Disse que
era índio mas nunca me despi na rua. Entendi que não existe um poeta maior e
espero ter entendido que um esquiador, um pescador, um astrólogo e um boxeur
são quase sempre a mesma coisa.”. As atividades aqui não são idealizadas, todos
valem a mesma coisa, e segue o poema : “Soube de histórias de ladrões que foram
os primeiros a entrar no céu logo depois de Cristo, e também soube de um anjo
que não estava acostumado a fazer de cicerone a esse tipo de gente. Descobri
que o cirílico não é tão difícil assim se se prestar atenção à forma como são
escritos os nomes.”. As descobertas da poeta aqui são inúmeras, no que segue : “Aquela
frase sobre o amor está escrita em cartazes espalhados por todas as cidades
onde já estive. Tinha também uma frase sobre tigres, mas essa ficou num só
cartaz, numa cidade só. Li sobre pássaros e passei a saber que os pássaros
medem a distância em unidades de corpo e não em metros : a densidade de cada
corpo não importa, o que importa é a distância entre eles.”. A poeta enumera e
explica as suas descobertas, seu estudo se adensa e se aprofunda, no que vem : “Em
determinado momento achei que K. era o homem mais bonito do mundo. Quando não
pude mais com o silêncio escutei as canções. Soube da morte no mesmo dia em que
soube que o amor sim é importante, mas não é imutável. Acho que chorei.
Telefonei a meu primeiro rapaz e lhe contei tudo isso. Lembro-me que ficou
muito tempo calado e depois escutou-se pelo país o ruído de uma garganta seca.
Entre nós será a guerra, foi o que ele disse, mas isso foi muito tempo antes.
Aconteceu também que eu pedi esse tal em casamento : uma vez, outra vez e
depois outra vez. Ele negou três vezes mas nem por isso deixei de achar que ele
era o poeta mais bonito do mundo.”. A poeta enumera também suas aventuras
amorosas, num misto de seriedade e anedotário, uma curiosidade para leitores, e
bem interessante, e segue o poema : “Apaixonei-me por bandeiras no verão de
dois mil e dez, quando os meninos dançavam um transe muito psicodélico feito do
som dos ramos das araucárias varando no ar.”. A paixão pelas bandeiras, e o
transe psicodélico, tudo num mesmo espaço, como se fossem a mesma coisa, e o
poema segue : “Aprendi a contar pelas manchas múltiplas de uma papaia e
acentuei a palavra açaí muitas vezes. Vi dois leões roçando os focinhos um no
outro e vi dois leões rugindo contra Deus quando repararam que seus focinhos
eram exatamente o mesmo focinho. Decidi que astronauta era a palavra mais
incrível de todas, mais ainda do que açaí, e então resolvi que todos os poemas
a partir dali seriam escritos no centro de um círculo desenhado num capacete.
Já não sei o que acha o brasileiro porque hoje eu acho que brasileiro ou
argelino são precisamente a mesma coisa : tudo o que respira, brota. Acho que a
ternura é importante.”. O poema, ao fim, celebra a vida, tudo o que respira,
brota.
POEMAS :
ASCENDENTE ESCORPIÃO
Na noite em que Billy Ray nasceu
(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova Iorque)
não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios
Havia, isso sim, o som do mundo que caía
como estalactites múltiplas
sobre as cercanias do hospital
Automóveis, alguns a 90 km/hora, outros a 30 km/hora
Bombeiros correndo para salvar o cachorro
preso na escotilha do bote atracado no Hudson
O imigrante rendendo o caixa da loja de conveniência
para roubar alguns dólares e chicletes
Aquele casal na esquina à direita, os dois chorando,
terminando com razão o arrastado namoro de cinco anos
Rosa Burns entrando em casa sem pressa nenhuma,
lançando investidas à fechadura com a chave muito mais velha
que seu rosto – tremendo, tremendo, quase desistindo
desse negócio de viver e atirar no alvo
Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua
Havia o ruído das fichas de pôquer sendo lançadas
sobre a mesa verde-gasto, entre dedos e fumaça
Alguém gritando, na explosão da minúscula morte
Alguém cantando a canção sul-americana
Alguém afagando o pescoço do pombo sem dono
Alguém jogando a bola de tênis contra a parede do quarto,
repetidamente, repetidamente, repetidamente
Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda média
Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela
do apartamento de paredes queimadas
Na noite do nascimento de Billy Ray
ao mesmo tempo que ele escutava o som gelatinoso
da placenta de onde era arrancado
e depois o som da passagem pelo canal uterino de sua mãe
e depois o som do primeiro toque em sua cabeça
e depois o som de seu próprio grito
o grito que inaugura a festa
O mundo se reunia inteiro
entre a rua 28 e a rua 7
em Nova Iorque
para rezar a oração dos pequenos gestos
o aleluia da existência ocidental :
centenas de homens vergados
fazendo vênia à metafísica suficiente
que existe nos corredores do mundo
e se extrapola até o infinito luar.
O APARECIMENTO DAS
CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA
Minha cara está envelhecendo
antes de mim
Reconheço meus deuses
e se supõe que Jonas
também tenha reconhecido a baleia
antes da grande meditação
antes do grande silêncio
ou antes de escavar
a costela de sal
Pratico mergulho-prego
desde a rocha mais alta
como é próprio da estação
E antes do salto
sempre peço a Deus
que a guerra não me seja
de todo indiferente
Porque foi assim
que me ensinou a santa
Foi assim que me segredou
a estrada de fogo
da oitava região
Há uma seleção de catástrofes
se apresentando firmes
Coisas do tipo
A figura da menina russa
que passa no parquinho
acenando 3 pêssegos
dentro da bolsa de plástico
Como se fosse um arqueiro
fazendo show-off
de suas setas douradas
no fio solar de agosto
Minha cara está marcada
por revoluções e iodo
por estilhaços de cobre
e pelo silêncio profundo
de los angelitos negros
à hora do café com açúcar
Carrego nas costas
a espada de plástico
que corta o friso nublado
entre signo e ascendente
Sim eu me aproximo
cada vez mais de meu ascendente
enquanto faço pazes com meu sol
Reconheço meus heróis
mas pelo sim pelo não
ainda guardo em meu bolso
a nota de cinco dólares
que me ofereceu o nômade
que cantava no deserto.
VELEIRO
Bem : as palmeiras brilham mais que o ouro. Walter Benjamin
tinha razão sobre os círculos – quanto mais se roda em volta do amor, mais o
amor se expande. A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer
dia ainda vai salvar o mundo. Bem, quatrocentos anos depois e você & eu
ainda somos uma espécie de Ferris Bueller`s Day Off. Ó, você viu os coros dos
meninos na avenida? A alegria é um carro de bombeiros todo enfeitado de penas e
cavalos bravos, atravessando tudo. A liberdade se faz inteira debaixo da
palavra, entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca. Os continentes se aproximam
docemente e, como você me explicou, o selvagem europeu ainda vai soltar seu
esplendor. Acredito muito naquilo que ninguém mais espera, principalmente
depois que dei de caras com o dorso da baleia solitária. Todo canto tem um tom,
e a maioria dos mamíferos se agrupam pelo reconhecimento de uma musicalidade
comum. Sim, o fadista vai escolher o fadista, e as manadas de baleias costumam
espalhar seu sopro de cerca de 20 hertz por oceanos infinitos. Em comunhão. Mas
imagine você que em 1989 alguém descobriu uma baleia que canta solitária a 52
hertz – sem primos, sem irmãos, sem melhor amigo, sem ilha onde fazer um pit
stop. Ninguém vocaliza na sua frequência, ouvido nenhum escuta seus 52 pontos.
Há milagres. Depois do surgimento da baleia solitária, depois dos círculos de
Benjamin, depois do desdobramento do poema XIX, depois do berlinde de Seymour
Glass sendo girado no dedo do jogador de basquete, me diga, como não acreditar
no brilho natural que diariamente resplandece no peito da terra? Bem, seu rosto
de espanto frente ao sorvete de morango numa tarde de domingo é a manobra que
puxa o lustro à pele do planeta. Benzinho, estamos invertendo a profecia de
Eliot. Estamos curando o resfriado de Madame Sosostris, e esta coisa da alegria
ainda vai dar muito certo. Seja como for, dê por onde der, seguimos usando o
colar de pérolas que é feito dos olhos do marinheiro fenício. No que depender
do amor, para além da paixão e para além do desejo : ninguém mais se afogará.
PELE DE COURO
Foi no tempo em que
(como apontou Herbert)
adormecíamos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas
Morávamos na ilha
De Saint Naumpke
no palácio de estacas e cal
construído por nós mesmos
durante os trinta dias de agosto
Lá os anos nunca eram bissextos
O pão era feito de alecrim
Os pescadores vinham
ensinar-nos os dons
E isso era tudo
o que precisávamos
e precisaríamos mais tarde
para entender a língua de fogo
que se falava nas pracinhas
Por vezes eu pintava
minha cara de amarelo
só para perceber
a consciência telúrica
que trazem consigo alguns
jaguares e cobras corais
Nesse tempo
alguém preferia o relento
à escuridão das casas
e portanto saía para o parque
armado com binóculos
de lentes-diamante
só para se deparar
constantemente
com a fórmula exata
do tempo de crescimento
das folhas de laranja-lima
“O couro de Golias
foi deixado aqui,
há cinco séculos
atrás” era o que ele dizia
no regresso ao palácio
à hora da refeição
Vinha sujo e coberto de areia
Trazendo flores velhas
em seu balde metálico
Existiam heróis daquela pátria
mas eu nunca soube quais
Havia um beato sem rosto
a quem tinham feito um altar
junto à primeira rocha de Naumpke
Sua estátua era de aço
e a todas as manhãs
alguém deixava a seus pés
uma esteira de rosmaninho.
Aquele foi o nosso tempo,
o tempo da descoberta dos aterros
e das cavernas de que são feitas
as omoplatas dos amantes.
TIGER BALM
O brasileiro acha que o amor é importante porra, eu cá não
acho nada, só fui arranhando poemas, alinhando conchas, tirei o relógio nos
últimos anos para escrever, para ler os textos norte-americanos, guaranis e
siríacos. Disse que era índio mas nunca me despi na rua. Entendi que não existe
um poeta maior e espero ter entendido que um esquiador, um pescador, um
astrólogo e um boxeur são quase sempre a mesma coisa. Escutei muitos ícaros e
entendi alguns quando me esqueci de tentar entender. Reparei no rosto daquele
moço pintado de azul e vi como o pirata lhe apontava uma arma ao alvo. Acho que
toda a gente sabe que o alvo é o lugar entre uma sobrancelha e outra, o olho.
Frequentei gabinetes de dermatologia mas não percebi nada antes de ter lido o
poeta chinês. Soube de histórias de ladrões que foram os primeiros a entrar no
céu logo depois de Cristo, e também soube de um anjo que não estava acostumado
a fazer de cicerone a esse tipo de gente. Descobri que o cirílico não é tão
difícil assim se se prestar atenção à forma como são escritos os nomes. Aprendi
que desenhar montanhas e a palavra espera são lugares muito semelhantes e que
ambos podem ser comparados à dormida de um gavião no olho de Deus. Conheci um
jogador de críquete que largou o esporte para dedicar-se à prosa porque
acreditava na sorte. Reparei que o seu traje se manteve inalterado nas duas
profissões : camisa branca e luvas brancas funcionam como músculo em qualquer
eremita. Estudei muito sobre a prática do assobio, ainda não concluí nada e
acho que é por isso que sei assobiar de três formas diferentes. Aquela frase
sobre o amor está escrita em cartazes espalhados por todas as cidades onde já
estive. Tinha também uma frase sobre tigres, mas essa ficou num só cartaz, numa
cidade só. Li sobre pássaros e passei a saber que os pássaros medem a distância
em unidades de corpo e não em metros : a densidade de cada corpo não importa, o
que importa é a distância entre eles. Ainda assim me perguntei muitas noites
sobre qual seria a medida de uma asa. Em determinado momento achei que K. era o
homem mais bonito do mundo. Quando não pude mais com o silêncio escutei as
canções. Soube da morte no mesmo dia em que soube que o amor sim é importante,
mas não é imutável. Acho que chorei. Telefonei a meu primeiro rapaz e lhe
contei tudo isso. Lembro-me que ficou muito tempo calado e depois escutou-se
pelo país o ruído de uma garganta seca. Entre nós será a guerra, foi o que ele
disse, mas isso foi muito tempo antes. Aconteceu também que eu pedi esse tal em
casamento : uma vez, outra vez e depois outra vez. Ele negou três vezes mas nem
por isso deixei de achar que ele era o poeta mais bonito do mundo. Descobri que
o eixo de uma aldeia pode muito bem ser o eixo de um corpo de mulher. Soube que
se faziam procissões perto do mar mas que estas nunca chegavam ao mar.
Fotografei a mulher mais linda da procissão e apontei o foco à linha que divide
as suas omoplatas – foi aí que aprendi a rezar. Apaixonei-me por bandeiras no
verão de dois mil e dez, quando os meninos dançavam um transe muito psicodélico
feito do som dos ramos das araucárias varando no ar. Descobri que meu pai nem
sempre teve razão sobre as pessoas, mas que a terra onde meu pai me educou
talvez sim. Tremi quando me disseram que o único imperador era o imperador do
sorvete. Também me comovi quando entendi que o xisto nascia laminado nalgumas
praias e que isso quer dizer escultura. Aprendi a contar pelas manchas
múltiplas de uma papaia e acentuei a palavra açaí muitas vezes. Vi dois leões
roçando os focinhos um no outro e vi dois leões rugindo contra Deus quando
repararam que seus focinhos eram exatamente o mesmo focinho. Decidi que
astronauta era a palavra mais incrível de todas, mais ainda do que açaí, e
então resolvi que todos os poemas a partir dali seriam escritos no centro de um
círculo desenhado num capacete. Já não sei o que acha o brasileiro porque hoje
eu acho que brasileiro ou argelino são precisamente a mesma coisa : tudo o que
respira, brota. Acho que a ternura é importante.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.