PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 3 de março de 2022

A POLÍTICA MÁGICA

“Mais Maquiavel faria bem na hora de decidir o voto”


Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa da nova política. É um filme que se repete na História do Brasil, quando não se tem um pretenso bastião da ética ou um maluco caçador de marajás, temos a sempre renovada promessa de uma política nova, imaculada, nascida de uma lótus imaginária. E o que vemos, no mundo da política real, com suas inúmeras demandas, é a tibieza de um governo que, ao menor sinal de enfraquecimento e possíveis chantagens para um impeachment, se alia ao que há de mais atávico na política fisiológica do compadrio e da dança de cadeiras de uma patota que mama em instituições e órgãos aparelhados e viciados.

A entrega das chaves do cofre do Orçamento feita em janeiro ao todo-poderoso ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, representante de um centrão entranhado no sistema, é sem precedentes, inédita na nossa Nova República, colocando mais uma vez o ministro da Economia, Paulo Guedes, que já se encontrava em uma posição patética e subserviente, agora ficando em uma posição inútil, se tornando uma nulidade que se agarra a um cargo que já não serve mais para nada.

Isso para vermos que a promessa da nova política não chega nem a ser um sonho numa noite de verão, mas um estelionato eleitoral de um ex-integrante do baixo clero oriundo, pasmem, deste mesmo Centrão, em uma série de rachadinhas em que a sua família se encontra agora entranhada até a medula, no que se seguram com o poder que ainda têm no Executivo, Senado e Câmara, mas com promessas de tempestades caso Bolsonaro perca a sua imunidade, o que na visão autoritária que se conhece deste DNA, logo eles podem ficar acuados por um novo governo e uma virada democrática. 

O governo foi às favas com os falsos escrúpulos, nunca o tiveram, a aliança com o Centrão é obra e ação de uma mesma laia de apaniguados que têm na profissão da política um meio de vida e um projeto de dinastia, de um Carluxo que começou a carreira já como vereador, sendo emancipado. Nada é surpreendente nesta história, a não ser para os arrependidos da direita que se iludiram com uma promessa liberal e venderam a alma ao Diabo e levaram uma ferroada do escorpião, pois esta é a sua natureza.

O fundo eleitoral virou uma festa, a responsabilidade fiscal ganhou contorcionismos que fariam do governo Dilma um exemplo de sensatez orçamentária. Por fim, a festa completa se dá com a troca de moeda da governabilidade com as chamadas emendas de relator, nada mais que uma reedição matreira do que foi a esbórnia dos anões do orçamento. Repito, nada é surpreendente, a surpresa cabe aos inocentes que ainda acreditam em lorotas e lendas urbanas como nova política, numa visão idealizada de ingenuidade que só caberia a um Platão e seu Rei-filósofo, antes da pancada de realidade de Maquiavel.

Falta conhecimento da política real e da História como eixos em que se podem analisar e saber o que é possível ou não nas ações políticas. Falta realismo no fenômeno eleitoral brasileiro, uma Macondo de pensamento mágico que sempre se insinua quando não sobra alternativas a não ser colocar um espantalho ou um estrupício para dar as cartas e virar chacota internacional. O Brasil virou um país exótico em que as repúblicas bananeiras podem se espelhar e se aliar, piada é pouco, o ridículo do negacionismo nos levou a uma condição pré-iluminista de crendices e unguentos. 

O sistema está contaminado há muito tempo por uma ocupação fisiológica, um cancro difícil de ser extirpado. Eis a nova política, ao menor sinal de dar água, mostra a sua verdadeira natureza, acovardada e que tenta se equilibrar bambeando numa coluna chamada Centrão e todo o pacote que isto envolve. O mais patético, por fim, se torna a que papéis se prestam estas excelências, como no caso citado de Paulo Guedes, uma biografia à deriva, politicamente, mais um nesta série amalucada de ministérios estrambóticos comandados por uma súcia ideológica de costumes de uma Dona Candoca, digo, Damares. 

Temos o capachão da TV Colosso que levou esporro do chefinho ao abusar de suas prerrogativas e assim la nave va. Eis o governo do escorpião, que é de sua natureza fazer de idiota uma direita que se iludiu com um sonho numa noite de verão, ou melhor, que foram tapeados pela espirituosidade da realidade política como ela é. Mais Maquiavel faria bem na hora de decidir o voto, para que a Macondo do mundo das fadas não dê as cartas na próxima vez.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://www.seculodiario.com.br/colunas/a-politica-magica

 


A CIDADE DOS POETAS

Estávamos na cidade de Green Stone. Em 1919 havia um clima de renascimento do pós-guerra, não tínhamos mais a tensão ocorrida até a derrota alemã. Os movimentos de vanguarda começavam a se expandir. Um destes movimentos abarcava a poesia e as artes plásticas, o chamado Movimento do Chamado, outra frente que se abria, e que também tomava conta dos saraus de Green Stone, era o movimento de vanguarda Violeta Sonora, que tinha uma ligação maior com expressões mais líricas, ao passo que o Movimento do Chamado era uma vanguarda que buscava a ruptura com todas as tradições literárias e artísticas anteriores. 

Ainda tínhamos o movimento mais regional chamado de Pedra Branca, liderado por uma tríade de poetas, que eram Antônio Vieira, Silva Alencar e Daniel Sanzio. A poetisa Margarida Soares liderava a Violeta Sonora, e tinha um fetiche com a poesia de Safo de Lesbos. Por sua vez, a liderança do Movimento do Chamado era composta por quatro poetas e uma poetisa, ela era Domitila Guerra, e os poetas eram João Gomes, Paulo Henrique Campos, Leopoldo Figueira e Dionísio Oliveira. Tinha ainda o artista plástico Zezinho como o mentor e criador do Movimento do Chamado. A poetisa líder do Violeta Sonora só admitia mulheres em seu grupo. Por sua vez, Margarida Soares tinha acabado de publicar o seu “Tratado de Lírica”, no qual falava sobre a história literária, sendo este livro, também, uma homenagem à Safo de Lesbos, considerada por Margarida como a mãe de todas as poetisas.

No Tratado de Lírica ela enumera muitos escritores, deste país chamado Lantânia, e de sua cidade, Green Stone. Os principais centros literários de Lantânia, além da cidade de Green Stone, que sempre foi o centro cultural oficial do país, ainda contava com duas periferias, que eram as cidades de Yellow Stone e de Blue Stone. Na citada história literária, ela lembra do parnasiano Castelo Salgado, que ficara datado, mas, que ainda era considerado uma espécie de patriarca recente da poesia tradicional. E o livro acaba indo mais para longe, na análise histórica, antes do movimento árcade, nos primórdios, em que aparece o poeta que moldou a língua lusitana falada em Lantânia, o grande poeta do mar e do degredo, José Alves Martins, este que escreveu a bíblia dos poetas de Lantânia, a poesia épica chamada Os Navegantes de Saturno. Outra obra, esta mais polêmica, foi citada por Margarida como o primeiro exemplo de vanguarda, já no fim do século XIX, que foi o livro de poesia satírica Um Gole de Vinho, do poeta Alfredo Villas Boas, que também escreveu uma peça de comédia aniquiladora, digna da pena de um Aristófanes, destruindo a República que surgia. Alfredo Villas Boas era leitor de Bakunin e Kropotkin, contra a existência do Estado, e sua peça levou o título de “Loteria do Infortúnio”.  O tom jocoso, em que eram destruídos simultaneamente a herança monárquica e as promessas republicanas, incomodou a Guarda Republicana, e o então presidente Marechal Pontes mandou censurar a peça, depois de dois meses em cartaz, quando um grupo policial chegou a invadir uma das montagens e agredir os atores e atrizes, prendendo alguns deles e o diretor da peça, amigo de Alfredo, o diretor consagrado de comédia de nome José Carlos Costa. Alfredo Villas Boas chegou a ficar detido semanas depois por incitação de desordem e por vadiagem, pois fora visto bêbado numa Travessa do centro de Green Stone, andando pelas calçadas com uma prostituta, e a polícia local encontrara o pretexto para punir o poeta e comediógrafo, e tentar sujar o seu nome publicamente. 

Na Pedra Branca as atividades panfletárias se intensificavam e o movimento tinha uma pretensão ingênua para os olhos de hoje de alcançar uma espécie de síntese cultural de toda a Lantânia. O poeta ativista e agitador cultural Antônio Vieira se confrontava com a ala conservadora da classe média de uma Lantânia média e conformada, e que fazia parte da geleia geral de Green Stone. A incompreensão por parte desta classe usualmente alienada fazia com que Antônio Vieira e todos os sonhos de grandeza da Pedra Branca parecessem um sonho numa noite de verão, e não se iludam, todas as vanguardas e movimentos literários e artísticos desta época não faziam eco neste setor da sociedade, e pareciam ser uma miríade de movimentos de sonhadores ingênuos, pois a dominância cultural ainda ecoava com vivas e louros os poemas mofados do grande parnasiano Castelo Salgado que, até ali, parecia uma espécie de cânon intransponível e insuperável. 

Os temas populares dominariam as atividades da Pedra Branca, e as revoltas populares do século XIX virariam tema destes poetas que se pretendiam populares. A Revolta das Serpentes, na então província do Ducado Fontes, era uma das ideias-valise que fizeram a cabeça do primeiro sarau do grupo em Green Stone, e o Movimento do Cajueiro, que foi dizimado pelo Exército Monarquista, em 1862, na província do Castelo, seguiria também como motivo temático da Pedra Branca, e um tipo de folclore artificial começava a se tecer, apesar das pesquisas do intelectual e acadêmico Prado Rocha, e do interesse autodidata de Antônio Vieira pelo folclore e pela cultura popular de Lantânia. O Movimento do Cajueiro englobava uma seita redentora e apocalíptica, na Lantânia profunda, de um líder religioso de nome padre Anastácio Ferreira, e um agrupamento de famintos e depauperados que viam no padre um tipo de santo, messias e sua última esperança. A província do Castelo sempre foi a província mais miserável e abandonada de toda Lantânia, e o problema persistia até aqueles dias em que se configuravam as vanguardas da Pedra Branca, do Movimento do Chamado e da Violeta Sonora. 

No caso do Violeta Sonora, desde o início de suas atividades, capitaneadas por Margarida Soares, e que cooptou as discípulas Daniela Saraiva, e uma poeta menor, mas, bem engajada como agitadora cultural, Paula Campos Siqueira, foi criada uma resistência de um grupo de mulheres cristãs e conservadoras, em Green Stone, comandada por uma suposta Ordem Católica do Sagrado Coração, que tinha como líder uma exaltada madame de nome Luzia Tenente, filha de um general do Exército, e neta de um general que lutou na Guerra contra Tenochtitlán, de 1862 a 1869. Luzia Tenente era casada com um delegado de nome João Tenente, este que tinha duas amantes e era afeito ao lupanar, mas tudo conservado na aparência da hipocrisia familiar, de uma Luzia que tapava os olhos até se as coisas passassem bem na sua frente, como era o caso de uma das amantes de João Tenente, que frequentava as festas organizadas, eventualmente, na casa do casal Tenente.

Entre o Movimento do Chamado e o Violeta Sonora o diálogo era amplo, mas somente quanto às vivências artísticas, pois se tratavam de projetos bem diversos. O Movimento do Chamado tentava criar uma poesia efetivamente original e própria para Lantânia, era um projeto estético. A Pedra Branca, por sua vez, tinha um projeto nacional, mas não no sentido formal, mas como temática. Ao passo que o Violeta Sonora, como dito, era um projeto de poesia lírica e melíflua, mais afeita aos temas sentimentais e eróticos. Portanto, pensar sobre Lantânia não passava pelo projeto do Violeta Sonora, o que era encarado por alguns membros da Pedra Branca e do Movimento do Chamado como uma postura artística alienada, e o engajamento político para o Movimento do Chamado era algo até mais forte do que acontecia na Pedra Branca, que parecia mais um centro aglutinador de cultura popular no sentido de documento e de fortuna crítica, sem passar por um crivo de engajamento político, como era comum no Movimento do Chamado. 

Uma ordem conservadora de idiotas rematados também se decidiu a perseguir os novos poetas do Movimento do Chamado. Podemos chamá-los de egressos da Idade da Pedra Lascada, que escreviam artigos medíocres, em edições anacrônicas, como o Diário Matutino e o jornal conservador de Green Stone, Gazeta Green, este que tinha um jornalista janota como redator chefe, que tinha o nome de Plínio Scarpa, este que era um cultor do poeta maior, Castelo Salgado, e se dedicava a colocar um time de articulistas também janotas, cheirando à talco, para escrever bobagens do quilate de “Domitila Guerra parece uma matraca e escreve trêmula um arremedo de cultura popularesca de Guignol, ao passo que João Gomes e Dionísio Oliveira praticam uma espécie de sortilégio de mágico de esquina que ousam chamar de poesia, parecendo mais a ladainha insuportável de um ébrio perdido numa travessa pela madrugada”, este que era texto do articulista Benício Loureiro, um chato de galochas, que vivia de encomendas editoriais e pré-fabricadas. 

Dionísio Oliveira, de língua ferina, não fez por menos, e no folheto do Movimento do Chamado, distribuído gratuitamente pelo centro de Green Stone, e crescendo em popularidade, chamou este tal de Benício Loureiro, em um artigo,  de “peralvilho mau caráter, cavalgadura com o tom beócio que pensa que é jocoso”. Benício Loureiro partiu, então, para uma tréplica em que acusava o poeta Dionísio Oliveira de ter feito um poema-piada ou paródia em que ridicularizava o poeta maior Castelo Salgado, num poema chamado “marcha das fadinhas de mármore”. De fato, Dionísio tinha publicado a tal paródia no folheto do Movimento do Chamado, e concordou com a acusação, pois este seu poema-piada era motivo de orgulho e um dos produtos acabados de toda  a vanguarda, que era destruir ícones e baluartes ultrapassados, e um dos alvos preferenciais do Movimento do Chamado era Castelo Salgado, ao passo que o grande épico José Alves Martins ainda era preservado, pois possuía uma forma menos afetada, segundo os poetas da vanguarda, se comparada à bijuteria enfadonha do digníssimo Castelo Salgado, que ainda fazia a cabeça das madames e da classe enfatuada da elite de Green Stone, e sustentada por estes periódicos odiosos com articulistas medonhos como Benício Loureiro. 

Estava sendo organizada uma intervenção do grupo Movimento do Chamado na Praça da República, em Green Stone. Os jovens do que viria a ser a entrada dos anos 20 do século XX estavam antenados com estes novos poetas, e a declamação de poemas inéditos do grupo seriam feitos pelos próprios poetas. Toda uma turma das artes plásticas também já se agitava, no influxo do inquieto Zezinho, que era o mais engajado de todos para impor o nome do Movimento do Chamado como um movimento cultural e histórico para a literatura e as artes de Green Stone e de toda Lantânia. Suas pinturas abrigavam um mistifório de influências folclóricas e de arte degenerada herdada de Van Gogh, nas cores quentes como um amarelo vivo, e um tom mais de linhas e formas que eram uma espécie de evolução natural sob a influência de Cézanne. Zezinho foi conferir, com a guarda local, a forma em que poderia ser feita a intervenção na praça. Ele conseguiu uma autorização da prefeitura para um evento de dois dias, que seriam em um sábado e em um domingo, desde que fosse durante o dia, e que tudo fosse encerrado até as cinco da tarde. Leopoldo Figueira estava empolgado para apresentar um panegírico em homenagem ao poeta satírico Alfredo Villas Boas, e Dionísio Oliveira tinha preparado um poema-piada sobre o jornalista Benício Loureiro, o poema “o janota parlapatão”, que agora era o seu saco de pancadas preferido. O poeta Silva Alencar, da Pedra Branca, iria como ouvinte, pois, mesmo sendo de outro movimento, tinha uma interlocução muito estreita com Leopoldo Figueira. Do Movimento do Chamado, Domitila Guerra combinou, com duas atrizes, a declamação de uns poemas teatrais de sua autoria. Zezinho era cunhado de Domitila, casado com a sua irmã mais velha, Beatriz Guerra, esta que exercia a profissão de médica, e era uma apreciadora da cultura. Beatriz Guerra tinha lido de tudo em literatura, e curiosamente, contudo, sua vocação era a medicina, e isso desde criança, pois já falava disso desde os cinco anos, enquanto Domitila, que não era uma leitora onívora como sua irmã mais velha, tinha uma tendência a se expressar com poemas escritos desde os dezesseis anos, primeiro imitando Castelo Salgado, e depois que conheceu Dionísio Oliveira e Leopoldo Figueira, ainda antes da criação do Movimento do Chamado, mudou radicalmente de estilo, renegando as suas primeiras produções literárias, que pareciam elegias religiosas de um tempo sombrio e perdido numa cela de clausura. Seu desbunde, por conseguinte, floresceu mesmo já durante as atividades do Movimento do Chamado. No primeiro dia do evento, eis que aparece um velho e alquebrado Alfredo Villas Boas, que depois de um período de ostracismo, muito devido às ações repressoras do presidente Marechal Pontes, desde a sua peça Loteria do Infortúnio, fazendo o poeta cair em desgraça e sumir do mapa cultural por vários anos, agora recebia um tipo de culto do Movimento do Chamado, e tinha aparecido em um capítulo exclusivo e longo no livro Tratado de Lírica da poetisa do Violeta Sonora, Margarida Soares, e então, num destes acontecimentos inexplicáveis, ele aparece quase anônimo, no início das declamações de sábado, se não tivesse sido reconhecido na hora pelo poeta Leopoldo Figueira que, enlouquecido de alegria, convocou o velho poeta para o palco dos declamadores. Alfredo Villas Boas foi ovacionado na Praça da República, e ficou aos prantos, agradeceu tudo, e declamou um poema seu conhecido de seu livro principal de poesia, o famigerado Um Gole de Vinho. Em seguida, no evento do Movimento do Chamado, teve o pequeno esquete poético escrito pela poetisa Domitila Guerra, com duas atrizes que ela conhecia, e aí Dionísio Oliveira declama o poema “burrinho de presépio” em que o poeta detona o jornalista Benício Loureiro, e o seu “o janota parlapatão”, também sobre o jornalista, ao passo que Leopoldo Figueira faz o seu panegírico em homenagem ao poeta Alfredo Villas Boas, que se senta a seu lado e acompanha tudo. O admirável é que a aparição do velho poeta satírico não estava nos planos do evento, pois não se sabia do paradeiro de Alfredo Villas Boas, o que tornou a leitura do panegírico emocionante. Contudo, a verdade é que o poeta satírico já estava meio alheio à realidade, vindo de internações em hospícios, e com sequelas severas de um alcoolismo de muitos anos, desde os tempos de glória em Um Gole de Vinho, e depois do golpe duro que levou do poder, pelas mãos do Marechal Pontes, que queria que seu nome desaparecesse da cultura, e que conseguiu, enquanto as tendências mórbidas do poeta ganhavam os ares e a aura dos poetas malditos, um satírico que se entristeceu, e que afundou num submundo de travessas e cachaça. Leopoldo Figueira, depois do encontro com seu ídolo literário, vai à sua casa, e vê um estado de penúria. Alfredo Villas Boas vivia de uma aposentadoria por invalidez de um trabalho que ele fez como arquivologista na Biblioteca Histórica de Lantânia, que ficava no centro de Green Stone. Ele foi aposentado depois de uma crise de delirium tremens devido ao seu intenso alcoolismo. A tentativa de aproximação e resgate do velho escritor por parte de Leopoldo Figueira e do Movimento do Chamado, por fim, não surtiu muito efeito, o que eles viram foi um Alfredo Villas Boas distante, ao contrário do que indicava as suas obras de juventude. Talvez, seu brilho tenha se perdido para sempre desde o golpe duríssimo de ostracismo que recebeu do então presidente da Lantânia, o Marechal Pontes. O desinteresse de Villas Boas diante daqueles jovens que o idolatravam não vinha de uma atitude desdenhosa, mas de uma compleição completamente destruída, física e espiritualmente, por muitos anos seguidos, compleição trágica e maldita esta que só se aprofundava com o tempo.. O fato é que o Movimento do Chamado, depois de um mês de tentativas de aproximação e resgate da fama de Alfredo Villas Boas, desistiu do empreendimento, e depois de seis meses, o poeta e dramaturgo Alfredo Villas Boas, satírico e polemista do passado, agora dominado pelo alcoolismo, morreu em sua casa de um infarto fulminante, e também de uma tristeza profunda e irreversível. 

As atividades do Violeta Sonora também se intensificaram naqueles últimos meses. O Tratado de Lírica, de Margarida Soares, estava ganhando relevância acadêmica, embora a poetisa fosse uma outsider, sem formação universitária, e que tinha como trabalho formal a propriedade e administração de uma padaria e de um açougue, de uma herança do pai, que morreu cinco anos antes. A atuação da Ordem do Sagrado Coração agora ia contra o erotismo lesbianista dos poemas divulgados nos chamados Cadernos Eróticos, edição do Violeta Sonora, que agora ganhava seu terceiro número, com tiragem de uma gráfica que tinha o pai do artista plástico Zezinho, do Movimento do Chamado, como dono. Pois, daqueles grupos todos, Zezinho podia fazer o que quiser, sua família tinha uma longa tradição em propriedade de jornais e de imóveis, e a gráfica tinha sido fundada há dez anos. O jornal de sua família circulava em Green Stone como concorrente do Diário Matutino e do Gazeta Green, e agora começava a dar espaço para os novos poetas publicarem colunas, tentando romper a casca dura do culto à Castelo Salgado, que já irritava todos aqueles que tentavam renovar a mentalidade literária e artística de Lantânia e da capital Green Stone. Os poetas da Pedra Branca, por exemplo, ganharam um caderno semanal especial, em que poderiam escrever sobre folclore e regionalismos no jornal da família do Zezinho, que tinha o nome de Tribuna Atual. Dionísio Oliveira começou a fazer textos sinuosos no Tribuna Atual, em um ele faz uma paródia sobre Benício Loureiro, em que diz : “O parlapatão faz o culto do mármore, lambe um verso de marfim, ele diz ao redator chefe que tem edulcorado seu palavreado com rosas e o perfume orvalhado de mimosos lumes, a sua plêiade antiquíssima ganhou o nosso dom literato e levou às favas com todo jovem que tem a ideia ou a cuca fresca, tudo o que é novo vira artigo malcriado de um doutor Felício Monteiro, que não é jornalista, é arteiro, mas, dos prestidigitadores que refinam suas alucinações com o apego a um passado mítico que se esboroa”. Leopoldo Figueira, por sua vez, falando de Margarida Soares : “A coincidência de ter encontrado um Alfredo Villas Boas em frangalhos e o contraste com seu renascimento para o mundo pelas mãos doces de Margarida, em seu Tratado de Lírica, é uma das coisas mais chocantes de minha vida literária e de boêmio, de como a tragédia pode ser o ato final de um ostracismo que insistiu em morrer e entregar os pontos. Foi a lástima da censura de Loteria do Infortúnio como uma espécie de profecia macabra da ruína de um poeta que foi assassinado em vida”. 

Na distribuição da terceira edição dos Cadernos Eróticos, feita pelo Violeta Sonora, com o comando de Margarida Soares, e a ajuda de Zezinho, a Ordem do Sagrado Coração, que era um grupo religioso feminino muito forte e influente em Green Stone, se organizou com uma frente de madames carolas, liderada por Luzia Tenente, e uma freira carmelita de nome Maria das Dores, em que foram compradas quase todas as edições dos tais Cadernos Eróticos, e então, o grupo religioso fez um monturo numa das praças centrais de Green Stone, perto de onde teve o evento do Movimento do Chamado, recentemente, e estas carolas atearam fogo no monte de folhetos do Violeta Sonora. Aquilo virou uma grande fogueira, com as carolas pregando ferozmente contra a prostituição e a literatura indecente. Foi uma histeria e um fanatismo sem precedentes. Logo após o tal evento extravagante de ignorância, a poetisa e agitadora cultural do Violeta Sonora, Paula Campos Siqueira, foi avisada por um conhecido do evento o que se passava com as carolas da Ordem do Sagrado Coração, e logo se dirigiu a Margarida Soares, que matutou bem rápido e disse que aquilo merecia uma retaliação à altura. Margarida redige, em uma semana, uma tríade de poemas que seriam uma das referências de sua obra e de seu espólio literário. Parecia que aquela afronta da Ordem do Sagrado Coração lhe despertara uma fúria, que foi direcionada para esta criação literária, e que resultou nos três poemas : A Vida Insana, Poema de Afrodite, e o que seria seu poema mais lembrado, Sensação. E, para atacar a Ordem do Sagrado Coração, Margarida Soares fez mais dois poemas com os títulos de Furor e Fogueira, e A Madame Carola, este sobre Luzia Tenente, em que Margarida Soares inclui insinuações sobre seu marido e sua hipocrisia arraigada. Enquanto isso, no Movimento do Chamado, agora na entrada para os anos 1920, Dionísio Oliveira produzia três grandes poemas, que eram o Machadada, Patíbulo dos Idiotas e Poema do Levante. Leopoldo Figueira fazia seu poema político de nome Semente do Futuro e outro poema que exaltava a literatura nova, Os Sabiás. A peça agora escrita por Dionísio Oliveira fazia uma paródia do então prefeito de Green Stone, José Ferreira, que fazia obras em toda cidade, derrubando cortiços e expulsando os pobres do centro da cidade, que era a peça teatral de nome O Prefeito Papudo. Também havia uma homenagem do poeta Paulo Henrique Campos, com o poema “O Herói de Verdade”, ao maior líder de quilombo da História de Lantânia, no século XVIII, o Negro André, que foi chefe do Quilombo do Sal, e fez uma insurreição contra a Galícia do Norte, à época em que Lantânia era uma colônia de exploração de cana de açúcar, comandada por estes chamados galegos, tudo em nome da Coroa Real de Galícia do Norte, ainda antes da entrada do café e da mineração para modernizar um pouco o sistema dependente da plantation continental. Negro André foi morto numa emboscada pela Guarda Colonial da Galícia do Norte, e depois virou um tipo de mito para a Identidade Negra em Lantânia. Na Pedra Branca, um poema sobre a Revolta das Serpentes, feito por Antônio Vieira, vinha à lume, de nome “Grande Revolução”, e uma peça e um grande poema sobre o Movimento do Cajueiro, feitos por Silva Alencar, também vinham à lume, a peça de nome Messianismo do Sol e o poema A Luta Camponesa. Ao passo que Domitila Guerra, por parte do Movimento do Chamado, produzia três de seus poemas mais importantes, O Vaticínio dos Incautos, Plêiade Nova, e o poema A Vida dos Beberrões. Portanto, os três grupos, o Movimento do Chamado, o Pedra Branca e o Violeta Sonora, entravam no seu auge criativo, e o culto à Castelo Salgado parecia uma impostura cada vez maior e cada vez mais deslocada, dentro de um universo paralelo de uma elite que se encontrava cada vez mais alheia à realidade circundante dos novos movimentos literários. 

O ano de 1921 avançou com muitos eventos literários e encontros culturais, os planos do Movimento do Chamado ficavam cada vez mais organizados, o Pedra Branca aprofundava a pesquisa histórica e cultural, o Violeta Sonora continuava publicando os tais Cadernos Eróticos, que agora, com a ajuda do Tribuna Atual, e pela intervenção do artista plástico Zezinho, ganhava destaque e relevância artística e cultural. Margarida Soares, então, ganha uma reedição de seu Tratado de Lírica, e passa a dar palestras periódicas no Salão da Cultura, um grande anfiteatro em que aconteciam eventos de ópera, peças teatrais e números de dança, e que agora também abria o seu espaço para os novos artistas de Green Stone, seja para saraus e palestras ou demais atividades fomentadas por agitadores culturais.  Margarida Soares, como palestrante, tinha o seu trunfo intelectual com o Tratado de Lírica, e agora redigia Os Novos Poetas, sobre o Violeta Sonora, o Pedra Branca e o Movimento do Chamado. Tivemos, por sua vez, mais cinco edições dos Cadernos Eróticos, com o trabalho incansável da agitadora cultural do Violeta Sonora, a poetisa menor de nome Paula Campos Siqueira, e isso, com a ajuda de Daniela Saraiva, que agora produzia também seus melhores poemas, dentre os quais podemos destacar Vinho e o Violeta Sensual, um poema lésbico e erótico. Paula Campos Siqueira agora se via com os ataques ideológicos da Ordem do Sagrado Coração, que se aprofundava, mas, a percepção geral, até por parte da elite que ainda cultuava a literatura parnasiana de Castelo Salgado, era a de que tais investidas carolas do grupo liderado por Luzia Tenente caía cada vez mais na caricatura, pois, do apoio inicial às investidas contra o Violeta Sonora, com o avanço e a rápida transformação do cenário cultural de Green Stone, até esta elite resistente já percebia os ventos da mudança. Portanto, a coisa toda agora se voltava para o pastiche e a autoparódia em que se transformaram as atividades estrambóticas e cada vez mais sem critério das carolas da Ordem do Sagrado Coração. A piada geral era a de que o Violeta Sonora, a cada nova edição que saía dos Cadernos Eróticos, já separava uns exemplares, especialmente para serem queimados em praça pública pelas carolas desocupadas, enquanto distribuía o resto nos eventos culturais e nos saraus. E agora, depois das bem sucedidas palestras de Margarida Soares no Salão da Cultura, havia a organização para a apresentação da peça O Prefeito Papudo, de Dionísio Oliveira. A peça seria dirigida por um novo diretor teatral, que despontava no cenário cultural de Green Stone, de nome Elias Herrera, e que estava em contato estreito com o Movimento do Chamado já há um ano. A peça seria apresentada no Teatro de Lona, um teatro popular de Green Stone, em que os preços populares para os ingressos favoreciam a ideia de Dionísio Oliveira de tornar a sua peça acessível para toda a população, para que não fosse um evento restrito para a elite. Portanto, Dionísio Oliveira optou pelo Teatro de Lona, ao invés de usar o Salão de Cultura ou o teatro de elite de Green Stone, o Teatro Belvedere, onde se montavam peças antigas, como reedições do dramaturgo francês Racine, grandes produções de peças de Shakespeare, e pouquíssimas peças de autores e diretores nacionais. A ideia de remontar Loteria do Infortúnio, de Alfredo Villas Boas, também passava pela cabeça de Dionísio Oliveira, que falou com seu colega de Movimento do Chamado, Leopoldo Figueira, que se animou, e que poderia ser uma homenagem ao poeta que morreu recentemente. Dionísio Oliveira, enquanto começavam as primeiras apresentações de O Prefeito Papudo, no Teatro de Lona, agora adaptava o texto original de Alfredo Villas Boas, com pequenas intervenções, mas, com o texto original do poeta satírico quase todo intacto, enquanto o diretor teatral Elias Herrera, que agora dirigia os ensaios e montagens de O Prefeito Papudo, já preparava o plano de ensaios e montagens desta reedição da polêmica peça do fim do século XIX, Loteria do Infortúnio. O prefeito de Green Stone, José Ferreira, sabendo das apresentações de O Prefeito Papudo, no Teatro de Lona, foi ver a peça numa apresentação lotada num domingo. O prefeito não tomou nenhuma medida de censura, pelo contrário, após ver a peça, ele foi conversar com o diretor teatral Elias Ferreira e o poeta Dionísio Oliveira, e também com o ator que fazia o prefeito, personagem este que na peça se chamava Lomé Tonteira. José Ferreira ria muito, e disse que teria que arrumar um comediante para se vingar e fazer troça de Dionísio Oliveira, que ele chamou de o grande aniquilador do periódico Gazeta Green e de Benício Loureiro, que apoiava o prefeito, com Benício fazendo panegíricos constrangedores ao “prefeito moderno”, atuando, de fato, como uma marionete e um lambe-botas, sabujo e lacaio, ao passo que o Tribuna Atual detonava todos os dias a administração de José Ferreira, tendo o Diário Matutino, por sua vez, se tornado cada vez mais irrelevante, e ficando endividado. Dionísio Oliveira, contudo, não ia com a cara do prefeito José Ferreira, e disse que não queria a sua simpatia, fez um corte seco na conversa e saiu andando, enquanto o diretor Elias Herrera tentou encerrar a conversa e se despedir do prefeito, que estava acompanhado de três assessores que foram ver a peça com o patrão. 

No caso de Luzia Tenente e as atividades da Ordem do Sagrado Coração, cada vez mais ridículas e decadentes, ela entra em sua casa e encontra o seu marido, o delegado João Tenente, com duas prostitutas, ela tem uma privação dos sentidos, vai até uma sala anexa em que havia um revólver que pertencia a seu marido, expulsa as duas prostitutas de sua casa e atira contra o marido na cabeça e no peito, que cai morto na hora, e por fim, Luzia Tenente se mata com um tiro na cabeça. A notícia é um escândalo em toda Green Stone, que tomou tal proporção, que a Ordem do Sagrado Coração teve que encerrar as suas atividades depois desta tragédia. Margarida Soares publica uma nota de pesar no Tribuna Atual, lamentando o fato, mas, contudo, demonstrando os efeitos nocivos da hipocrisia, e lembrando as perseguições que o Violeta Sonora sofreu pelas atividades fanáticas da Ordem do Sagrado Coração. Agora se aproximava 1922, e o Movimento do Chamado, já nos preparativos para a montagem de Loteria do Infortúnio, já com o trabalho intenso de ensaios pelo diretor Elias Herrera com seus atores e atrizes, e depois do sucesso estrondoso de O Prefeito Papudo no Teatro de Lona, planejava uma Semana Cultural para maio de 1922, junto com o Pedra Branca e o Violeta Sonora (este grupo agora livre da empulhação da Ordem do Sagrado Coração e com as suas atividades de vento em popa). Tal semana seria a Semana de Arte Nova, e que seria a ruptura oficial do cenário cultural de Green Stone com tradições superadas, como a do culto em relação ao poeta Castelo Salgado, que se demonstrava cada vez mais postiço e que se enfraquecia, muito devido ao agito cultural intenso e ininterrupto do Movimento do Chamado, do Pedra Branca e do Violeta Sonora, em Green Stone. Tais movimentos culturais, a esta altura, já tinha quebrado grande parte da resistência da elite cultural da cidade, e ganhavam  adesão de um establishment que se encontrava no início contrário ao que era produzido por estes novos autores literários, tirando o ranço do Gazeta Green, em que Plínio Scarpa e Benício Loureiro se encontravam em guerra verbal e textual com Dionísio Oliveira, este que escrevia, ininterruptamente, no Tribuna Atual, detonando os janotas e peralvilhos do que ele chamava de culto do mármore e do talco. Havia este ranço, pois, tanto Plínio Scarpa como Benício Loureiro eram alvos constantes da pena ferina de Dionísio Oliveira.  No começo de 1922 houve um sarau cultural organizado pelo Pedra Branca, e foi montada uma peça de Silva Alencar, Messianismo, em que ele recapitulava eventos do Movimento do Cajueiro, tudo feito no anfiteatro do Salão de Cultura, uma peça enorme, com vários atores, atrizes e figurantes, que durava seis horas, dividida em três partes de duas horas. Silva Alencar e Antônio Vieira tomaram a frente em vários pontos em que se divulgava a cultura popular, e nesta atividade toda ainda se vendiam livros do folclorista Prado Rocha. Enquanto isso, Benício Loureiro e Dionísio Oliveira se processavam mutuamente. Dionísio derruba um dos vários processos de Benício e o desanca, para variar, no suplemento cultural do Tribuna Atual. Plínio Scarpa começava a se incomodar com tudo aquilo e manda prender Dionísio Oliveira. A ordem é expedida, mas, Dionísio consegue comutar a prisão em multa rescisória por danos morais e materiais ao Gazeta Green ao acionar um advogado. Desta vez, ele teria que pagar uma pequena fortuna ao dono deste jornal. Era a primeira vitória do grupo de janotas contra o incômodo poeta Dionísio Oliveira. Zezinho entra no jogo e quita a multa, e começa a articular com a sua família meios de minar os recursos do Gazeta Green, que até então eram vultosos, pois o jornal se encarregava de fazer praticamente marketing político com a imagem do prefeito José Ferreira. A oposição política ao prefeito, que começava a gestar uma candidatura que pudesse concorrer com aquela máquina pública, que fez de Green Stone um canteiro de obras públicas superfaturadas, teria um longo trabalho pela frente, o dinheiro da família de Zezinho e a atuação cada vez mais brilhante do Tribuna Atual, poderiam contribuir para apear o prefeito José Ferreira do poder e evitar a sua reeleição no fim do ano de 1922. Por sua vez, a montagem de Messianismo vira um grande acontecimento e a peça entra para a História como um dos grandes standards da cultura nacional, a grande peça de Silva Alencar seria o maior feito do grupo de vanguarda Pedra Branca e o opus de toda a obra do poeta Silva Alencar, que agora se destacava como o dramaturgo que se debruçou numa pesquisa mastodôntica sobre o Movimento do Cajueiro, na qual reuniu todos os documentos, livros históricos, e mergulhou em arquivos públicos para montar este épico de seis horas. As atividades do Violeta Sonora, por sua vez, agora vinham com a publicação de Os Novos Poetas, que era um volume de crítica literária autodidata, que colocava toda a nova literatura na ribalta, depois de Margarida ter feito um volume histórico com a literatura pretérita de Lantânia. O fim da Ordem do Sagrado Coração, por conseguinte, deixava o ar do Violeta Sonora puro e respirável, parecia que toda aquela macaquice carola agora iria virar um pesadelo cada vez mais distante e apagado da memória. Daniela Saraiva cuidava agora de mais um sarau do Violeta Sonora, e a agitadora cultural do grupo, Paula Campos Siqueira, agora estava em contato com Zezinho, do Movimento do Chamado, que junto com Antônio Vieira, do Pedra Branca, começavam os preparativos da Semana de Arte Nova, que seria realizado em maio de 1922, no Salão de Cultura. Em março de 1922 é montada, também, no Teatro de Lona, a reedição de Loteria do Infortúnio, de Alfredo Villas Boas, pelas mãos de Dionísio Oliveira, peça que, desta vez, teria uma introdução declamatória de alguns poemas de Um Gole de Vinho, também de Alfredo Villas Boas, por parte de Leopoldo Figueira, este que se tornara, àquela altura, um dos maiores fiadores da fortuna crítica de Alfredo Villas Boas, depois de seu renascimento no livro de Margarida Soares, o Tratado de Lírica. A peça é montada, a preços populares, assim como tinha sido na peça original de Dionísio Oliveira, O Prefeito Papudo, e a direção da peça também coube a Elias Herrera. A reedição de Loteria do Infortúnio obedecia quase que integralmente à montagem original do fim do século XIX, feita pelo então diretor teatral José Carlos Costa,  e ao texto autoral, do poeta e dramaturgo Alfredo Villas Boas, com a diferença de que trechos importantes do livro de poesia de Alfredo Villas Boas, Um Gole de Vinho, ganharia a declamação feita pelo poeta Leopoldo Figueira, como uma introdução antes do primeiro ato de Loteria do Infortúnio, e que funcionaria como uma grande homenagem à obra de Alfredo Villas Boas. Depois do sucesso de Messianismo, no Salão de Cultura, e da boa recebida da remontagem de Loteria do Infortúnio, no Teatro de Lona, o cenário cultural de Green Stone já tinha a nova literatura do século XX como a dominância oficial em que agora o jogo era jogado. A elite, que até pouco tempo ainda se apegava ao culto de Castelo Salgado, e a todos aqueles rapapés parnasianos, enfraquecia este elo, pois já havia uma reforma do gosto pessoal, não somente na juventude literária, mas agora também, depois de todos os esforços e atividades do Movimento do Chamado, do Pedra Branca e do Violeta Sonora, formando uma nova conjuntura favorável para estas vanguardas, dentro de uma elite originariamente tradicionalista no gosto e nos costumes. Portanto, acontecia o que, em meados de 1918 ou 1919, ainda era algo impensável. Enquanto isso, uma guerra continuava a acontecer entre articulistas do Gazeta Green e do Tribuna Atual, ao passo que, em abril de 1922, o Diário Matutino decreta falência e encerra as suas atividades. Despontava, finalmente, a candidatura de oposição ao prefeito José Ferreira, que era a do intelectual Afrânio Rodrigues, que odiava a afetação gabarola do preclaro prefeito, e que este intelectual sabia que era um astuto que usava sua imagem como um culto da personalidade. Tudo o que se passava em Green Stone, naquela época, teria que ter alguma assinatura de José Ferreira. Portanto, a sua presença jocosa e bem humorada na montagem de O Prefeito Papudo, no Teatro de Lona, não tinha sido uma bondade dele, e nem obra do acaso, ele também queria faturar em cima até de uma paródia de sua imagem, daí a recepção azeda de um Dionísio Oliveira que deu de ombros e saiu andando ao ver a aproximação do prefeito e de seus assessores. Nesta guerra verbal e textual, e recheada de processos entre Dionísio Oliveira e Benício Loureiro ou Plínio Scarpa, o resultado eram tentativas recíprocas dos jornais Gazeta Green e do Tribuna Atual de minarem as respectivas fontes de renda dos empreendimentos. Contudo, como a família do artista plástico Zezinho era muito rica, a ideia agora era comprar o Gazeta Green, e deixar este grupo de jornalistas à míngua. Porém, houve recusa da oferta feita pelo dono do jornal, o pai de Plínio Scarpa, Rodolfo Scarpa, e a guerra recomeçou e iria esquentar de vez nas eleições para prefeito, em que as duas forças políticas seriam a do prefeito José Ferreira, com o apoio do Gazeta Green, e a do opositor, o intelectual Afrânio Rodrigues, com o apoio do Tribuna Atual. Os trabalhos de organização da Semana de Arte Nova, que seria em maio, avançavam, e Zezinho era o principal organizador que, junto com Paula Campos Siqueira e Antônio Vieira, formavam a comissão organizadora oficial do evento cultural que eles queriam que entrasse para a História da Literatura de Lantânia. A Semana de Arte Nova seria um evento de literatura, artes plásticas, música e escultura, apresentando os novos escritores e demais artistas novos do cenário cultural de Green Stone, e que agora já tinham quebrado muitas resistências e formado um novo gosto estético que superava o apego agora irracional a um culto enfadonho e anacrônico em torno da imagem quase hagiográfica de um suposto poeta maior que se chamava Castelo Salgado. Os poetas Dionísio Oliveira, Domitila Guerra e Silva Alencar, com a direção de Leopoldo Figueira, ficaram no encargo de organizar a parte de saraus, em que formaram uma subcomissão, da parte artística, e a parte financeira ou executiva cabendo à Zezinho. Paula Campos Siqueira, também da comissão organizadora principal, fez os convites, contatou os buffets, cadeiras, mesas, papéis de parede, detalhes de palco, ao passo que Antônio Vieira, que seria o paraninfo, organizou a apresentação, que seria feita por um crooner de nome Flávio Santos, mas, o texto de script teria que ser feito por Antônio Vieira. Ainda havia o concurso de uma força de trabalho do próprio Salão de Cultura, que atuava de forma auxiliar à comissão, com equipes responsáveis pelo evento, e estas equipes tinham o comando do diretor geral do Salão de Cultura, Henrique Sousa, este que dirigia este grande anfiteatro há duas décadas, e nunca tinha visto um período tão efervescente de cultura em Green Stone em toda a sua vida, parecia que toda aquela lenga-lenga de poeta maior, Castelo Salgado, etc, tinha definitivamente caído por terra, e por nocaute. O evento de maio de 1922 seria feito em três noites seguidas, e alguns membros conservadores do grupo comandado por Benício Loureiro já planejavam fazer barulho na apresentação dos novos escritores. O ódio que o jornalista janota nutria do poeta Dionísio Oliveira era cada vez maior, ele queria levar pessoas para fazer apupos e tentar sabotar as apresentações e declamações, e um informante inusitado, que conhecia Dionísio, fez a delação ao poeta que, rindo, disse que seria divertido ver aqueles idiotas tentando fazer algo impossível, pois todos os convites já tinham sido vendidos, e uma pequena turba matreira não seria capaz de apagar o brilho daquela geração, a qual Dionísio agora chamava de geração de 22, termo que pegou rapidamente e já era utilizado na antevéspera da Semana de Arte Nova.  

O Salão de Cultura já ficou com todos os preparativos prontos no começo de maio de 1922, a empolgação tomava conta do grupo Movimento do Chamado que era o destaque principal da renovação cultural de Green Stone, mesmo com os destaques do Violeta Sonora, lembrando aqui a fortuna crítica importantíssima de Margarida Soares, e do Pedra Branca, com Silva Alencar e seu épico mastodôntico Messianismo em que ele faz um retrato quase definitivo do Movimento do Cajueiro. Tal influência crescia e já despontavam vanguardas em Yellow Stone e Blue Stone, e até em províncias mais pobres, como Quermesse e até na miserabilíssima Província do Castelo, com repentistas fazendo o que se poderia chamar de uma versão autêntica do que o Pedra Branca tentava fazer em meios urbanos com o seu folclore artificial. Chega a véspera do evento, que seria realizado em três dias, em 17, 18 e 19 de maio de 1922. O primeiro dia tem a série de declamações dos poetas, que começa com o panegírico já famoso do poeta Leopoldo Figueira sobre Alfredo Villas Boas e um panegírico novo homenageando as vanguardas do Movimento do Chamado, o Violeta Sonora e o Pedra Branca. Leopoldo Figueira depois declama seus poemas, Semente do Futuro, Os Sabiás, e um inédito, que ele apresentou naquele dia, Areia e Fuligem. Dionísio Oliveira, em seguida, declamou a “marcha das fadinhas de mármore” e fez um discurso inflamado de improviso, em que ataca o jornal Gazeta Green, Plínio Scarpa e Benício Loureiro, em que recebe apupos de um setor lateral de arquibancada no setor C do Salão de Cultura, que era um grupo plantado pelo jornalista Benício Loureiro, desafeto e alvo dileto da críticas ácida e sistemática do incendiário poeta Dionísio Oliveira, que era a figura que mais incomodava a equipe do Gazeta Green, em que seus redatores e jornalistas eram massacrados quase diariamente pelos textos de Dionísio no Tribuna Atual. Os poemas declamados, depois do improviso, começou com um poema obscuro de Alfredo Villas Boas, chamado Fósforo, e os poemas de sua pena, Machadada, Patíbulo dos Idiotas e Poema do Levante, finalizando com dois inéditos, para serem revelados no evento, os poemas Comédia Bufa dos Cães, e um poema crítico chamado A Morte dos Canalhas. Margarida Soares, por sua vez, entra depois que Dionísio no palco e tece comentários sobre a sua obra Os Novos Poetas, e faz um panorama brilhante de sua geração literária. Declama Os Rouxinóis, seu poema inédito, o Poema de Afrodite, e seu hit chamado Sensação. O evento tem mais declamadores, tanto das três vanguardas, como de poetas ainda mais novos, que tinham surgido já no cenário a partir de 1921, e que eram muito bem recebidos pelos nomes principais do dia, dos quais destaco Silva Alencar, Dionísio Oliveira, Leopoldo Figueira e Margarida Soares. O primeiro dia é intenso, muito aplaudido, mas com o momento de tensão feito pelo discurso violento entre apupos feito por Dionísio Oliveira na sua obsessão de destruir o Gazeta Green, o culto de Castelo Salgado, e fazer troça do janota do Benício Loureiro. O segundo dia temos exposições de pinturas, com diversos artistas, também escultores, e o dia é comandado pelo pintor e agitador cultural Zezinho, num dia mais tranquilo que a barulheira que fora provocada por Dionísio Oliveira no primeiro dia. O último dia, para encerrar a Semana de Arte Nova, tem a música de vanguarda como destaque, em que temos dois músicos e maestros principais, Marcos Deodoro e o pianista Jairo Messias. O evento se encerra bem e a partir daquele momento já se podia dizer que o culto de Castelo Salgado agora era algo pálido diante da adesão oficial do gosto geral aos poetas destas vanguardas. Os nomes todos destes poetas á soavam familiares, e agora a leitura poderia sair de um isolamento parnasiano de décadas e respirar novos ares. 

Por fim, o intelectual Afrânio Rodrigues consegue ser eleito prefeito de Green Stone no final de 1922, depois de uma campanha massiva encampada pelos poetas Dionísio Oliveira e Leopoldo Figueira e o jornal Tribuna Atual. Afrânio Rodrigues venceu José Ferreira por uma margem pequena em relação ao staff monstruoso que ainda cercava o então prefeito. José Ferreira recorreu ao tribunal eleitoral por uma recontagem de votos, e enquanto seu pedido era indeferido, o mesmo era destruído por um artigo de Dionísio Oliveira chamado “Aritmética da lambança”. Os tais movimentos literários amadureceram nos anos subsequentes, surgindo novos movimentos, tanto em Green Stone, como em Yellow Stone e Blue Stone, além de outras localidades, como as províncias pobres de Quermesse e Castelo, e uma aproximação dos poetas do Pedra Branca com os repentistas destes rincões, num verdadeiro intercâmbio cultural. Com exceção da morte de Leopoldo Figueira, afogado no mar depois da queda de sua embarcação em 1926, todos estes poetas citados envelheceram e continuaram produzindo. 


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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